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Trabalho e vida doméstica: quando a luta feminista vai alcançar as mulheres que não trabalham?

Foto: DC Studios/Freepik

Estudando sobre feminismo e sua luta para evidenciar o valor econômico do trabalho doméstico como base da sociedade capitalista, senti a necessidade de me aprofundar em algo: precisamos falar das mulheres que não trabalham e nunca vão trabalhar. 

Por que tratar disso exatamente? Quando falamos das inúmeras formas de opressão do machismo na vida, rotina, autoestima, corpo e mente da mulher, sempre lembramos sobre a importância da independência financeira como uma forma de liberar essa sujeita, diretamente ou paulatinamente, desse cenário. Tenho textos falando como as mulheres têm a tendência de passaram a velhice mais pobres e como o amor ao dinheiro lhes é culturalmente reprimido, fazendo com que elas busquem-o apenas para agradar suas relações e servir o outro, pensando muito pouco em seu próprio conforto e prazer. 

Mas será que chegar até as mulheres falando que elas precisam de emprego, dinheiro e independência financeira é suficiente para ajudá-las de fato? Me senti confrontada por isso porque eu, particularmente, estou transformando vários aspectos da minha vida através do acesso a um bom emprego, com salário e benefícios. No entanto, preciso admitir que minha bagagem cultural, somada a minha rede de contatos, formação educacional, pensamento crítico e o simples fato de ter apenas um filho, com idade de 8 anos (fase de maior autonomia), faz toda a diferença. Eu também tive acesso a tratamento terapêutico que beneficiou muito a melhoria de minha saúde mental, além de ter amigas que me deram muitos conselhos, indicaram caminhos e me ampararam nos meus momentos difíceis, inclusive com ajuda financeira ou com alimentos. 

Outro situação que me fez pensar nisso foi ao assistir o vídeo de uma advogada do Instagram, que está famosa em dar respostas certeiras para perguntas, especialmente feitas por mulheres, sobre divórcio, pensão e divisão de bens. Uma seguidora lhe manda a seguinte mensagem: “Marido me chama de preguiçosa porque não trabalho fora, cuido da casa e cuido de duas crianças sozinha. Ele não me ajuda em nada.” A advogada aconselha dizendo que ela deveria arranjar um emprego e largar dele ou, arranjar um emprego e não fazer mais nada por ele, nem lavar uma colher, como forma de vingar-se e mostrar como é ruim não ter alguém que faz os cuidados da casa. A resposta dela foi certeira, no sentido de mostrar que essa mulher deveria ser valorizada. Mas a dinâmica sobre o cuidado e tarefas domésticas precisa sair desse lugar de gratidão e reconhecimento. Precisamos subir muitos degraus acima sobre essa questão. 

Você já parou para pensar nas movimentações que se desenrolam quando uma mulher  dona de casa decide mudar sua rotina para buscar um trabalho, se manter nele e ainda prosseguir com todas as tarefas domésticas? São tantas questões a serem resolvidas, desde com quem fica a criança (ou crianças), quanto tempo e qual horário deve ser o turno do trabalho, se o salário recebido vai ajudar a pagar as despesas da casa e ainda compensar os gastos com quem cuida da criança. Como deixar as refeições prontas durante a semana e qual vai ser a dinâmica quando o filho/a ficar doente ou precisar ir ao médico de rotina. Daí podemos puxar muitas outras coisas. E quando descrevo isso, não pense que se trata apenas de uma situação para mães solos. Tudo isso pode acontecer invariavelmente com a presença do marido ali, seguindo a sua impecável rotina de “prover a família” e chegar em casa esperando as coisas em ordem. 

Quem me deu uma luz sobre isso foi Silvia Federici, em seu livro “O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista” onde ela apresenta ensaios profundos sobre o tema do trabalho doméstico feminino. Ela explica: “A diferença em relação ao trabalho doméstico reside no fato de que ele não só tem sido imposto às mulheres como também foi transformado em um atributo natural da psique e da personalidade femininas, uma necessidade interna, uma aspiração, supostamente vinda das profundezas da nossa natureza feminina. O trabalho doméstico foi transformado em um atributo natural em vez de ser reconhecido como trabalho, porque foi destinado a não ser remunerado.” (p.41)

A autora busca elucidar como o trabalho doméstico é um processo de dominação ao corpo e comportamento feminino que garante as movimentações da sociedade, já que “por trás de toda fábrica, de toda escola, de todo escritório, de toda mina, há o trabalho oculto de milhões de mulheres que consomem sua vida e sua força” (p.62), e a forma mais direta para dar visibilidade a essa tarefa e elevar seu valor é através do salário, da remuneração equivalente a quantidade de benefícios que essa atividade propicia a rotina diária. Ela esclarece: “Dizer que nós queremos salários para o trabalho doméstico é expor o fato de que o trabalho doméstico já é dinheiro para o capital, que o capital ganhou e ganha dinheiro quando cozinhamos, sorrimos e transamos.” (p. 46). 

Com essa perspectiva, a autora critica a mobilização central de discursos feministas sobre ascensão social da mulher através do trabalho. “Conseguir um segundo emprego nunca nos libertou do primeiro. Ter dois empregos apenas significou para as mulheres possuir ainda menos tempo e energia para lutar contra ambos. Além disso, uma mulher, trabalhando em tempo integral fora ou dentro de casa, casada ou solteira, tem que gastar horas de trabalho na reprodução da sua própria força de trabalho, e as mulheres bem sabem a tirania dessa tarefa, pois um vestido bonito e um cabelo arrumado são condições para arranjar um emprego, tanto no mercado conjugal quanto no mercado de trabalho assalariado.” (p.65)

Dessa forma, precisamos ficar atentas que, ao enxergar uma mulher que saiu do lugar doméstico e seguiu, também, para o espaço profissional, isso não implica necessariamente uma vitória para a luta feminista e seu processo de libertação. Primeiro, porque categoriza um grupo de mulheres que terão oportunidade, apoio e suporte para chegar ao emprego (claramente exaustas) como aquelas que estão à frente das que permanecem em casa e se contentam com o papel materno e a vida doméstica. Quer as últimas façam por circunstâncias adversas ou por vontade própria moldada pela força discursiva da subjetividade da mulher no lar e na criação de filhos, não podemos deixar essas elas para trás! 

Esse é o xeque-mate que esse livro entregou para mim. As mobilizações precisam atingir as esclarecidas e não esclarecidas quanto aos processos de opressão do machismo. A luta não é sobre chegar onde os homens estão (apenas), mas é proteger e resguardar todos os lugares que as mulheres mais ocupam para que, mesmo nesses ambientes, elas encontrem na validade salarial uma forma de manejar a vida de outra maneira, se libertando paulatinamente das opressões e vencendo a culpa e o medo incutidos na vida doméstica que paralisam seus movimentos em nome do “amor” e do “serviço” incondicionais. 

Por isso, o apoio à valorização da atividade doméstica deve ser tanto ou mais empregado nas discussões feministas do que fazer apenas um grupo alocado de sujeitas retornarem ao mercado de trabalho. Precisamos pressionar por políticas públicas e iniciativas privadas que valorizem essa tarefa como base dos movimentos e articulações da vida social e econômica do mundo. O dinheiro, e seu poder simbólico, precisa chegar a todas as mulheres pelas vias necessárias e não apenas a custo de mais turnos de trabalhos e exaustão mental. Enfim, no lar estão elas e para lá que devemos ir! 

FONTE: 

FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Editora Elefante, 2019.

OPINIÃO

O texto que você terminou de ler apresenta ideias e opiniões da pessoa autora da coluna, que as expressa a partir de sua visão de mundo e da interpretação de fatos e dados. Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal Umbu.

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