A Educafro divulgou em abril uma lista com sugestão de 10 pessoas negras para assumirem as vagas no STF, a promotora de justiça Lívia Sant´Anna Vaz está presente nessa lista
Quando chegamos para entrevistar a promotora de justiça e escritora, Lívia Sant´Anna Vaz, fiquei impressionado com a sua biblioteca. Enquanto aguardávamos a entrevistada em seu escritório, pude observar a presença de alguns títulos interessantes na estante como “Enciclopédia Negra”, “Escravidão” e “Olhos D`Água”.
Seja no Ministério Público ou através das páginas dos livros, a jurista atua para denunciar as desigualdades enfrentadas pela população negra. Autora dos livros “Cotas Raciais” e “A Justiça é uma Mulher Negra”, Lívia busca aproximar os leitores do mundo jurídico.
A Educafro divulgou, em abril, uma lista com sugestão de 10 pessoas negras para assumirem as vagas na mais alta corte do Brasil, o Supremo Tribunal Federal em 2023. O nome da promotora de justiça, Lívia Sant´Anna Vaz é uma das fortes possibilidades. Com a aposentadoria do ministro Ricardo Lewandowski, já concretizada, e da ministra Rosa Weber, prevista para outubro de 2023, o presidente Lula terá direito a duas indicações para o STF neste ano.
Em entrevista ao Portal UMBU, em sua casa, em Salvador, a promotora de justiça Lívia Sant´Anna Vaz explicou a importância da indicação de uma mulher negra para o STF, discutiu os desafios enfrentados pela população negra e apontou os caminhos para reduzir essas desigualdades.
Gostaria que a senhora se apresentasse, quem é a Dra. Lívia Vaz?
Eu sempre me apresento como mulher negra. Tem também a promotora de justiça, a mãe, a escritora e outros papéis sociais e profissionais, isso porque é a imagem que a sociedade vê, quando olha para mim: não é uma doutora, não é uma promotora de justiça, é uma mulher negra. Tanto é que muitas pessoas ainda me perguntam, quando vão ser atendidos por mim na promotoria de justiça: cadê a promotora de justiça?
Eu vou completar, no ano que vem, 20 anos como promotora de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia, e ainda tenho que responder perguntas como esta. Isto tem muito a ver com o racismo e o sexismo. Por isso, é muito importante se colocar mesmo neste lugar e marcar esse território como uma mulher negra, que se encontra nessa encruzilhada identitária que é de dor, mas que é de muita potência também.
Como a promotora se tornou escritora?
A Promotora sempre foi escritora. Eu respondi há pouco tempo sobre isso. Para quem eu estou escrevendo e por que gosto de escrever? E foi uma reflexão que eu fiz no livro “Cotas Raciais” da Coleção Feminismos Plurais. O meu gosto pela escrita vem desde a escola. Lembro que eu tinha uma professora de redação que era bastante rigorosa, eu gostava tanto das aulas e do resultado, que eu ficava na sala após o término da aula para tirar dúvidas a respeito da redação.
Hoje, minha missão como escritora é escrever para as pessoas e com as pessoas. No mundo jurídico, fala-se muito sobre o juridiquês, palavras que as pessoas não entendem direito. Minha missão é aproximar o direito das pessoas. Você pode perceber nos meus dois livros: “A Justiça é uma Mulher Negra” e “Cotas Raciais”, que é uma linguagem de troca com as pessoas.
Como a justiça e as questões sociais começaram a ser pautadas em sua atuação profissional?
Desde sempre. Desde que eu me vi sozinha ou quase única dentro de uma instituição que é majoritariamente masculina e branca, mesmo na Bahia, um estado cuja a capital é a cidade mais negra fora da África. E aí eu pergunto: onde estão as pessoas negras? Então isso me incomoda, incomoda as pessoas negras e os antirracistas.
Nós temos uma missão muito importante. O racismo causa um efeito de naturalização de ausências. É natural não ter uma mulher negra no sistema de justiça, no MP e na defensoria pública. Nossas presenças, por si só, são pedagógicas, mas, se essas presenças conseguem ser contra hegemônicas, pautar discussões de enfrentamento ao racismo, sexismo, LGBTfobia e todas as formas de opressão. Esta presença consegue ser revolucionária, especialmente quando a gente consegue se aquilombar.
Então, ser uma mulher negra no sistema de justiça é ser uma exceção que confirma essa regra de exclusão. No livro, eu abordo esse tema, as mulheres negras são forasteiras de dentro, porque nós conseguimos avançar, transpassar esse obstáculo para ingressar nesse espaço de poder, mas dentro desse sistema, continuamos forasteiras. A consequência disso é a solidão, mas não é uma solidão afetiva, é institucional, muitas mulheres negras adoecem nesses espaços, traz também um sentimento de impotência, diante da realidade do nosso povo que ficou de fora dessa estrutura. Então, precisamos de estratégia para seguir caminhando e abrindo caminhos.
Quais seriam essas estratégias?
São muitas. Eu costumo dizer que nós mulheres negras somos como água infiltrada. Nos infiltramos nessa estrutura densa que é o racismo e a água infiltrada, se ela consegue penetrar de maneira profunda nessa estrutura, ela vai minar. Nós somos poucas, mas estrategicamente, conseguimos avançar.
A primeira estratégia que penso é o constrangimento. Conseguir constranger as instituições a assumirem o seu papel antirracista, antissexista, democrático e pela busca por justiça. Algo que é uma missão constitucional dessas instituições. Associado ao constrangimento, precisamos realizar um aquilombamento nas instituições, que seria uma articulação com outras pessoas negras, ainda que poucas, mas também com pessoas antirracistas, nós não podemos prescindir de pessoas brancas nesse processo de luta contra o racismo, de luta pela promoção da igualdade racial.
Os movimentos sociais também são importantes. Não dá para construir justiça, na minha opinião, sem a escuta, a articulação e a participação dos movimentos sociais. São eles que irão trazer para nós, as demandas e as vivências que a justiça precisa enxergar. Na capa do meu livro, eu busquei trazer uma justiça que seja a nossa referência, não uma justiça branca, de olhos vendados e conectada com uma mitologia grega. A nossa referência é uma mulher negra que vai entender essas conexões e interseções dessa encruzilhada e ela vai ter olhos abertos e atentos para conseguir corrigir as injustiças.
Como a sua atuação com a perspectiva de promoção da igualdade racial se entrelaça com as demandas de ordem jurídica?
Precisamos reconhecer que o sistema de justiça não possui letramento racial, também é necessário um letramento antirracista, não adianta você ter apenas uma consciência da questão racial no Brasil. É preciso saber, também, como atuar para fazer com que essa engrenagem gire no sentido contrário e nós temos um sistema de justiça que é institucionalmente racista.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos reconheceu que no caso Simone Diniz de 2006, que o sistema de justiça brasileiro é condescendente, porque é uma estrutura branca que deixa de aplicar a legislação antirracista. A comissão reconhece que houve uma evolução na legislação antirracista, mas essa legislação não é aplicada. O que faz com que pessoas que praticam o racismo não sejam responsabilizadas no nosso país.
Qual o maior desafio de uma mulher negra empoderada e consciente neste espaço?
O maior desafio, também é missão, quando adquirimos a consciência racial, deixa de ser sobre a pessoa, não é sobre Lívia, isso vai transcender a pessoa para alcançar a coletividade. Então, passa a ser um posicionamento político de vida, de transformação da nossa sociedade. Esse desafio, que me foi passado pelo meu pai, sem ele nem saber, é uma missão mesmo, de seguir caminhando e abrir caminhos. E isto não é mera retórica. É entender que se eu estou aqui, hoje, é porque as minhas ancestrais tiveram que derramar muito suor e sangue para que isso fosse possível.
É preciso honrar esses passos que vieram antes para abrir caminhos para outras pessoas negras acessarem esses espaços. Não faz sentido ser a única pessoa negra em lugar nenhum. Só faz sentido ocupar esses espaços se não estivermos repetindo as mesmas opressões da branquitude, que é um sistema/posição de privilégio.
Há 135 anos a escravidão foi abolida no Brasil. No período do pós abolição, a comunidade negra brasileira enfrentou diversos desafios. Quais caminhos o Brasil deve seguir para garantir equidade à população brasileira?
São muitos os caminhos. Primeiro, medidas de restituições ao povo negro brasileiro e da população no geral, para termos uma sociedade mais justa. Eu penso que é possível restituir a situação das pessoas negras, referente a dignidade dessa população; restituir a sua liberdade, precisamos pensar em medidas de desencarceramento, pensar e discutir seriamente o abolicionismo penal.
Acredito que pensar também em medidas de não repetição, tanto do encarceramento como do genocídio ao povo negro. A Restituição da propriedade é importante, a Lei de Terra de 1850 retirou a propriedade das comunidades quilombolas e indígenas, de que modo podemos restituir a propriedade? Uma reforma agrária justa e séria e a titulação de terras quilombolas e indígenas.
Restituição da identidade e ancestralidade africana da população negra, e aí o enfrentamento ao epistemicídio é fundamental, precisamos entender e recontar as nossas histórias. Pois ela não começa com a escravidão, a África foi berço da Medicina, da Metalurgia, da Matemática. Isso retira a noção de que não fomos escravos, fomos pessoas escravizadas, o que resulta na restituição da nossa humanidade.
Depois, restituir essa identidade africana, por meio de duas medidas que considero importantes: resgatar os nomes africanos, afro religiosos e afro diaspóricos, alguns cartórios têm imposto dificuldades para que famílias negras incluam nos registros de nascimento, nomes africanos em pessoas negras. Nós temos em vigor uma resolução do CNJ, que determina que pessoas transexuais alterem seus nomes em seus registros de nascimento, porque não uma medida semelhante aos nossos nomes africanos, afro diaspóricos e afro religiosos também?
Existem outros caminhos?
Outro caminho é a possibilidade de conhecermos nossa ancestralidade, algo que nos foi roubado. Por exemplo, eu não conheço a origem da minha família, muitas pessoas brancas dizem que suas famílias veio da região tal, já o povo negro não sabe. É preciso que haja a implementação de uma política pública de teste de ancestralidade pelo sistema único de saúde para a população negra.
Por fim, penso em medidas de satisfação, é preciso que o Estado reconheça as suas práticas racistas. Se temos uma sociedade racista no Brasil, é porque o Estado a construiu, através do seu aparato legislativo, político e policial. É importante um pedido formal de desculpas, não como uma política de governo, mas de Estado. Além do Estado, a Igreja Católica também nos deve um pedido de desculpas, pois legitimou e reforçou a escravidão negra no Brasil.
Anteriormente, a Promotora denunciou como o sistema judicial é embranquecido, na mais alta corte do Brasil, o STF, é composto por 11 ministros, sendo que 9 são homens e 2 são mulheres, todos brancos e nenhum negro. Qual a importância de ter uma mulher negra no STF?
É uma pergunta bem importante, porque de fato o CNJ tem pesquisas que demonstram que apenas 12,8% do poder judiciário é formado por pessoas negras, quando as pessoas negras representam 56% da população brasileira. Se eu trouxer um olhar interseccional , as mulheres negras elas não chegam a 6% da magistratura brasileira e as mulheres negras são o maior segmento social do Brasil, nós somos 28% da população no nosso país. Então nós temos um sistema judicial que é fechado para a diversidade, não tem a cara do povo, não conhece o povo, não julga para o povo, não constrói justiça para a população brasileira.
Quando falamos em Estado democrático brasileiro o que se espera é que as instituições públicas possam refletir minimamente a diversidade étnico racial. Segundo o próprio perfil sócio demográfico do CNJ, o judiciário é masculino, branco, cis, heterossexual e cristão, isso vai gerar visões parciais e até unilaterais sobre os significados de igualdade, liberdade e justiça. Então é preciso ampliar as perspectivas do sistema de justiça.
Para encerrar, dentro deste cenário, consegue apontar os possíveis encaminhamentos sobre diversificação deste espaço?
Eu proponho um caminho inverso ao que aprendi na academia. Na universidade, aprendemos que precisamos nos afastar do objeto de conhecimento para sermos imparciais. Porém, o objeto de estudo, no sistema de justiça, são as pessoas, logo estaremos objetificando as pessoas, é preciso nos aproximarmos das pessoas, tirar, como proponho no livro, a venda da justiça e enxergar a diversidade das pessoas.
Precisamos pensar também que já tivemos três ministros negros no STF, os três foram homens mineiros. Nós tivemos três mulheres brancas como ministras, as três do eixo sul-sudeste. Então, quando falamos de diversidade precisamos abordar a diversidade regional, o STF tem uma concentração de pessoas do eixo sul-sudeste. É preciso valorizar a produção cultural e intelectual fora desse eixo.
Quando eu escolhi a carreira jurídica foi porque meu pai me alertou para a dificuldade que eu teria para escolher a carreira que eu queria. Na época, eu queria ser uma jornalista, porque sempre tive essa vontade de escrever e me comunicar. Eu queria ser uma jornalista de televisão, aí meu pai perguntou: “onde é que você viu uma mulher negra no jornalismo?”
Quando ele me fez essa pergunta foi um balde de água fria, isso é para dizer sobre o quanto o racismo molda os nossos sonhos.
Entrevista necessária e maravilhosa! Show
Com certeza na justiça muito mais, mas para a mulher negra é difícil em qualquer espaço de relevância.