
Um novo estudo do Observatório de Racismo nas Redes, desenvolvido pelo Aláfia Lab, lança luz sobre a escalada do racismo em ambientes digitais no Brasil e os desafios de responsabilizar os autores. Publicado na última quarta-feira (27), o relatório “Brasil, mostra sua cara: Retrato das vítimas de racismo online e o anonimato de seus agressores” reúne dados do Disque 100, serviço de utilidade pública do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, entre 2011 e 2025, revelando padrões de vitimização, autoria e a persistência do anonimato como barreira à justiça.
Segundo a pesquisa, 90% das vítimas registradas são negras, sendo 66% pretas e 24% pardas. Mulheres são maioria, representando 61% dos casos, e a faixa etária mais atingida concentra-se entre 18 e 40 anos, com destaque para jovens mulheres pretas de 25 a 30 anos. A presença recorrente desse perfil indica a força da interseccionalidade de raça e gênero na experiência do racismo digital.
Crianças e adolescentes também aparecem em números expressivos: 13% das vítimas tinham até 17 anos, índice que revela o risco precoce de exposição a práticas discriminatórias nas redes.
O Portal Umbu entrevistou Letícia Alcântara, jornalista, doutoranda em Comunicação na Universidade Federal da Bahia e pesquisadora responsável pelo estudo, para entender fatores que influenciaram a composição destes números ao longo dos anos.
“Analisando os números, observamos que, a partir de 2020, houve uma escalada progressiva nas denúncias. Entendemos que isso ocorreu porque o Disque 100 passou a aceitar denúncias também por WhatsApp e Telegram. A partir daí, os números cresceram de forma muito acentuada. Acreditamos que essa escalada tem dois fatores: primeiro, o que chamamos de “normalização” do discurso de ódio, sobretudo do racismo no ambiente digital.”
“As pessoas se sentem confortáveis porque cometem um crime e não são responsabilizadas criminalmente. Muitas vezes, o racismo aparece de forma codificada, em memes, emojis, piadas e, além disso, há o uso de perfis falsos e temporários”, explicou.
Em plataformas utilizadas por adolescentes e jovens adultos, como o Tiktok, se tornou comum a presença de comentários como “é sempre a mesma skin” e “o mal venceu” para assediar e deixar impressões negativas em vídeos e publicações de criadores de conteúdo negros.

“O segundo fator é a própria lógica de ganho comercial das plataformas. Pela economia da atenção, elas lucram com a controvérsia. Essas emoções negativas que vão ser despertadas são altamente lucrativas, a gente poderia assim dizer, porque ela atrai muita atenção. As pessoas ficam ali, compartilham, vão refutar aquelas ofensas também, mas aquilo vai gerar, vai reter pessoas ali e vai servir para eles como esse ativo importantíssimo que é a atenção das pessoas, que é uma coisa rara e um ativo muito caro hoje em dia.”
“A gente não vê por parte das plataformas o interesse efetivo de combate ao racismo, a outros crimes de ódio e a outras divergências e problemas sociais que ocorrem nesses ambientes digitais”, analisou a pesquisadora.
Com mais de 60% dos casos tendo mulheres como vítimas, a reportagem perguntou se o ativismo de mulheres negras por igualdade racial e de gênero poderia ser encarado como uma motivação para que elas tenham sido o alvo mais frequente durante a pesquisa. Letícia aponta que as causas da violência são independentes de qualquer mobilização, se relacionando com o longo histórico de machismo, misoginia e racismo do Brasil.
“A mulher brasileira está numa posição constante de vulnerabilidade. A gente vive num país extremamente machista. Os índices de violência contra a mulher aqui no Brasil são alarmantes, preocupantes, e eu diria até que são pouco civilizatórios. É um país muito violento com mulheres e muito racista também. Por mais que se pense que as mulheres negras são atacadas porque elas estão no enfrentamento ali, existem estudos do sociólogo Luís Valério [Trindade] que vão dizer exatamente o contrário: que essas mulheres são atacadas em momentos em que elas estão compartilhando alguma ascensão social. Não quando estão militando, brigando, mas quando elas estão compartilhando uma viagem internacional, um emprego novo”, pontuou.
“Quando elas estão felizes, achando que estão seguras, isso incomoda. A ascensão social da pessoa preta é uma questão simbólica. As pessoas estão ocupando o espaço que pessoas racistas acham que elas não deveriam estar, como quem diz ‘você está invadindo um espaço que não é seu, o seu lugar não é aqui’. E aí, por isso, se a gente for comparar com a violência de gênero que ocorre, por exemplo, em ambientes políticos, a gente vai ter uma história, por exemplo, de uma senadora que está no plenário fazendo o seu discurso, uma mulher negra, e vai ter um apresentador de TV que é o Danilo Gentili falando ‘nossa, nem parece senadora, parece a tia do cafezinho’”, comentou, relembrando o ocorrido com a professora e ex-senadora Regina Sousa (PT-PI) em 2016.

Quem agride?
Embora homens apareçam como principais suspeitos, os números revelam uma presença significativa de mulheres entre os autores das violações. Em 55% das denúncias, o agressor era do gênero masculino, enquanto 44% das ocorrências foram cometidas por mulheres. É importante destacar que 24,5% das denúncias (426 registros) não trazem informação sobre o gênero do agressor. Entre os homens, a faixa etária majoritária é de 25 a 40 anos.
Quanto ao perfil racial, observa-se uma predominância significativa de pessoas brancas, que representam 70,95% dos casos (486 ocorrências). Em seguida, aparecem suspeitos pardos (20,44%) e pretos (8,18%). O estudo também revela que pessoas negras representam 90% das vítimas de racismo em ambientes digitais, registradas no Disque 100, sendo que 66% das vítimas se declararam pretas, enquanto 24%, pessoas pardas. De acordo com o relatório, os dados sugerem um padrão de colorismo, em que indivíduos de pele mais escura são mais vitimadas por práticas de racismo.
Com esses índices, a reportagem perguntou se a falta de reconhecimento da própria identidade racial levaria pessoas negras a atuarem como agressores, de forma a estratificar a luta de coletivos como o Movimento Negro no que diz repeito à luta pela igualdade racial e ao combate ao racismo.
“O Movimento Negro tem um um lastro histórico bastante sólido nesta discussão e dessa compreensão que algumas pessoas, sobretudo de fora do movimento, podm ter sobre aquela coisa do separar para conquistar. A gente separado é muito mais difícil da gente conseguir avançar socialmente. Somos um país extremamente mestiço, com histórias familiares extremamente complexas que vão resultar em identidades múltiplas e cada um tem o direito, obviamente, de se identificar. E a gente observa que a questão do colorismo serve para a gente analisar socialmente e cientificamente como algumas pessoas são ainda mais afetadas por essas dificuldades sociais, por problemas sociais do que outras. Mas em nenhum momento o colorismo deveria ser utilizado para fazer essa segregação, no sentido de ‘vou defender que existe uma outro um outro grupo racial’, até porque não existe essa essa divisão racial.”
“O que a gente puxa nesse relatório, é que sim, há uma vitimização maior de pessoas pretas, retintas, mas fica muito claro que pessoas pardas são igualmente vítimas de racismo. Essa segregação e nada contribui, porque quando a gente soma, a gente vê que o número, que o volume de pessoas, de brasileiros que são afetados por esse mal, é grande e ele não se restringe a um grupo, ele é bastante amplo. A gente precisa lutar para poder combater o mal como um todo. Essas divisões só enfraquecem mesmo uma luta tão relevante e urgente”, disse.
O crescimento das denúncias
Os registros de racismo online mais que dobraram nos últimos cinco anos. Em 2024, o Disque 100 recebeu 452 denúncias, o maior número da série histórica. Entre 2011 e 2025, foram contabilizadas 1.739 casos. Pesquisadores apontam que a explosão pode estar ligada à polarização política, ao maior alcance das redes sociais e à ampliação do debate público sobre o tema, o que encorajou mais vítimas a denunciar.
Liderando em números absolutos estão estados como São Paulo (248), Rio de Janeiro (178), Minas Gerais (121) e Bahia (66). Mas, proporcionalmente à população, o Distrito Federal encabeça a lista com 1,2 casos por 100 mil habitantes, seguido do Rio (1,1), Espírito Santo (0,7), Minas (0,6) e São Paulo, apesar do maior número absoluto, aparece apenas na sexta posição, com 0,5 por 100 mil habitantes.
Futuro
Perguntada sobre possíveis diálogos com o poder público para utilizar o levantamento como base criação de leis ou políticas públicas, Letícia contou que a equipe está na fase de incidência política, mas que gostaria que, no futuro, o Ministério dos Direitos Humanos alterasse “algumas coisas” no formulário para que seja possível ter mais dados para compreender melhor o fenômeno social.
“A gente pretende também influenciar não só o poder público, mas também o judiciário. A gente quer que o judiciário compreenda como o racismo se dá nos ambientes digitais porque a gente entende que essas mudanças sociais são muito rápidas e existe um delay até que essas instituições, que precisam de fato do seu tempo de maturação, consigam compreender como é que isso se dá. Enquanto isso, vai-se passando uma boiada aí de pessoas que vão cometendo crime sem ser definitivamente punido, porque o judiciário não sabe ainda como lidar com isso. Temos um um amplo aparato de questão de histórico de luta, mas também dos estudos de humor, de meme, que vão ajudar. Então a gente tá muito nesse trabalho hoje em dia de trazer também consciência social para as pessoas”, explicou.
“Eles têm muitas estratégias e é muito difícil, de fato, combater por conta de tudo isso. Mas a gente está nessa luta. Eles correm, a gente continua correndo atrás deles e uma hora a gente pega.”