
Quando foi que dirigir virou sinônimo de perder o controle? Dirigir deveria ser um ato de mobilidade, mas quantas vezes nos transformamos no oposto, mais reativos, mais tensos? Dá pra pegar o pulso da cidade nesse exato momento.
Foi preso o homem acusado de matar um professor na BR-324 durante uma briga de trânsito. O caso é chocante, mas não é o único. Salvador teve 147 mortes no trânsito em 2024, o maior número dos últimos oito anos, um aumento de 24,6 % em relação a 2023. E o Brasil inteiro vive uma contradição cruel: em mais de 3.500 cidades, as mortes no trânsito igualam ou superam os homicídios por arma de fogo. No recorte dos 93 maiores municípios do país, mais de metade (51,6 %) mata mais no trânsito do que via tiros.
Esses números fazem pensar: se o carro pode matar mais que uma arma, talvez ele já não seja apenas um meio de transporte. Talvez tenha virado mesmo uma extensão do nosso poder e, em alguns casos, da nossa violência.
Essa ideia não é só impressão. Uma pesquisa da Temple University, nos Estados Unidos, mostrou que pessoas que veem o carro como extensão de si mesmas tendem a dirigir de forma mais agressiva. Isso porque percebem o espaço ocupado pelo veículo como parte do próprio território, algo que precisa ser defendido até com comportamentos violentos.
Não à toa, testemunhamos explosões emocionais diárias nas ruas. Eu mesma, dias atrás, estava em um carro de aplicativo quando o motorista perdeu a cabeça numa discussão com um motociclista. O homem caiu e, em vez de ajudar, o motorista saiu para gritar. Eu vi de perto a transformação: o carro, que deveria ser um abrigo, virou arma.
É paradoxal: nunca tivemos veículos tão grandes, seguros e confortáveis. Mas quanto mais blindados estamos por fora, mais monstros parecemos liberar por dentro.
O trânsito, no fundo, não cria violência, apenas revela o que já carregamos no peito: estresse, ansiedade, falta de empatia. E é claro que isso tudo se reflete na forma como a cidade pulsa: mais nervosa, menos amigável e até menos bonita. Estamos numa sociedade cheia de pressa, distraída pelo celular, estressada e que brutaliza a potência dos carros. A pergunta é: o que vamos fazer sobre isso?