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Zanzibar: Onde cada prato conta a história da África na Bahia 

Em Salvador, o restaurante comandado por Ana Célia é símbolo da preservação da culinária ancestral e da luta por identidade cultural

Foto: Acervo Pessoal


Em 25 de maio de 1963, líderes de 32 nações africanas reuniram-se em Adis Abeba, na Etiópia, para fundar a Organização da Unidade Africana (OUA), marcando um passo histórico na luta contra o colonialismo e pela autodeterminação dos povos africanos. A data, posteriormente reconhecida pela ONU como o Dia da África, tornou-se um símbolo global de liberdade, resistência e valorização das raízes culturais do continente.

No Brasil, especialmente na Bahia, essa celebração ressoa de maneira profunda. Salvador, capital com uma das maiores populações negras fora da África, é um dos principais redutos de preservação das heranças africanas no país, sobretudo na gastronomia. A culinária da cidade guarda, em cada prato, a memória viva dos povos que foram forçados a atravessar o Atlântico durante o período da escravidão e que, apesar da violência, mantiveram vivos seus saberes, sabores e espiritualidades.

Pratos como o acarajé, o abará, o vatapá, o caruru e a moqueca são heranças diretas das tradições alimentares de povos da África Ocidental, como os iorubás, jejes, fons e hauçás. Esses povos trouxeram não apenas técnicas de preparo, mas também ingredientes essenciais, como o feijão-fradinho, o azeite de dendê, a pimenta malagueta, o quiabo, o inhame, o milho branco, o coco e o leite de coco. A base da comida baiana, rica, intensa e marcante  é um legado africano que atravessou o tempo e os mares.

Mais do que simples alimentos, esses elementos carregam significados religiosos e espirituais. No candomblé, por exemplo, cada orixá tem sua comida sagrada, e o preparo desses pratos é cercado de cuidado e respeito. O uso do dendê, das folhas, dos grãos e das raízes tem também um papel de conexão com os ancestrais e com as forças da natureza, sendo parte fundamental das oferendas, das festas e da organização das casas de axé.

Em Salvador, um dos maiores símbolos da preservação dessa herança é o restaurante Zanzibar, há 46 anos sob o comando de Ana Célia. Filha de uma tradição familiar ligada à cozinha, Ana foi iniciada nesse universo ainda adolescente, após a morte precoce dos pais. “Minha tia assumiu a gente e me levava para ajudar no Hotel da Bahia, onde ela cozinhava. Ali comecei a aprender e nunca mais parei”, relembra. Com um cardápio que respeita os modos de fazer e os ingredientes tradicionais, o Zanzibar se tornou um espaço de celebração da culinária afro-brasileira em sua forma mais autêntica.

Para Ana, cada receita é uma manifestação de memória afetiva, religiosa e cultural.

“Fomos criados comendo comida ancestral. O que comemos em casa, no candomblé, o que vendemos na rua… é tudo uma mistura, uma lembrança”, explica.

A fusão entre as comidas de axé, as receitas familiares e os sabores das ruas de Salvador forma um repertório poderoso, que carrega a história de um povo em cada garfada. O acarajé, por exemplo, é um símbolo que transcende a gastronomia: é patrimônio imaterial brasileiro e representa o protagonismo das mulheres negras que sustentaram suas famílias com o tabuleiro nas ruas, resistindo ao racismo e à marginalização.

Mesmo diante das pressões do mercado gastronômico, que frequentemente tenta padronizar sabores para atender modismos e paladares neutros, Ana resiste. “Existem várias tentativas de influência, mas acho que o sabor e a integridade da comida de ancestralidade são superpositivos”, afirma. Para ela, preservar a essência da culinária afro-brasileira é um ato político. “O respeito à origem, à integridade… o produto é o produto. Eu vivo na fé, na luta, no respeito”.

Foto: Acervo Pessoal.

Ana ainda ressalta a necessidade de reconhecer a origem dessas receitas, muitas vezes apropriadas e esvaziadas de seu contexto cultural. Pratos que antes eram marginalizados, hoje são gourmetizados e vendidos por altos preços, sem que haja o devido reconhecimento da história e das mãos negras que os criaram. “A valorização é importante, mas não pode desviar o foco da cultura que deu origem a essas receitas”, pontua.

Para Ana Célia, o Dia da África é um momento de profunda reflexão e celebração. “O Zanzibar carrega o legado da culinária afro-brasileira. É sobre nossa vivência, nossa luta e nossa resistência. Cozinhar, para mim, sempre foi um ato de memória e de identidade”, conclui. 

Em Salvador, cada prato tradicional é mais do que alimento: é resistência, é história, é cultura viva. A culinária africana que moldou a cidade é também um elo afetivo e espiritual com o continente-mãe, trazendo a reflexão de  que, apesar das violências históricas, a força criativa e a dignidade dos povos africanos seguem presentes, celebradas e saboreadas todos os dias.

Assim, o Zanzibar permanece como um templo de resistência cultural, onde cada prato servido honra a ancestralidade africana e reforça a rica herança que moldou a identidade brasileira. 

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