Depois de acordar de um sonho estranho, entendi que estou aprendendo a descolonizar o meu tesão. De fato, há alguns anos descobri que eu não gostava de homens, mas de ser escolhida por eles.
O sonho era em um cenário que se repete no meu inconsciente. Estou com um ex (marido, namorado ou ficante) e estamos envolvidos por sentimentos de paixão e sexo, como se eu revisitasse os primeiros momentos da relação. No meio daquilo, um lapso de consciência me atravessa e me dou conta que meu prazer estava completamente concentrado em ver a pessoa enlouquecida por mim. Meu tesão se expande ao ver aqueles olhos sedentos pela minha pele, cheiro e sabor, ao ponto que não faz mais diferença quem está na minha frente. Pode ser o Adriano, o Carlos, o Jeison, o Iuri, tanto faz, contanto que ele permaneça concentrado em me querer naquele momento.
Hoje eu despertei desse sonho com essa percepção: meu tesão precisa ser descolonizado. Meu prazer está atrelado a uma condição, a de ser escolhida. Quem faz isso, tem direito ao meu prazer sexual automaticamente sem que haja muitos critérios relevantes sobre as qualidades e características desse ser humano que o tornem agradável para a minha vida. Como um objeto, eu sinto que dentre tantas opções tão interessantes, alguém me viu e me quis. O que parece ser o suficiente para ativar minhas sensações físicas mais íntimas: da vontade de beijar, ao impulso de querer arrancar roupas e me entregar de corpo nu.
O termo “colonizar” foi uma palavra que utilizei a partir dos estudos de gênero de Valeska Zanello, autora do livro “Saúde Mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação”. Tenho lido nessa obra sobre a relação amorosa/sexual entre o homem e a mulher, mediada pela ideia do dispositivo amoroso. Ao longo do texto, vou intercalar minhas observações com trechos do livro para que seja percebido como minha experiência individual é parte de uma vivência coletiva sobre o lugar social do gênero mulher.
De acordo com Zanello, as relações conjugais são aprendidas culturalmente, logo, vivenciamos como sociedade pós-moderna uma pedagogia dos afetos, ou seja, somos ensinados a quem nos afeiçoar e como.
“Le Breton (2009) sublinha que a cultura afetiva (…) é manual de instruções (poderíamos dizer, script) que lhe sugere a resposta adequada a cada particular circunstância.” (p.56)
E, para cada gênero, este treinamento possui um caminho de instruções e normas, que se resume na dialética binária onde homens escolhem e mulheres são escolhidas. Sendo as que “esperam”, as mulheres estariam dispostas, no que a autora denomina como a “prateleira do amor”. Nela estão todos os tipos de mulheres, sendo que nas áreas mais altas e de destaque ficam as magras, bonitas, jovens, brancas e loiras. Qualquer ponto contraproducente permanece nas prateleiras mais baixas e menos visíveis.
“(…) a prateleira do amor erige um lugar para as mulheres cuja vivência de ter que ser escolhida é profundamente desempoderadora.” (p.89)
De acordo com a autora, as mulheres são socializadas a viver na busca de um bom parceiro e um casamento feliz. Mas como fazer isso se elas não têm o poder de escolher? Agindo de tal forma que elas sejam as escolhidas. Na juventude, o entusiasmo e a empolgação dessa fase lhes daria a oportunidade de se adequar o máximo possível aos padrões de seu grupo social para que as opções que mais agrade seu meio familiar ou de amigos sejam atraídas. Porém, se os anos passam e elas não conseguem chegar nesse lugar do casamento ou fracassam com escolhas desprezíveis – o famoso “dedo podre” – é melhor que aceitem a opção que estiver à disposição. O ponto é não se permitir estar sozinha ou, o mais conhecido, “ficar para titia”.
“Assim, muitas mulheres acabam por se casar com o próprio casamento, independentemente do parceiro que arranjem, e principalmente, da satisfação ou não que tenham com essa relação. Muitas mulheres suportam melhor o desamor do que não ter alguém. E adoecem.” (p.95)
Eu sou produto desse caminho e reconheço a Carla da juventude que caiu nas diversas armadilhas e se sacrificou para que uma relação acontecesse e/ou desse certo. Fazia de tudo um pouco: desde adotar a feminilidade mais aceita fisicamente até passar anos participando de congressos de casais e comprando livros sobre como entender os homens. Fiquei tão fera no assunto, que dei até um curso sobre casamento! Ajudava os cônjuges a melhorarem suas relações e fazia altos investimentos de tempo, energia e dinheiro para tornar a minha a melhor possível.
Quando meu casamento tão investido acabou e o sentimento de fracasso tomou conta de mim, passei a revisar com afinco minha própria história sendo amante, esposa ou namorada de alguém. Encontrei uma semelhança em todos os relacionamentos que vivi: eu amava ser escolhida. Pior ainda, eu só começava a gostar do meu par depois que era escolhida. Em alguns casos, eu tinha uma leve atração física ou intelectual pelo indivíduo. Achava-o interessante, mas bastava a pessoa me dar sinais de reciprocidade e (claro!) eu receber aprovação social daquele processo de atração com pessoas me dizendo “você reparou que fulano gosta de você?” ou “vocês formam um belo casal”, que eu automaticamente me apaixonava.
Uma situação que vivi com um rapaz foi bem ilustrativa sobre isso. Para mim, ele só era mais uma pessoa com quem eu convivia. As minhas amigas o achavam lindo e eu apenas o via como padrão: fortinho e com cara de ator da Globo. Nem um pouco interessante e, às vezes, meio bobo, infantil. Mas, um dia, quando tirávamos uma foto em grupo, ele me colocou perto dele e fez um carinho discreto nas minhas costas. Contei isso para minhas amigas que puxaram a ideia de que ele estava afim de mim. Depois daquele dia, eu sempre dava um jeito de puxar papo com ele toda vez que nos encontrávamos. Um dia, encontrei-o em um chat online e começamos a conversar muito. Ele deixou de ser bobo e infantil? Nem um pouco. Mas ele me queria. E isso era tudo o que eu precisava. Até passei a achá-lo atraente fisicamente. Me imaginava em seus braços, tomada por beijos quentes. Meu tesão por ele só aumentava.
Um dia conseguimos nos encontrar. Ele me deu uma caixa de bombom e me levou para um local mais escondido na cidade, com uma visão bonita. No carro, ele colocou em alto volume música de boate e se exibia dançando e dirigindo. Eu odiei aquilo, mas tolerei. Chegando no lugar mais calmo, ele vorazmente começou a me beijar e me tocar. Detestei. Tentava avisá-lo sutilmente que aquilo era demais. Ele não percebia e não fazia questão de me ouvir. Em minutos ele já tinha aberto o zíper da minha calça e estava com a mão dentro. Eu não queria e bateu aquele medo de que ele tirasse toda a minha roupa ali. Inventei uma desculpa esfarrapada de que precisava voltar para casa naquela hora. Ele reclamou, mas aceitou meu pedido. O que vocês imaginam que eu senti depois disso? Que eu o descartei? Que nada! Apesar do meu repúdio pelo seu comportamento, eu só fiquei mais apaixonada e ficava pensando em como “satisfazer” a voracidade dele sem que aquilo passasse dos meus limites.
“Em muitos casos, a mediação do casamento se dá pelo ideal que ela gostaria que seu parceiro fosse (casa-se com a esperança do que ele venha a ser), mais do que o homem real ali presente.” (p. 97)
Essa história ilustra simbolicamente como meu tesão está colonizado. Ele é mais vinculado ao deleite de me sentir escolhida do que ao prazer do meu próprio corpo. Tanto que, desde que passei a focar em mim e desisti de querer agradar as pessoas, incluindo os possíveis homens que poderiam me escolher, me encontrei num lugar de celibato que durou três anos. Após isso, com minha autoestima firmada, decidi me aventurar nesses espaços do prazer sexual com o outro – ou de uma possível relação – e descobri que não sei o que fazer. Foram tantos anos sendo treinada a viver para o olhar do outro, de me apresentar o mais desejável possível na prateleira de amor, que não tenho ideia de como é escolher alguém.
Na verdade, descobri um mundo de homens nada interessantes. Enxerguei-me tendo pouca ou nenhuma vontade de conhecer pessoas mais a fundo porque os primeiros minutos de contato já não me entusiasmavam. Achei até que estava ficando frígida, que meu tesão não existia mais. Mas ele existe, eu o vivo na minha pele, no meu corpo, apenas não sinto mais prazer nos processos tradicionais dos dispositivos amorosos a qual fui condicionada. Anos de estudo, autoconhecimento e consciência própria de meus condicionamentos no corpo feminino deixaram minha mente consciente demais para cair nesses mesmos caminhos.
Claro, o tesão colonizado ainda me habita e vivencio apenas uma perda progressiva da sua força em mim. Quando vou na balada e quero ficar com alguém, revejo ele ao perceber meu corpo se adaptar ao que considero plausível para que o homem-alvo me escolha. Percebo ele também quando, após aceitar beijar alguém, eu não sinto prazer físico pelo beijo em si, mas fico feliz pela situação, ao notar que fui a pessoa escolhida, nem que seja naquele breve momento.
“Cabe a elas o lugar ativamente construído da passividade do dar-se a mostra e da sedução, importando pouco, às vezes, quem as escolha” (p. 95)
Se você se identificou com minhas palavras, queria avisar que vale a pena reconhecer como e onde o seu tesão está colonizado e, voluntariamente, escolher seu caminho para encontrar seu lugar de prazer. Eu ainda me sinto em um limbo. Metade de mim se sente livre, metade só quer viver aquela sensação gostosa e satisfatória de ver os olhos de “eu te escolhi”, como acontece nos meus sonhos. Por fim, quero dividir um poema meu que retrata a Carla que está caminhando para um novo espaço de liberdade, um lugar onde meu tesão vai pertencer a mim, aonde quer que eu vá.
Demorou demais estar só
De só
fui pouco
quase nada
Todo dia
em alguma alma manchada
Antes mesmo de estar com alguém, eu já estava rondando, procurando, pensando. E passou minha vida em mais de 20 anos.
Eu nunca vivi sem viver para que alguém me visse. E mesmo quando alguém, eu achava, mais de meio litro de mim se dedicava a ver se a pessoa ainda me olhava. Pela primeira vez, eu escolho ver.