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Histórias de uma menina que virou avó

Será que Dona Sebastiana pressentiu quando você decidiria partir? Fico pensando na sua coragem de ir para um lugar desconhecido,

Cine Liberdade – Diário de Notícias, 03/12/1937 | Foto: Reprodução/Revista Vitruvius/2015

Já são muitas luas desde que você se foi. Hoje, são 86 anos desde que você nasceu no interior do interior do Piauí. Hoje pensei em como a sua história escreveu as linhas para que a minha pudesse acontecer. Eu queria muito abraçar a menina que você foi um dia, naquele vilarejo que nem aparecia no mapa.

As famílias comiam em casa, numa esteira. Você, criada com a avó, via os pais, mães e filhos reunidos e achava tudo tão lindo. Eram seus tios, tias, primos, todos parentes, todos pobres. Mas ninguém te convidava para comer junto. A comida era escassa, mas aquele não era o motivo. O olhar da menina incomodava. A menina sem pai, cuja mãe se perdera no mundo. Desde tão cedo você deve ter aprendido que preconceito não tem classe social e às vezes nem respeita os laços de sangue.

Eles te mandavam sair e você voltava para a cabana da Vó Sebastiana. A benzedeira era respeitada por seu conhecimento das plantas, mas não o suficiente para convidarem a neta tão amada para almoçar. Você me contou como doía não se sentir parte. Eu daria tudo para abraçar aquela menina e dizer siga adiante, um dia isso vai fazer sentido. Eu sei, tem feridas que nunca cicatrizam completamente, mas você, menina, é bem maior que isso.

Tinha uma tia tão boa que conversava com você nas caminhadas até o rio. Mulheres de um lado, homens do outro: ninguém tinha maiô, nem sunga. Eu também ria das suas histórias. Até hoje imagino o indígena que vocês viram em cima da árvore. Belo, silencioso, imponente. E seguiram a trilha que dava no rio.

Será que Dona Sebastiana pressentiu quando você decidiria partir? Fico pensando na sua coragem de ir para um lugar desconhecido, outro estado, cidade grande, sob os cuidados de uma família conhecida. Aquele vilarejo, onde os seus parentes não te enxergavam, era mesmo muito pequeno para seus sonhos. Em Salvador, a Liberdade te recebeu. E você, ainda tão menina, decidiu se casar. De alguma forma, também para se libertar.

Nem sei como você aprendeu a ver as coisas mais à frente. Era quase como um instinto de sobrevivência, um querer prosperar. Foi seguindo os conselhos daquela menina que se casou com apenas 16 anos que meu avô conseguiu o emprego de motorista da Petrobras, que alimentaria não só os filhos, mas também os parentes que passaram a vir do sertão para estudar na capital.

Entre um filme e outro no Cine Liberdade, entre um disco e outro, você ia se inteirando do que acontecia no mundo, e viajava nas páginas das revistas. Será que esse meu amor pela cultura vem também de você? É bem verdade que seu jeito “para frente” não agradava todo mundo. A gente ria quando você contava da reação da madame da Petrobras ao saber que seu filho estudava inglês na mesma escola que os filhos dela.

Você nunca gostou muito de cozinhar. Hoje, eu olho para trás e acho isso meio revolucionário, principalmente nos anos 1950. Era quase uma ousadia uma mulher não gostar de cozinha. As cobranças da sociedade não cabiam no seu estilo. Que bom.

O fantasma da exclusão deve ter voltado a assustar quando você decidiu se separar. Nos anos 70, ser uma mulher divorciada não era nada convidativo. Mas daí a suportar seu marido tendo um caso com a vizinha… E olha que até então você nem sabia dos filhos com outras mulheres… que bom que, mesmo depois, você nunca excluiu ninguém. Nem os novos filhos, nem as suas mães, nem meu avô. Que nobreza, vó, você não ter reproduzido o que te fizeram na infância. E que bom que tenhamos celebrado os muitos membros dessa família.

Às vezes, nos dias escuros, eu vislumbrava uma ponta de tristeza nos seus olhos. Seria saudade? As cartas da Vó Sebastiana marcando o dia do reencontro, anos mais tarde; ela já mais perto, em Pernambuco, e depois, só o silêncio. Vocês nunca mais se viram. Essa é uma das partes mais tristes da história.

Eu sei dos pressentimentos que sua mãe e sua avó diziam ter. Talvez elas tenham entendido mais do que nós. Mais do que eu. Hoje, voltei a sentir o quanto eu quero honrar a sua memória em minha vida. Não tenho um roteiro de como fazer isso. Mas senti que lembrar da sua história é um jeito de reconhecer a força de toda a sua travessia. E olha que nem contei aqui tantos detalhes. Um dia ainda falo sobre eles. Vó, sem o seu movimento e a sua coragem, eu não estaria aqui, nós não estaríamos. Eu serei eternamente grata por isso.

Eu lembro com saudade de cada pequeno momento nosso. Quando a correria da rotina me chamava, você me fazia deitar no sofá e pegava nos meus pés. Era quase uma mágica. Eu descansava, respirava. A gente conversava, dava risada, comia doce de leite de colher. Hoje, eu queria te abraçar e dizer muito obrigada por tudo. Aquela menina que virou avó é muito amada! Foi uma história e tanto, e ainda não acabou. Estamos aqui escrevendo os próximos capítulos.

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Regina Bomfim
Regina Bomfim
6 meses atrás

Que história maravilhosa, Adriana! Amei fazer essa viagem…

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