Sobre infância periférica, noção de perigo e quem trabalha com crianças
No jogo da vida, cada tempo importa. Triunfos e derrotas contam. A gente tem que trabalhar, suar a camisa e para dar certo, tem que ter foco e às vezes contar com alguma sorte. No fim, é tudo sobre tentar vencer e dar alegria pras crianças!
Parece papo de coaching ou introdução motivacional, mas pensei nisso semana passada, vendo o Bahia no jogo da quarta-feira, dia 31 de maio! O Esquadrão ganhou do Santos, numa disputa de pênaltis agonizante, agora estamos nas quartas de final da Copa do Brasil!
Esse jogo passaria batido por mim, sou um torcedor fuleiro, nunca acompanho os campeonatos, mas eu moro no Matatu e da minha varanda vejo e ouço a Fonte Nova. Quarta, tinha uma agonia diferente, dei um google e entendi: oitavas de final. Eu em casa, ouvindo o Bahia decidir, jogando em casa, perto da minha casa.
Fim de jogo, sentimento bom, meu filho assistindo a um vídeo na TV e do nada me pergunta o porquê de eu estar agitado. Expliquei que o Bahia tinha acabado de ganhar do time de Pelé e recebi como resposta: “Ah, sei quem é Rei Pelé, eu tenho uma figurinha dele e uma do Pikachu. Pai, você foi ao teatro quando era criança?“.
Pelo que entendi, no vídeo que ele estava assistindo tinha algo sobre teatro e aí ele juntou essa alegoria incrível: Pikachu, Pelé e artes cênicas. Eu respondi que sim, tinha ido ao teatro na infância
Com os temas Teatro e Bahia frescos na cabeça, cheguei na catarse que me trouxe até aqui: lembrei da primeira vez que fui assistir a uma peça. Foi Cuida bem de mim e a Pró Zilar com a Pró Marlene, maravilhosas, arrumaram a gente, das turmas A, B do 1º ano direitinho no ônibus. Grupo ansioso, falante e trajado com uniforme branco e azul.
No buzu, com os amigos e colegas, eu cantava de tudo, em coro. Tudo mesmo. “De depois de 9 meses você vê o resultado” até “nesse raio de suruba ainda não comi ninguém”. Nada era absurdo se você fosse uma criança educada no Domingo Legal.
Hoje, mais velho, refleti no papel importantíssimo de uma pessoa que, até aqui, sempre esqueci nessa história: o motorista. Eu não sei o nome dele, mas vou chamar carinhosamente de “Motô”. Talvez, uma das figuras mais responsáveis que já passaram pela minha infância.
O Motô, nesse dia, estava fazendo o trabalho dele com excelência. Andando na velocidade adequada, esperou todo mundo colocar o cinto para sairmos e foi em paz. Chegando lá, estacionou o buzu na sombra para os bancos não ficarem quentes e nos orientou para que, quando voltássemos, deveríamos sentar nos mesmos lugares que usamos na ida, para facilitar a contagem e ajudarmos a pró Zilar no retorno pra escola. Mandou bem demais!
Mas antes de chegarmos no teatro, no trajeto, lembro de uma música específica. Um refrão cantado ao mesmo tempo por todos, mas de duas formas diferentes. A versão que era a minha: “OH MOTORISTA, PODE CORRER, EU SOU BAHIA E NÃO TENHO MEDO DE MORRER.”
Na parte do time, nos dividimos. Ser Bahia ou Vitória era individual, como seu cabelo ou seu caderno. Entendendo isso, concordávamos com o resto dos absurdos nesses versos.
Juntos, convictos, errados e irresponsáveis, propúnhamos pra Motô que corresse, porque nós, crianças, não tínhamos medo de morrer, olhe pra isso! Mesmo que não estivéssemos na era Twitter, precisaríamos falar dos equívocos que tem nessa composição emblemática.
Que eu suspeito ser dos mesmos criados de “Motorista, olhe o poste! Não é de borracha, não é não”.
Essa música demonstra a contradição e falta de noção de perigo de crianças nas condições que eu cresci inserido enquanto periférico e que se repetem por todo esse Brasil até hoje.
Uma criança preta, periférica, nascida e crescendo no Bom Juá dos anos 90, vendo e convivendo com tiros, roubos a carro, violência policial, esgoto à céu aberto e encostas caindo, declarava em uníssono, com seus quase 60 colegas, que NÃO TINHA MEDO DE MORRER.
Sem entender que corria mais risco de morte do que boa parte das crianças do mundo, eu tencionava o motorista para que não escolhesse ser covarde ISOLADAMENTE, ao andar devagar, e ouvisse seu grupo de corajosos menores de idade. O Motô, não nos ouviu. E acredite, a gente estava fazendo muito barulho.
Hoje sou pai de uma criança de 6 anos que cresce, ainda bem, em condições melhores do que as minhas, mas isso não me impede de reconhecer que os adultos que lidam com crianças todos os dias, estão vendo mais de perto o futuro surgir. Isso deve mexer com a cabeça de algum modo e merece parabéns.
Hoje em dia, me imagino no lugar do Motô, que tinha, talvez, a minha idade atual, uns 31 anos e sei que se fosse eu no lugar dele, na frente de uma escola pública, tendo que levar 60 filhos dos outros para uma atividade e os observasse pelo retrovisor dançando essa música com coreografia de TikTok, pensaria: “guri é uma onda, né” e não aceleraria, CLARO!
Juro, não é papo de coaching, mas queria falar com os as pró, as psicopedagogas, as pessoas que trabalham nas lojas de criança de shopping ou nas clínicas pediátricas e os motoristas, enfim, todo mundo que trabalha com crianças. Sério mesmo… no jogo da vida, cada tempo importa. Triunfos e derrotas contam. A gente tem que trabalhar, suar a camisa e para dar certo, tem que ter foco e às vezes contar com alguma sorte. No fim, é tudo sobre tentar vencer e dar alegria pras crianças!
Valeu, Motô, sendo Vitória, ou Bahia você me deu o tempo de entender que pra viver é preciso lá, ter algum medo de morrer. Pode viver, todas séries ainda precisam de você.
Me senti intima das crianças baderneiras do buzu. Ameeey, me senti conectada e envolvida até o final do texto (:
Texto 1
Todo esse talento nunca foi surpresa pra mim, mas estou perplexa com que leveza e desenvoltura vc faz uma narrativa.
Sucesso JÔ!