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“Orgulho, vitória e teimosia”: Como o Ilê Aiyê se tornou o mais belo dos belos e segue resistindo como bastião da cultura afro em Salvador

Em entrevista ao Portal Umbu, Antônio Carlos dos Santos Vovô fala sobre como a iniciativa de Mãe Hilda Jitolu nasceu e cresceu até se tornar o bloco afro mais antigo do Brasil

Quando cheguei à Senzala do Barro Preto, sede do bloco afro Ilê Aiyê, no Curuzu, vi uma movimentação atípica na porta do espaço. Dois caminhões estavam estacionados na frente da sede e diversos trabalhadores descarregavam equipamentos de filmagem do veículo. Uma gravação iria acontecer no local em alguns minutos. No andar superior da Senzala, na varanda do terceiro andar, observando todo o trabalho, estava Antônio Carlos dos Santos Vovô, presidente e fundador do Ilê Aiyê. E meu entrevistado.

Vamos ao seu encontro e Vovô do Ilê, como é mais conhecido, nos recebe com um aperto de mãos e um sorriso tranquilo. O sorriso, no entanto, não esconde o cansaço que Vovô sente e revela à reportagem. Também, pudera: no dia anterior, o Ilê Aiyê subiu ao palco do Festival de Verão Salvador. A convite de Daniela Mercury, o “Mais Belo dos Belos” se apresentou ao lado de Margareth Menezes e da Rainha do Axé.

Além da agenda intensa, que é comum do verão baiano, Vovô do Ilê precisa ainda colocar um bloco na rua. Para isso, é preciso supervisionar cada detalhe para entregar ao público um dos espetáculos mais lindos do Carnaval de Salvador. Em 2024, o Ilê Aiyê volta a desfilar três dias na folia baiana. Além da tradicional saída do bloco do Curuzu no sábado, a agremiação sai na segunda e terça-feira de carnaval.

Apesar de o céu estar encoberto de nuvens naquela tarde de segunda-feira (29/01), fazia calor quando a reportagem do Portal Umbu chegou para a conversa. Na entrevista de quarenta minutos que concedeu ao repórter Jadson Luigi, Vovô do Ilê respondeu todas as perguntas, contou diversas histórias e revelou os planos para a celebração de meio século de existência do Ilê Aiyê. Confira:

No dia 1° de novembro de 1974, Vovô do Ilê e Apolônio de Jesus fundaram o Ilê Aiyê, o primeiro bloco afro do Brasil. Na ocasião, os fundadores tinham como objetivo preservar e fomentar as tradições africanas e afro-brasileiras existentes na Bahia, além de denunciar e combater o racismo. Antes de fundar o grupo cultural, Vovô do Ilê fez cursos técnicos de Patologia Clínica e de Engenharia Eletromecânica, além de ter trabalhado no Polo Petroquímico da Bahia.

“Eu me considero um elemento que conseguiu escapar dessa caixa, aqui de Salvador e do Brasil, que é muito racista. Desde garoto, tenho consciência de ser uma pessoa negra, tenho orgulho de ser negro e da formação que mãe [Mãe Hilda Jitolu] nos dava, pois ela dizia que nós não devemos ser 10, tem que ser 11, sempre um pouco na frente. Essa formação não foi só minha, mas também de outros jovens aqui do Curuzu como Apolônio, que nos motivou a criar o primeiro bloco afro do Brasil”

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Para Vovô do Ilê, o processo de construção e fortalecimento do Ilê Aiyê é contínuo. Desde que foi fundado, a proposta é que o grupo cultural seja dirigido e formado por pessoas negras_. “Temos tentado manter isso até hoje. Conseguimos muitas conquistas, mas ainda tem muitas coisas a serem feitas. Esse ranço da escravidão ainda é muito forte aqui e, desde o início do Ilê Aiyê, para sair no bloco, era preciso assumir sua negritude. Acredito que essa foi uma das primeiras contribuições do Ilê Aiyê”_.

Reconhecimento

No último dia 23 de janeiro, a prefeitura de Salvador e o Governo do Estado anunciaram as programações do Carnaval de Salvador. A gestão municipal comunicou que o tema da folia deste ano é Salvador Capital Afro, o objetivo é exaltar a cultura afro-brasileira dos blocos afros da capital. Já o tema do Estado é: 50 Anos de Blocos Afro. Nossa Energia é Ancestral.

O reconhecimento da contribuição dos blocos afros pelas gestões estaduais e municipais chega em boa hora. Em 2024, entidades culturais negras comemoram datas importantes. O Ilê Aiyê celebra 50 anos, o Afoxé Filhos de Gandhy, 75, o Olodum e o Malê Debalê, 45, e a Banda Didá 30 anos. Questionado sobre a homenagem feita pela prefeitura e o Governo do Estado, Vovô do Ilê disse:

“Ela representa uma vitória nossa. São 50 anos de blocos afros, não é só o Ilê Aiyê. Tem blocos afros no Brasil, no Chile, Argentina, tem muitas bandas percussivas nos Estados Unidos e na Europa. Porém, não queremos que a homenagem fique restrita apenas ao Carnaval. As músicas dos blocos afros, normalmente, em rádio, não tocam. Os artistas daqui, não negros, poucos cantam músicas de blocos afros. São músicas muito bonitas, fortes e transformadoras, que informam à Bahia e ao Brasil sobre África, sobre grandes revoluções, mostrando a Bahia negra, Pernambuco, Maranhão e o Equador”, explica.

Ainda sobre as músicas-temas do Ilê Aiyê, Vovô complementa: “A música-poesia também tem muito dessa questão do resgate da autoestima e fortalecimento do povo negro. Você vê que muitos artistas negros daqui não tocam nessa questão racial porque eles não querem perder o público deles. Porque pensam que isso é perigoso e podem perder espaço. Então, essa luta também é nossa. Você tem artistas brancos que tocam músicas do Ilê Aiyê e de outros blocos afros, mas é preciso ter mais gente engajado nessa luta”, analisa.

“Tenho essa preocupação imensa de fazer o dinheiro e a moeda circular entre a gente, por isso que tem uma placa lá em cima que diz assim: não me peça a única coisa que tenho para vender. Tem muita gente que não gosta porque aqui [no Ilê Aiyê] fazemos filantropia, mas na hora do negócio, a negrada não quer pagar, quer entrar de graça”, complementa.

Política

Durante o evento de lançamento da programação do Carnaval, o prefeito de Salvador, Bruno Reis (União Brasil) anunciou que os blocos afros estão isentos de pagar impostos como ISS, IPTU e TFF. “É muito importante porque, Carnaval, hoje, se chama “Carnanegócio”. Acabou o tempo em que a gente se reunia aqui e chamava o pessoal para brincar o Carnaval. Hoje, é patrocinado, precisa contratar equipe, produtora e você, para colocar um bloco na rua, além dos gastos internos, com roupa e produção, tinha muitos encargos com a prefeitura. Então, é muito importante ter a isenção desses impostos, principalmente para entidades menores. Então, é muito bem-vinda essa decisão do prefeito”.

Depois de todo esse reconhecimento vindo de agentes públicos, Vovô quer que tanto a sociedade quanto os políticos concentrem suas ações no combate ao racismo. Para o presidente do Ilê Aiyê, é preciso que a comunidade negra equilibre a diversão com a luta política. “Tivemos que cobrar dos partidos políticos, também de esquerda e direita. Todo mundo só quer voto. O branco não vota em negro e o negro não vota em negro. Então, isso tem que rever porque, se isso aqui [Salvador] é a Roma Negra, capital da negritude e terra do axé, quando você chega para tirar uma fotografia nas mesas de decisão, só tem brancos e um ou dois negros”, argumenta.

Em entrevista ao grupo A Tarde, Vovô do Ilê revelou que a parte social do Ilê Aiyê está paralisada após perder o patrocínio. No lançamento de ações para o Carnaval deste ano, a prefeitura de Salvador anunciou melhorias para a Escola Mãe Hilda Jitolu como uma das medidas de apoio ao “Mais Belo dos Belos”.

“A revitalização começa pela Escola Mãe Hilda Jitolu, mas será uma revitalização geral aqui na Senzala. Temos um projeto que estamos tocando com alguns parceiros e, com certeza, este ano iremos retomar as atividades com o projeto de extensão pedagógica que contempla a Escola Mãe Hilda e os cursos profissionalizantes. Junto com a Prefeitura e outros parceiros, iremos retomar essas atividades”, explica.

Segundo Vovô do Ilê, a parte social que o grupo promove é iniciativa de Mãe Hilda Jitolu, que propôs ao filho ensinar os meninos do bairro a tocar tambor. Mãe Hilda quis ajudar as mulheres do bairro, foi aí que solicitou novamente ao filho que comprasse máquinas de costuras e começou os cursos profissionalizantes da Escola.

“Fazíamos também livros de músicas, que depois de algumas orientações viraram os cadernos de educação. Continuaram tendo as letras de músicas e os temas. Tínhamos uma equipe aqui com Jonathan Conceição, Marcele, André Siqueira, Arany, Makota Valdina, Jaime Sodré, que eram os facilitadores”, explica.

A Noite da Beleza Negra, evento realizado anualmente para escolher a Deusa do Ébano do Ilê Aiyê, é reconhecido por fomentar a auto estima de mulheres negras. Para Vovô do Ilê, o concurso é uma das grandes ações afirmativas que o “Mais Belo dos Belos” promoveu.

“Desde o primeiro ano que existe a escolha da rainha do bloco. Em 1980, que foi sugerido que batizássemos o evento de Noite da Beleza Negra, a primeira vez que foi anunciado a primeira edição do concurso foi um choque na cidade. Com o passar dos anos, a Noite da Beleza Negra se transformou em um elemento muito forte. Há candidatas estrangeiras, de outros estados, do Recôncavo, doutoras, que sonham, desde criança, em ser a Deusa do Ébano do Ilê Aiyê.”

Nesses 50 anos de existência, o Ilê Aiyê está com muitos planos para comemorar com o público.

“Vamos fazer eventos aqui na sede, um show na Concha Acústica, não sei se vai ser no aniversário do bloco, ou antes. Até novembro, vai ter uma programação extensa que está sendo preparada. Também estamos agendando uma turnê nos Estados Unidos e na Europa. Queremos também fazer uma turnê nacional”, revela.

No próximo domingo (4), o Ilê Aiyê realiza, na Senzala do Barro Preto, no Curuzu, o ensaio geral do bloco, a convidada da edição é a cantora Daniela Mercury.

Quando questionei qual palavra define ou traduz esses 50 anos do Ilê Aiyê, Vovô respondeu:

“Orgulho, vitória e teimosia, porque você tem que ter muita perseverança para conseguir manter isso aqui. Não tem só eu sozinho, tem a diretoria e uma série de parceiros”, finaliza.

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