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“Reparação não é apenas olhar para o passado, é abrir caminho para as próximas gerações. Queremos que nossas filhas e netas cresçam em um país onde a vida negra seja prioridade”, diz a ativista e escritora Valdecir Nascimento

No lançamento do livro Reparação: Memória e Reconhecimento, Valdecir Nascimento retoma o debate sobre reparação, entrelaçando a reflexão à memória histórica da Marcha das Mulheres Negras de 2015 e à organização da marcha de 2025, reafirmando que a luta das mulheres negras é central para a construção da justiça racial, da dignidade e do Bem Viver

Valdecir Nascimento | Foto: UN Women/Ryan Brown

Historiadora, mestre em Educação e militante histórica do movimento de mulheres negras, Valdecir Nascimento é uma das vozes mais firmes e radicais no enfrentamento ao racismo no Brasil. Fundadora do Odara – Instituto da Mulher Negra, integrante da Rede de Mulheres Negras do Nordeste, da AMNB (Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras) e da Rede de Mulheres Afrolatino-americanas, Afrocaribenhas e da Diáspora, Valdecir inscreve sua trajetória em uma tradição de luta que atravessa gerações.

Nascida e criada nos Alagados, em Salvador, ela transformou cinco décadas de vida em resistência política contra a violência e em defesa dos direitos das mulheres negras. Agora, uma das autoras do livro Reparação: memória e reconhecimento, a ser lançado nesta sexta-feira (19), fruto de um seminário que reuniu pensadores, militantes e artistas negros em torno de um tema que atravessa séculos: como reparar a população negra em um país fundado na escravidão, no genocídio e na negação da humanidade negra?

“Essa não vai ser a primeira elaboração no Brasil sobre reparação. Entretanto, esse seminário, esse colóquio, retoma  o debate sobre reparação no Brasil, considerando a conjuntura política e a abertura de novos horizontes para onde a luta antirracista e a luta pela garantia de direitos no Brasil precisam avançar.”

A fala de Valdecir explicita um ponto fundamental: a reparação não é um tema novo, mas recoloca-se agora com outra potência. Se em momentos anteriores a ideia foi sufocada, criminalizada e tratada como tabu, hoje emerge como questão incontornável.

“É muito importante destacar que a conjuntura atual permite. Porque nos momentos anteriores, a ideia de reparação foi muito polêmica, de forma negativa. Conseguiram manejar uma narrativa que foi necessário recuar, deixar com que a sociedade amadurecesse sobre essa perspectiva, até porque a sociedade brasileira tem consciência do quanto ela nos deve. Ela [a sociedade brasileira]  tem consciência de que a população negra historicamente neste país é injustiçada.”

Foto: Arquivo pessoal

“Não existe justiça do ponto de vista da compreensão do que significou o derramamento de sangue, do que foram quase 400 anos de escravidão para a população negra brasileira. Então, um país que tem 500 e poucos anos, que viveu quase 400 anos de escravidão, reparação deveria ser o eixo de centralização da continuidade dessa nação.”

Como pode uma nação que viveu quase quatro séculos de escravidão se pretender democrática sem colocar a reparação como princípio estruturante? É nesse ponto que Valdecir enfatiza: reparação não é concessão, mas obrigação histórica.

Reparação para o povo negro deveria ser um princípio, que não é a realidade. Então, foi muito gratificante, para mim, participar desse momento e entender que agora se conecta com o resto do mundo do ponto de vista dos afrodescendentes que estão na diáspora e em África no debate sobre o que a humanidade nos deve. Reparação não é apenas olhar para o passado, é abrir caminho para as próximas gerações. Queremos que nossas filhas e netas cresçam em um país onde a vida negra seja prioridade. Esse é o horizonte político que a reparação nos traz.”

Da marcha de 2015 ao horizonte de 2025

O lançamento do livro também se entrelaça com a história recente das lutas negras no Brasil. Em 2015, mais de 50 mil mulheres negras marcharam em Brasília sob o lema “Contra o racismo, a violência e pelo Bem Viver”. Foi um marco histórico: pela primeira vez, o Estado brasileiro teve de ouvir, diretamente das ruas, a denúncia das mulheres negras sobre o racismo estrutural, a violência de gênero e o genocídio do povo negro.

Agora, às vésperas da Marcha de 2025, o tema da reparação retorna ao centro do debate político. Se em 2015 as mulheres negras já diziam que não há democracia sem Bem Viver, hoje elas afirmam que não há futuro sem reparação. As duas dimensões se cruzam e se fortalecem mutuamente: memória, justiça e horizonte político.

Foto: Arquivo pessoal

“Esse debate e esse livro são apenas o início da retomada da discussão em torno da questão da reparação e fortalece, sem dúvida nenhuma, o debate sobre reparação na contemporaneidade nesse momento estratégico de Brasil, apesar de ser um momento de muitos conflitos, muitas tensões e radicalização da extrema direita em relação a direitos.”

“É nesse momento também que nós vemos a oportunidade de fazer um debate sério, de fazer um debate detalhado para que a gente possa imprimir e conquistar na sociedade brasileira. Nós estamos escavando uma raiz extremamente profunda, que é discutir reparação. A quem cabe reparar? Reparar o quê? Então, esse debate é extremamente atual, importante e vai definir o futuro da população negra.”

“Necessitamos explicitar que reparação histórica não se confunde com políticas públicas nem políticas afirmativas. Reparação é muito além dessas ações.”

Ao insistir na profundidade da questão, Valdecir também recusa os caminhos fáceis. Políticas públicas e ações afirmativas são conquistas, mas não se confundem com reparação. Reparação é mais radical: é desmontar privilégios, redistribuir poder, descolonizar narrativas, exigir responsabilidade do Estado e das instituições que sustentaram e ainda sustentam a violência contra o povo negro.

“Este livro tem por finalidade abrir caminhos para outras tantas reflexões sobre o tema. Necessitamos aprofundar não sobre a definição do que é reparação, pois o termo por si só já se define, mas aprofundar sobre as formas de reparar, quem são os responsáveis por reparar, qual papel o Estado deve desempenhar no processo de reparação. Necessitamos explicitar que reparação histórica não se confunde com políticas públicas nem políticas afirmativas. Reparação é muito além dessas ações.”

Ao trazer essa perspectiva, Valdecir aponta para dimensões ainda pouco debatidas no Brasil: o papel do pedido de “perdão”, a centralidade da memória, a necessidade de construir parâmetros de indenização e de criar formas de reparação para além da dimensão financeira. Mais do que isso: desafia o imaginário cristão-colonial que insiste em naturalizar o sofrimento negro.

Bem Viver como projeto político para as mulheres negras

Se a reparação enfrenta o passado e denuncia as estruturas do presente, o Bem Viver projeta o futuro. Inspirado em filosofias africanas e latino-americanas, o conceito propõe reorganizar a vida social a partir da centralidade da população negra, colocando a dignidade, a coletividade e a ancestralidade no centro da política.

Foto: Arquivo pessoal

“Bem viver é o futuro, o futuro que acreditamos e seguimos tecendo passo a passo, é o projeto de sociedade que pretendemos implementar. Portanto, a justiça racial, de gênero e a equidade são parte estruturante para uma sociedade de Bem Viver, não é política pública. Bem Viver é centrado nas nossas dimensões de humanidade e existência, isso já é tudo. A provocação é que nós, povo negro, liderados pelas mulheres negras, somos a solução deste país e temos historicamente nos portado enquanto tal, as protagonistas e anunciantes de boas novas, de prosperidade, fé e perseverança, carregamos as energias ancestrais e a força dos orixás.”

Assim, Reparação: memória e reconhecimento é uma ferramenta política que fortalece a marcha coletiva. Ao lado da Marcha das Mulheres Negras 2025, reafirma que não há atalhos. Não basta “incluir” o povo negro em uma sociedade que foi erguida por eles: é preciso transformar radicalmente essa sociedade. E, mais uma vez, são as mulheres negras que abriram caminho, e continuam sendo o centro do debate político.

Lançamento do livro ‘Reparação: memória e reconhecimento’

Nesta sexta-feira (19), às 19h, será lançado em Salvador o livro Reparação: Memória e Reconhecimento, publicado pela Editora Fósforo. A obra resulta de um seminário promovido pelo Instituto Ibirapitanga, com curadoria da professora doutora Luciana da Cruz Brito, reunindo reflexões sobre justiça histórica, racismo e caminhos para uma sociedade mais igualitária.

O evento acontece no Zumvi Arquivo Fotográfico, no Pelourinho, com bate-papo entre a organizadora e os autores Alex de Jesus e Valdecir Nascimento.

Serviço:

O quê: Lançamento do livro Reparação: Memória e Reconhecimento
Quando: Sexta-feira, 19 de setembro, às 19h
Onde: Zumvi Arquivo Fotográfico – Rua Gregório de Mattos, 29, Pelourinho, Salvador – BA

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