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Tradição junina, fogueira é símbolo comum entre catolicismo e candomblé; Pesquisador e professor, Vilson Caetano explica como a fogueira se liga a diferentes religiões

Pós-doutor em Antropologia, escritor e ialorixá, Caetano falou sobre como contatos culturais construíram as celebrações que temos hoje

Fogueira em Érico Cardoso (BA) | Foto: Reprodução/Focado em Você

O mês de junho é marcado pela devoção e símbolos clássicos da comemoração de santos católicos. Entre Santo Antônio, no começo do mês, e São Pedro fechando o período, o que se destaca e acaba dando nomes aos festejos juninos é São João, o primo de Jesus Cristo na tradição cristã, celebrado neste dia 24 de junho. E para além das bandeirolas e comidas típicas à base de amendoim e milho, um ícone das decorações se sobressai: a fogueira.

Carregada de simbolismo na tradição católica por ter sido o sinal dado por Isabel, mãe de João Batista, para anunciar o nascimento do filho, a fogueira também possui grande significado para as religiões de matriz africana neste período.

Pós-doutor em Antropologia, professor na Universidade Federal da Bahia e babalorixá da Casa do Rei e Senhor das Alturas (Ilê Obá L’okê), em Lauro de Freitas, Vilson Caetano explica que a presença do símbolo nas duas culturas religiosas não é coincidência, mas fruto do contato do cristianismo com as chamadas “culturas pagãs”.

“O que foi chamado de paganismo são formas religiosas extremamente ligadas à terra, ligadas aos astros, ligadas a esse conceito que nós utilizamos, que é o conceito de tempo. Para as religiões agrárias, o Sol, a Lua, os demais, a terra são sacralizados”, explicou.

Os rituais, muito comuns às primeiras formações sociais, se relacionam com o processo de sacralização do alimento. “Por isso que os primeiros frutos, os primeiros grãos, as primeiras raízes eram oferecidos, eram ofertados aos deuses e às deusas porque entendiam que estes alimentos eram o espelho, eram corpos deste sagrado. O cristianismo, quando chega, ele tem contato com essa visão de mundo e você olha a festa junina, é uma celebração que se desenvolve em torno da comida: do milho, da mandioca, do aipim e dos seus derivados”, apontou Vilson.

Professor da Escola de Nutrição e do Programa de Pós Graduação em Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, Caetano desenvolve pesquisas na área de populações afro-brasileiras e possui vários trabalhos relacionados às comunidades e povos tradicionais, além de livros como “Orixás, santos e festas”, “Banquete Sagrado, notas sobre os de comer em terreiros de candomblé”, “Corujebó, candomblé e polícia de costumes (1938 a 1976)” e “Ijexá, o povo das águas”.

Vilson Caetano | Foto: Arquivo pessoal

Ele aponta ainda para a “coincidência” que é a data em homenagem a São João Batista ser celebrada na maior noite, na tradição católica portuguesa. “A gente da Península Ibérica vai retomar todas essas ideias de que, durante a maior noite, se poderia fazer qualquer adivinhação, qualquer sortilégio e qualquer bruxaria porque o santo dormia e para que o santo não dormisse, você tinha que mandar fogo para o céu”.

“Você tinha que aguentar as pessoas fazendo festa, muito barulho, tocando muita música para que o santo não pegasse no sono. O português faz isso, justamente, comendo, bebendo aquilo que se produzia. O mês de junho era esse período onde você tinha essa relação com a Festa das Primícias, com a questão agrária, que vem de lá do paganismo. Os africanos, as africanas, eles têm contato com essas ideias, eles também estão dentro desse contexto e eles vão encontrar dentro desse contexto algo que anterior a tudo isso, algo que é primordial a tudo isso que é o fogo”, apontou Caetano.

“A descoberta do fogo, a apropriação do fogo, ela é essencial para a vida e para história de todas as civilizações. Há um coro que diz que no momento em que os grupos humanos começam a se apropriar do fogo, é justamente o momento em que vai acontecer um grande salto cultural em vários aspectos”. O babalorixá explica o simbolismo da fogueira acesa no dia de São João: o ícone serve para anunciar, e assim feito na história do santo, cuja mãe, Isabel, acende uma fogueira para anunciar que o filho havia nascido.

“Fogueira tem a ver com anúncio, tem a ver com festa, tem a ver com alegria e foi com e foi a partir desses conceitos que associou do Orixá Xangô, não com o São João Batista, mas com o fogo, porque o fogo é o mesmo”.

“Xangô é aquele ancestral que manda Iansã, uma de suas esposas, buscar o fogo na terra vizinha. O Orixá Xangô é o próprio fogo, as chamas são o próprio corpo de Xangô, então a fogueira representa essa própria divindade que significa o fogo”, disse Vilson Caetano que explicou que o intuito dessa busca pelo fogo era para que o Orixá pudesse aumentar seu poder e seu império. O pesquisador ressalta, no entanto, que apesar da tradição, Exu é o dono do fogo, sendo o princípio da transformação. “A partir daí nós temos uma pista para entender algumas comunidades que fazem uma celebração chamada Fogueira de Xangô, que é quando algumas comidas são colocadas dentro da fogueira, porque a fogueira come, porque no candomblé, tudo come”.

As comunidades que realizam a Fogueira de Xangô fazem o chamado “Círculo de Xangô”, no qual a fogueira fica acesa ao longo de 12 dias, período em que é realizado o culto ao símbolo do Orixá.  “Durante o período de 12 dias se rememora esse grande rei, que é um dos Orixás mais importantes para nós, no Brasil, porque o que hoje entendemos como candomblé no país, é um candomblé que foi transportado”, analisou o professor, compartilhando a ideia de que as tradições passaram por transplante e transmutação para chegar no que é hoje e nas celebrações como conhecemos.

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