Foi justo em um Oito de Março que Marielle Franco decidiu tornar-se vereadora. A decisão veio quando derrubaram a casa de uma mulher, na Vila Autódromo, no Rio de Janeiro. “Decidi que deveria lutar contra esse tipo de violência também na via institucional”, escreveu Marielle em seu perfil no Facebook, ao acolher Dona Penha em seus braços. O relato da vereadora assassinada há seis anos junto ao motorista Anderson Gomes, no mesmo mês em que se comemora o Dia Internacional das Mulheres, integra o relatório final divulgado pela Polícia Federal neste fim de semana, quando finalmente três suspeitos de terem mandado matá-la foram presos.
A investigação aponta justamente a defesa do direito à moradia, causa que sensibilizava Marielle desde o começo de sua atuação política, como o principal motivo para a sua execução. Mas teria sido essa a única causa? É inegável que a grilagem de terras é um fator determinante para o crime ligado às milícias no Rio de Janeiro. No caso do projeto de lei n.º 174/2016, apontado pela PF como o motivo da “origem do planejamento do seu assassinato”, a atuação da vereadora foi discreta e ela nem sequer discursou no dia da votação (1).
Outros seis vereadores também votaram contra o PL, mas segundo o relatório da PF, o vereador Chiquinho Brazão, autor do projeto de lei – que, inclusive, foi aprovado – ficou irritado com Marielle Franco. Por quê? O próprio relatório da Polícia Federal afirma que “as declarações podem conter apenas parte de um contexto mais complexo e desconhecido pelo algoz (Ronnie Lessa) da Vereadora”. A execução brutal de Marielle Franco levanta outras questões: Quem pode ou não estar na Câmara de Vereadores? É possível para uma mulher negra e defensora dos direitos humanos ocupar um lugar na política, esse espaço de poder historicamente marcado pela presença masculina?
Marielle chamou a atenção de muita gente ao se tornar, ainda no começo de sua carreira política, a quinta vereadora mais votada do Rio e a segunda mulher mais votada para o cargo de vereadora em todo o país. Nas urnas, superou inclusive tradicionais políticos cariocas. Era considerada uma mulher forte, articulada e aguerrida, que buscava conscientizar as pessoas sobre os seus direitos.
Os dois anos de seu mandato foram marcados pela defesa das mulheres, da igualdade racial e da agenda LGBTQIA+. Causas que geravam polêmica no já polarizado Brasil de 2018, gerando engajamento nas redes sociais e contribuindo ainda mais com a visibilidade da vereadora. Ela fazia política de uma forma diferente, “com afeto e gestada no seio do matriarcado africano. Ela era a voz dos invisíveis”, afirmou a deputada estadual Mônica Francisco (PSOL), em entrevista ao portal Gênero e Número (2). Marielle Franco ocupava cada vez mais espaço e incomodava quem não conseguia conceber a democracia como espaço de diálogo entre ideias diferentes.
É importante, portanto, considerar e discutir a dimensão de gênero em suas diversas interseccionalidades no assassinato de Marielle Franco. “Por que escolheram a Marielle? Sem dúvida porque é uma mulher negra, eles tinham certeza de impunidade. No dia seguinte, no velório, já tinha uma multidão. A resposta que a sociedade deu teve a ver com a grandeza do que Marielle representava, coisa que eles nunca foram capazes de enxergar”, explicou Marcelo Freixo, presidente da Embratur e amigo de Marielle Franco em post em sua conta no Twitter (3).
O então vereador e atual deputado federal Chiquinho Brazão e seu irmão Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro, seriam os mandantes do crime. Segundo a delação premiada do ex-policial militar Ronnie Lessa, eles estariam insatisfeitos com a atuação de Marielle em áreas criminosas de interesse da família, relacionadas com milícias, regularização fundiária e defesa do direito à moradia. O delegado Rivaldo Barbosa, ex-chefe da Polícia Civil do RJ também preso no domingo, 24 de março, que deveria ter protegido Marielle e solucionado o caso, protegeu o crime. Não se pode banalizar, nem minimizar os diversos graus de perversidade envolvidos nesse assassinato.
Antes de tudo, é estarrecedor saber que as origens da execução da vereadora estejam entranhadas no poder público do Rio e que o delegado que primeiro abraçou a família após o crime estava envolvido com o planejamento da ação. Camadas de hipocrisia se somam quando sabemos que o primeiro delegado do caso, Giniton Lages, afastado de suas funções e suspeito de desviar deliberadamente o curso das investigações, é autor do livro Quem Mandou Matar Marielle?
Marielle Franco tornou-se conhecida no mundo inteiro como símbolo da luta pelos direitos humanos, de um jeito de fazer política mais perto das pessoas. Em diversos debates e conferências internacionais, sua história foi e tem sido lembrada durante os seis anos em que ecoavam as perguntas “Quem mandou matar Marielle? E por quê?”. Essa memória viva, que mantém Marielle presente, foi determinante para impedir a impunidade dos envolvidos no crime.
Sua morte contribuiu com o avanço da conscientização sobre a violência de gênero na política. Foram criados observatórios e forças-tarefas de enfrentamento ao problema. No Brasil, desde agosto de 2021, a Lei 14.192 estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra as mulheres. Um passo importante, mas não suficiente para transformar uma estrutura de poder quase cristalizada e uma cultura política acostumada a ver homens brancos nas posições de liderança.
Uma das características desse tipo de violência é que ele busca desencorajar a participação das mulheres como um todo na política para preservar papéis de gênero e minar as instituições democráticas. Vale lembrar que as agressões a Marielle não cessaram com sua morte. Ao contrário, tentaram desqualificá-la com mentiras e fake news compartilhadas nas redes sociais. Mas as sementes plantadas com seu trabalho seguem desabrochando.
A descoberta dos mandantes e das causas que teriam levado ao crime também aconteceram no mês de março, mês histórico de luta pelos direitos das mulheres em todo o mundo. Longe de encerrar a discussão, que as tão esperadas respostas sirvam para aprofundar o debate sobre a presença das mulheres na política e como as várias dimensões de gênero podem fortalecer a nossa democracia.
(1) https://politicalivre.com.br/2024/03/marielle-teve-atuacao-discreta-em-projeto-de-lei-sob-suspeita-da-pf-de-originar-assassinato/#gsc.tab=0
(2) https://www.generonumero.media/reportagens/2018-o-ano-da-violencia-politica-e-da-morte-de-marielle/
(3) https://twitter.com/MarceloFreixo/status/1771881286371606575