Antes de ter filhos tudo era infinito e, por isso, eu me dava ao luxo do desperdício. A vida, a energia, o sentido de viver e a razão de trabalhar: nada tinha fim e tudo era gasto sem fazer muita conta. Eu me sentia naqueles jogos de videogame que, caso eu perdesse, era só apertar o “reset” para começar tudo de novo sem muita consequência. Mas quando pari senti o peso da finitude. O primeiro grande impacto disso foi passar a ter medo de morrer, algo que nunca tive, mas agora tenho verdadeiro terror (mais um assunto que tenho que levar para minha terapia).
A morte é algo inevitável e inesperado, mas eu não posso morrer. Me proíbo de morrer. Proíbo Deus de me levar. Tenho filhos e PRECISO estar aqui para eles pelo menos nos próximos 25 anos. Faz sentido? Não. Mas ser mãe é dançar macarena no terreno do sem-sentido. Pior do que isso: proíbo meus filhos de morrer. E aí entendi muitas coisas que vi minha mãe fazer comigo quando eu era criança, e depois quando eu era jovem. Entendi por que minha mãe deixava de comer as melhores coisas, para que eu pudesse comer. Entendi por que minha mãe tinha medo que eu saísse, tinha medo de que ficasse até tarde na rua, correndo todos os perigos que certamente eu corri, mas não pensava muito nisso, afinal eu era jovem e caminhava de peito aberto para tudo.
Eu também estava proibida de morrer para ela, e mesmo agora ainda devo ser, pois consideramos que não é natural que os jovens se vão antes dos mais velhos. Claro, isso tudo vem da nossa limitação em lidar com o tema “morte”, mesmo ela sendo a única certeza da vida. Não compreendemos que estamos aqui numa jornada com início, meio e fim. Achamos que vamos “ficar para a semente”, como diria a minha vó. Que somos plantas e que, se fizermos tudo certinho, vamos crescer em direção ao sol sem “prazo de validade”.
O segundo grande impacto de entender o peso da finitude foi que não bastava não morrer: era (é) preciso viver a vida de forma que meus filhos tenham orgulho da mãe que tem. Sem dúvidas, isso é o peso pesado dessa gama de constatações, que tento fazer não pesar sobre eles. Quando abrimos os olhos pela primeira vez, a nossa mãe é a primeira pessoa que enxergamos e isso é muito forte e simbólico. Para mim, o grande peso disso é o de me sentir observada o tempo todo, para além daquele momento mágico do imprinting, quando os bebês fixam os olhos nas mães ao nascer e assim criamos (as mães) nossa assinatura na alma deles.
Minhas atitudes, minhas falas, minha aparência, meu jeito de viver. Tudo é observado, computado, processado e muitas vezes imitado, pelos serumaninhos que vivem aqui em casa (acabei e ouvir “O Carimbador Maluco” de Raul Seixas na minha cabeça). Fazendo desses limões uma limonada, isso criou em mim uma gana que eu nunca havia experimentado antes: a de me cuidar DE VERDADE. De, por exemplo, não me deixar mais cair em crises de depressão e de que, caso eu recaísse, me comprometer a combatê-la, pedir ajuda. Afinal, não basta somente sobreviver à morte, eu também não posso “morrer em vida”, pois preciso estar bem para cuidar deles. Esta nova resolução me trouxe o sentido e a vontade de ser uma pessoa foda, uma profissional foda. De ser alguém admirável, boa, honesta, correta, pois eu quero que eles tenham uma referência positiva de pessoa e de caráter. E essa renovação de sentimentos e vontades foi o grande combustível para eu atingir objetivos que já havia desistido de alcançar. Voltei a ter sonhos, não só para mim, como para a coletividade e para a sociedade. Voltei a acreditar e militar por uma sociedade melhor, para que eles tenham por muito mais que 25 anos um lugar bom para viver.
Tão achando que foi muito? Tem mais! Viver este grande big brother doméstico também foi (está sendo) um grande choque pelo encontro com a minha própria sombra. É impossível esconder os defeitos dos filhos. Por mais que a gente disfarce, que criemos justificativas para eles e (muito mais) para nós mesmos, que coloquemos máscaras de bondade fake, eles sabem. Sim, eles sabem. Mas graças a Deus eles têm um olhar de compaixão muito maior que o nosso olhar julgador. Um dia, Cecília soltou um palavrão aqui em casa, com 3 anos de idade, e ficou escancarada a a boca suja que sempre soube que tive, mas que sempre foi um jeito descontraído, descolado e baiano de ser. Essa é uma característica que não consigo mudar e que até gosto em mim, mesmo enxergando hoje como algo um pouco feio. Mas tive que calçar as minhas pantufas da humildade e explicar que aquilo que eu fazia (e faço) é errado: “coisa de adulto”. Que os adultos fazem coisas erradas ou prejudiciais, e que isso parece sem razão, mas é assim que somos. Incluam nisso: dormir tarde (“por que você pode e eu não, mamãe?”), beber álcool, comer porcarias (“por não posso comer biscoito recheado?”), ou brigar (“você me disse que é errado gritar, mãe”).
Adotei para mim a estratégia de não jogar para debaixo do tapete essas coisas, pois, apesar de querer e estar trabalhando para ser uma pessoa melhor para mim e admirável para eles, eu não quero parecer perfeita, pois este é o começo da hipocrisia e do incabível. Falhamos muito e assumir nossos B.O.’s é o primeiro passo para ter uma relação sincera com a gente mesmo e com os pequenos. Muita gente acha que precisa melhorar uma série de coisas antes de ter filhos (caso queiram ter): um emprego melhor, uma casa melhor, um carro melhor, um casamento melhor. A lista, muitas vezes material, fica enorme e faz parte ter essas idealizações. Eu também as tive. Mas o que eu descobri foi que a verdadeira jornada começa depois de ter filhos. Que aí a gente encara mesmo nossa luz e nossa sombra, no espelho que os eles acabam sendo para nós involuntariamente. E temos que lidar com tudo isso com leveza, pois a vida dos filhos só a eles pertence. Eles não têm responsabilidade sobre nós, nem sobre a finitude do tempo, da vida e das coisas.
Por Brena Ferreira
Amei o relato!!!! ????
Lendo este belo texto, me faz lembrar da minha própria mãe. Quando ela me teve, era mais nova do que estou hoje, e me teve apesar de uma endometriose. Mesmo sofrendo com a doença, sempre via minha mãe alcançando suas conquistas para me mostrar que era possível. Mesmo nas suas crises mais graves, que lhe davam muito desânimo, ela queria me mostrar que era possível ter e realizar sonhos. Ela nunca foi muito de me proibir de sair ou limitar meus horários (porque eu nunca fui de sair muito rs), mas em compensação se preocupa constantemente se eu tô me alimentando saudável, se eu estou consultando tal e tal médico, se eu tô comprando utensílios de tal material porque o alumínio afeta o organismo, me marca em diversas publicações de estudos sobre algum alimento ou algum hábito. Como você, ela nunca quis tentar ser perfeita pra mim. Sempre escancarou pra mim seus bons e maus momentos. Encarou os julgamentos do restante da família de frente. Às vezes, parece até que ela é adolescente e eu sou a “tiazona” kkkkkkkk mas ela é e sempre vai ser a minha maior inspiração.