...

Portal UMBU

Salvador e Buenos Aires: Entre cruzamentos e contrastes

Foto: Silvana Oliveira

Quem diria que cidades aparentemente tão diferentes quanto Salvador e Buenos Aires teriam tantos pontos de contato quanto rumos distintos em relação à cultura, memória e até a urbanização. Sim, elas caminharam lado a lado na história como cidades criadas por exploradores europeus, no século XVI: a argentina fundada em 1536 por Pedro de Mendoza e refundada em 1580 por Juan de Garay; a baiana, em 1549, por Tomé de Sousa, a mando da Coroa portuguesa.

Cada uma se tornou capital de importância estratégica: Buenos Aires, do Vice-Reino do Rio da Prata; Salvador, a primeira capital do Brasil Colônia. E as duas cresceram como portos fundamentais no comércio atlântico, chegando a manter uma rota que ligava a prata de Potosí aos produtos da colônia portuguesa. Localizações privilegiadas que definiram seus papéis no mapa do poder.
Mas se eventos as unem, também as separam.

Presença Negra na Argentina

Para surpresa de muitos, a história mostra que Buenos Aires foi, entre os séculos XVII e XVIII, um grande entreposto de chegada de navios que sequestravam africanos para serem escravizados. Muitos eram levados a trabalhar no interior da Argentina, no Chile e até nas minas de Potosí, na Bolívia. No início do século XIX, cerca de um terço da população da cidade tinha origem africana. Com o tempo, guerras de independência, epidemias e uma forte política eugenista de imigração europeia produziram um processo de apagamento. A presença negra foi sendo invisibilizada.

Foto: Silvana Oliveira

Hoje, muitos acreditam que o braço cruel da escravização sequer chegou à terra do tango, apesar da influência do candombe na formação do ritmo e da dança. Em Salvador, ao contrário, a herança dos africanos que chegaram aqui à força não desapareceu: tornou-se fundamento. Está na religião, na música, na culinária, no vocabulário, na organização social. É força e identidade que se impõem na paisagem e na vida da cidade.

Sem sombra nas ruas

Há também contrastes do presente. Enquanto Buenos Aires se tornou símbolo de integração entre verde e vida urbana, desde os projetos de Carlos Thays no século XIX, que deixaram jardins, bosques e ruas arborizadas como marca da cidade, Salvador amarga os índices da escassez. Segundo o Censo de 2022 do IBGE, 65,6% dos moradores vivem em ruas sem nenhuma árvore. E essa ausência pesa. Pesa no corpo que sente o calor sem trégua, na desigualdade que separa bairros sombreados de ruas áridas, no convívio social mais rarefeito quando a cidade não oferece abrigo para o encontro. Salvador, tão quente, é justamente a cidade que mais mereceria árvores.

Buenos Aires e Salvador nasceram com semelhanças. Mas se uma apagou parte de sua história e construiu uma cidade verde, a outra preservou a força afro e segue carecendo do abraço das árvores. Talvez esteja aí o ponto de reflexão: se é possível aprender com o que a outra cidade fez de certo, por que aceitar viver sem reconhecer sua memória ou sem a sombra que pode transformar nossa vida urbana?

Inscrever-se
Notificar de
guest
1 Comentário
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários
Nei Dias
Nei Dias
2 dias atrás

Ótimo! Adorei a reportagem, principalmente na relação entre as duas cidades. Brasil e Argentina, rivalidade no futebol não atrapalha a história desses dois país!

POSTS RELACIONADOS

plugins premium WordPress
Ir para o conteúdo