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Sala de roteiro: Elísio Lopes Jr. e Gautier Lee falam sobre trajetória, desafios e mudanças no mercado audiovisual nacional

Reportagem do Portal Umbu conversou com os roteiristas sobre o mercado, os desafios e suas referências

A diversidade e a representatividade no audiovisual são, há muito tempo, demandas pautadas pelos movimentos sociais. No entanto, se é importante para a população se enxergar nessas obras, é ainda mais necessário fomentar a diversidade por trás das telas. Nos últimos meses, os roteiristas negros Elísio Lopes Jr. e Gautier Lee se destacaram no segmento e tiveram seus nomes alçados à referência na área.

A escrita na vida de Gautier Lee, roteirista e diretora angrense, chegou com as fanfics, uma narrativa ficcional baseada em personagens e histórias existentes, porém produzida e divulgada por fãs. Apaixonada por narrativas teens, Gautier é uma pessoa queer e negra, que integrou a equipe de roteiristas da série “De Volta aos 15”, da Netflix. “Eu comecei escrevendo desde muito nova, primeiro com fanfics de obras que eu gostava e depois fui para a escrita dramatúrgica quando comecei a estudar Teatro”, diz.

Além da produção para a Netflix, Gautier Lee também assina o roteiro de “Auto Posto”, do Comedy Central. Em 2023, a roteirista conquistou o Prêmio Abraço de Excelência em Roteiro. Graduada em cinema pela PUC-RS, Lee é fundadora do Coletivo Macumba Lab e esteve em Salvador este ano para gravações de “Pajubá”, documentário sobre vivências de pessoas trans que está dirigindo.

Um dos autores da novela “Amor Perfeito” (2023), da Rede Globo, Elísio Lopes Jr. se define como um “contador de histórias”. “Sou um homem preto, baiano, casado, pai de três meninas pretas e contador de histórias. De onde eu venho diz muito sobre mim. Venho de um lugar onde existe uma infinidade de belezas, de onde o coletivo existe. Sem a caneca de açúcar emprestada da vizinha, esse país não estaria mais de pé”, relata.

Formado em Comunicação Social com habilitação em Relações Públicas, Elísio fez pós-graduação em Imagem e Mestrado em Cultura & Sociedade na UFBA. Sua carreira na cena cultural começou no teatro e depois migrou para a televisão. “Faço teatro desde menino e foi o palco que me formou, me fez desejar o diálogo com as plateias, me expressar, dizer o que vejo e o que sonho”, afirma.

“Teatro é a base de tudo. Lá eu aprendi a atuar, dirigir, escrever e produzir. Aprendi que arte é uma ação do coletivo, que se você deseja criar, você deseja trocar. Muitos anos atuando no teatro baiano, tive grandes mestres, profissionais que me ensinaram sobre o que fazer e, às vezes, sobre o que não fazer. E essa massa me compõe. Eu não conheço atores mais potentes que os baianos. Eu me sinto beneficiado por essa origem, por ter me formado entre os melhores”, continua Lopes.

O roteirista já teve passagens pelos programas Espelho (Canal Brasil), Esquenta (TV Globo) e Aglomerado (TV Brasil). Sobre sua experiência colaborando para a televisão, Elísio define: “Foi escrevendo esses programas que fui entendendo a dinâmica da TV, até chegar na ficção, que é o meu lugar, contar histórias sobre gente”. Elísio assinou ainda o roteiro dos filmes “Ó Paí Ó 2”, que estreou nesta quinta-feira (23), e “Medida Provisória” (2020). Recentemente, atuou como diretor geral do musical “A Peleja de Santa Dulce”.

Referências

No processo de formação em comunicação, a busca por referências é fundamental para criar novas narrativas. Além de olhar o passado para escrever o futuro, resgatar as produções de artistas que abriram caminhos para as minorias é essencial para reverenciar essas histórias. Para Gautier Lee, os artistas Paulo Vieira, MM Izidoro, Yasmin Thainá, Cleissa Regina Martins, e Nathalia Cruz estão entre os nomes nacionais que a inspiram. Já entre as referências internacionais, figuram Quinta Brunson, criadora da comédia em mocumentário (documentário falso) Abbott Elementary, e Donald Glover, mente por trás da série de comédia dramática Atlanta.

Já para Elísio, nomes como Joelzito Araújo, Milton Gonçalves e Paulo Lins foram decisivos para a sua formação. “Eu sou grato aos mestres Joelzito Araújo, Luiz Antônio Pilar, Milton Gonçalves e Paulo Lins. Esses quatro abriram caminhos, fizeram história e, se hoje estamos aqui, é porque eles chegaram antes. Joelzito tem filmes belíssimos, “As filhas do vento” e “O pai de Rita” são filmes que nos permitem sentir, nos humaniza e são obras fundamentais em nosso cinema. Luiz Antônio Pilar com os longas “Remoção” e “Lima Barreto” também marcam a nossa cinematografia. Poucos sabem, mas o grande ator Milton Gonçalves também foi diretor, ele abriu essa frente além de atuar. E Paulo Lins rompe uma barreira com “Cidade de Deus” levando a nossa escrita para o mundo”, explica Elísio.

“Acredito que seja um momento de retomada, pois o mercado já está saturado de narrativas normativas. Então obras que contam histórias de grupos historicamente marginalizados estão atraindo o público que finalmente está se vendo nas telas”, argumenta Gautier Lee.

Nos últimos anos, vemos as plataformas de streaming e canais de televisão mais receptivos para novas narrativas. Na segunda temporada da série “De Volta aos 15”, por exemplo, a personagem Camila, vivida pela atriz trans não-binária Nila, passa por um processo de descoberta e transição. “Acredito que seja um momento de retomada, pois o mercado já está saturado de narrativas normativas. Então obras que contam histórias de grupos historicamente marginalizados estão atraindo o público que finalmente está se vendo nas telas”, argumenta Gautier Lee.

Segundo Elísio, no Brasil, a população negra não é uma minoria e sim uma maioria. Neste sentido, essas pessoas precisam estar representadas nas produções audiovisuais.

É cafona, é careta hoje assistir um filme, uma novela, uma série brasileira que não seja normalizada a nossa existência. É pobre, é monocórdico

“Percebo que a ficha está caindo, o povo negro não é minoria. E a maioria desse país quer se ver representada. Não basta figurar, quer protagonismo, quer história, quer dignidade. E é esse o nosso tempo. Eu vejo como algo natural, precisa caber todo mundo nas histórias ou não vai sobrar ninguém. É cafona, é careta hoje assistir um filme, uma novela, uma série brasileira que não seja normalizada a nossa existência. É pobre, é monocórdico.  Todos os corpos são ficcionáveis. Todos têm sentimentos e querem expressão. Cabe aos artistas conseguirem avançar de seus umbigos para falar sobre a vida que existe pra além da nossa janela”, afirma.

Desafios

Apesar dos avanços, Elísio Lopes Jr. analisa o atual cenário cultural como desafiador para os profissionais do segmento. As plataformas de streaming e os custos da produção artísticas são alguns dos desafios listados pelo roteirista.

“Teve uma mudança pra pior. As oportunidades estão mais reduzidas, o público está mais difícil, medo da violência, os custos, o fenômeno das plataformas de conteúdo, tá mais fácil ficar em casa. Manter um espetáculo em cartaz, estrear um filme, tá tudo muito complicado. Mas por outro lado, os artistas amadureceram, aprenderam a se virar, a buscar alternativas fora e estão se destacando e realizando seus projetos. Eu acredito na potência da Bahia e em Salvador como um polo criativo. Mas ainda não vi o governo levar isso efetivamente como uma política de gestão, com o investimento devido e o diálogo contínuo com a classe”, observa Lopes.

“A inserção no mercado audiovisual é bastante difícil no geral. Para pessoas trans e/ou negras essa inserção é ainda mais difícil e, quando acontece, muitas vezes é num lugar de tokenização.

Sobre as dificuldades durante a sua trajetória enquanto roteirista, Gautier destaca: “A inserção no mercado audiovisual é bastante difícil no geral. Para pessoas trans e/ou negras essa inserção é ainda mais difícil e, quando acontece, muitas vezes é num lugar de tokenização. Eu tive a sorte de nunca ter passado por uma sala de roteiro onde eu era a única pessoa negra, mas geralmente era eu e o assistente. E apenas uma única vez eu estive em uma sala onde eu não era a única pessoa trans. Isso, muitas vezes, nos leva a um lugar de solidão por sermos os “únicos” presentes nesses espaços”.

Fazer cinema é difícil, mas se torna um pouquinho mais fácil quando se faz coletivamente

Com os caminhos e o mercado aberto para acolher essas novas narrativas, Gautier deixa um conselho para os novos roteiristas. “Acho que a dica mais importante é: encontre a sua turma. Cinema é uma arte coletiva e tentar realizá-la de forma individual é muito mais cansativo e desgastante. Encontre as pessoas que gostam do mesmo tipo de obras que você gosta e vá construindo suas próprias histórias em conjunto. Isso não significa necessariamente ter um parceiro de escrita. Ter um produtor parceiro, por exemplo, pode ajudar a inscrever projetos em laboratórios e editais. Ter um diretor parceiro ajuda a tirar as ideias do papel e realizá-las. Fazer cinema é difícil, mas se torna um pouquinho mais fácil quando se faz coletivamente”, afirma.

Para Elísio, a melhor orientação para os jovens roteiristas é experimentar. “Escreva. A melhor forma de chegar é com trabalho e ideias. Estude, escreva, pratique. E vá na cara e na coragem. Produzir e dialogar com as redes também é importante. Precisamos oferecer as nossas histórias. E outra coisa é acreditar no que é só seu. Seu olhar pro mundo, as histórias do seu lugar, da sua família. Aí está a sua marca, o que você tem pra dizer”, aconselha.

Os próximos projetos de Elísio são “Reecarne”, série de terror que escreveu em parceria com Igor Verde, Amanda Jordão, Juan Julian e Flavia Lacerda. A estreia da produção está prevista para 2024. Para o próximo ano, Gautier lança o seu primeiro longa “Pajubá”, escrito por Hela Santana, além da série de animação infantil “Os Pequenos Crononautas”. 

Foto: Elisio Lopes Jr – Reprodução/UFMG; Gautier Lee – Rafael Bede

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