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Ori, memória e ancestralidade: A travessia de Vovó Cici pela Feira Literária de Serrinha

Vovó Cici compartilha sua sabedoria  resgatando a importância da memória, da espiritualidade e da oralidade na literatura que conecta passado, presente e futuro

Foto: Adriane Rocha


Era sua primeira vez em Serrinha, cidade a 143 km de Salvador. Com olhos atentos e o sorriso de quem carrega séculos de histórias no peito, Nancy de Souza Silva, conhecida carinhosamente como Vovó Cici, chegou à Feira Literária Internacional de Serrinha (FELIS) como quem reencontra um livro esquecido na gaveta: com um olhar simples, sincero e cheio de felicidade.

A FELIS, que em 2025 chega à sua segunda edição, é um encontro de vozes, memórias e saberes que atravessam gerações. Com programação gratuita voltada para crianças, jovens e adultos, o evento é um espaço de valorização da palavra como herança e ferramenta de transformação. Foi nesse cenário — entre livros, cantigas e afetos — que Vovó Cici se fez presente: não apenas como convidada, mas como mestra, trazendo seus cantos, ensinamentos e ancestralidade para o coração do sertão baiano.

Surpresa com a imponência da cidade, com sua gente acolhedora e, especialmente, com a grande igreja do século XVIII que domina o centro histórico, ela fez questão de registrar:
“É mais uma cidade que guardo no meu coração, mais um portal de conhecimento que se abre para mim.”

Mas Vovó Cici não veio apenas visitar. Veio partilhar. Partilhar cantigas, histórias, lembranças e ensinamentos. Nascida e criada em Salvador, ela tem laços afetivos com famílias de Serrinha, como a do jornalista e curador da FELIS, Ricardo Ishmael, e do advogado e irmão de santo Dr. Saulo, figura de múltiplas conexões espirituais e humanas. Na FELIS, sua voz ecoou como um canto antigo, daqueles que os mais velhos entoam para lembrar quem somos:
“Eu sou uma avó, viu?” — disse, com firmeza e doçura.

E como toda avó preta que carrega saberes enraizados na ancestralidade, ela ensinou com afeto e rigor: “Aquela pessoa que não respeita o outro, não se respeita. E quem não se respeita, não tem como passar nada de bom.”

Iniciada em Ifá, Vovó Cici falou de espiritualidade com simplicidade e profundidade. Para ela, o saber não é privilégio, é responsabilidade:  “Aquilo que você teve a oportunidade de aprender e não ensinou… você vai ter que responder lá na porteira, quando seu ciclo nessa vida terminar”, disse com os olhos marejados de quem aprendeu muito — e segue ensinando com generosidade.

Quando questionada sobre o que significa “memória”, não titubeou: 

“Eu ainda estou aprendendo o que significa a palavra memória. Não sei quantas vezes vou ter que voltar para continuar aprendendo. Mas, do meu lado, é o seguinte: vocês falam de saberes ancestrais… e uma das primeiras coisas que herdamos dos nossos ancestrais são as cantigas. A gente ouve o som e a imagem fica na memória.”

E então cantou, em iorubá, reverenciando Ori, o primeiro Orixá — a cabeça. Para ela, tudo começa com Ori e com calma: “Quando o Ori nasce, ele já escolheu o futuro dele, vindo de um passado muito distante. E, nesse momento em que está no presente, procura fazer coisas referentes ao passado, para que, quando chegar no futuro espiritual, ele tenha o Orun Rere, que é o céu da calma. E sem calma, a gente não aprende, não faz nada. Tem que ter calma. Calma e paciência. Uma anda com a outra.”

A literatura de Vovó Cici: saberes de gerações que atravessam palavras e corpos

Vovó Cici não escreve apenas com as mãos. Escreve com o corpo inteiro — com os cantos que embalam, com os gestos que acolhem, com a escuta que cura. Seus livros são a transcrição de uma vida entrelaçada aos mitos, ritos e ritmos do seu povo.

É autora de obras como O Céu da Calma, onde compartilha o saber ancestral por meio das histórias de sua vida e da coletânea de memórias passadas pelas gerações de sua família. Mas sua escrita vai além das palavras: são testemunhos de resistência, celebração da cultura negra, ensinamento espiritual e reverência à ancestralidade.

Em Vozes do Aiyé, une ensinamentos de Ifá a relatos de sabedoria popular, com base nos conselhos dos mais velhos. Já em Cantigas e Saberes, presta um tributo às canções e cânticos de sua comunidade, resgatando a importância da oralidade na preservação da cultura africana no Brasil. Para ela

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