O que sua forma de olhar revela sobre você?
Dia desses, um grupo de alunas veio me procurar para um trabalho sobre a cultura corporativa brasileira. A ideia era relacionar os hábitos e costumes do Brasil e dos Estados Unidos, onde dou aulas de comunicação estratégica, com o jeito de fazer negócios de cada país. Elas fizeram uma pesquisa inicial, e depois trariam questões sobre o que mais lhes chamou a atenção.
No dia marcado, foram logo perguntando das formas da gente se cumprimentar: “É verdade que os brasileiros, mesmo em reuniões de negócios, se cumprimentam dando dois beijos no rosto e os homens apertam e sacodem as mãos, podendo dar um tapinha nas costas um do outro?”. O espanto era porque, nas Terras do Tio Sam, não é comum as pessoas se tocarem ao serem apresentadas, principalmente em ambientes profissionais.
“É aceitável e até comum chegar cerca de 15 minutos atrasado para uma reunião de trabalho?”, perguntou outra aluna, meio incrédula. Na rotina de reuniões e eventos que têm hora para começar e também para terminar, é quase surreal pensar em encontros que tranquilamente começam com atraso.
Expliquei que não dava para generalizar nenhuma dessas características, mas que muitos brasileiros costumam ser mais informais e afetuosos que os norte-americanos. Na minha experiência com comunicação corporativa em empresas privadas e no governo, gente fala sobre amenidades durante as reuniões de trabalho e é comum tratar de negócios enquanto comemos.
Talvez seja um jeito mais leve e flexível de ser. Falamos sobre como essa flexibilidade às vezes descamba no famoso “Brazilian way”, o jeitinho brasileiro, que pode ter um viés negativo, quando sugere a quebra de regras ou descamba na corrupção, ou positivo, quando apresenta soluções criativas e inovadoras para problemas.
Os direitos trabalhistas também variam bastante: 30 dias de férias no Brasil contra no máximo três semanas por lá. Isso muda quando se trabalha com educação. Daí, são quase três meses de férias, só que não remuneradas. Décimo-terceiro salário e um terço de férias pagas não existem, nem licença-maternida de quatro meses. As mães estadunidenses voltam a trabalhar em menos de um mês após o nascimento dos bebês.
São muitas as diferenças, mas para mim, a que mais chama a atenção é o olhar. Um jeito de olhar no olho e de olhar para o outro que é nosso. Percebi de uma maneira muito marcante o que me fazia brasileira na primeira vez que saí do Brasil. No metrô cheio de gente em Nova York, a cada vez que alguém rompia a linha invisível de distância aceitável de outra pessoa, escutava um pedido de desculpas. Nunca tinha ouvido tantos “excuse me” (com licença) e “sorry” (desculpa). Todo um cuidado para não invadir a individualidade do outro. Sim, o individualismo é uma característica cultural marcante nos Eua. Eu respeito o seu espaço e você respeita o meu. E isso se reflete no olhar.
Mesmo no metrô lotado, quase ninguém “olha para a vida” de ninguém. Meu olhar estrangeiro estranhou a falta de olhares que se cruzam. A criança que chora, o homem que lê, a senhora com a bengala. Cada um com a sua vida. Olhares que não expressam abertamente alegria, nem descontentamento, aprovação ou surpresa. Me senti estranha e entendi que ser estrangeira é ser diferente de um jeito profundo. Uma diferença tão grande que permite encontrar, tão longe de casa, uma parte da própria identidade.
De volta ao Brasil, já no avião a gente percebe a diferença. Olhares se cruzando, cumplicidade e risos. Meu coração se sente afagado, mas também estranha as cenas em que o olhar sobre o outro parece cruzar um certo limite. Quando o tio, quase dois anos sem ver a sobrinha, comenta assim que se reencontram: “Você vai perder aqui no Brasil esses quilos que ganhou fora, né?”. Ou o amigo que comenta: “Você ganhou uns quilinhos nesses anos, não é?”. Eu testemunhei essas duas cenas de reencontro. Brasileira que sou, não me contive e reagi: “Vocês passam quase dois anos sem ver a pessoa e é isso o que têm a dizer?”
Ela já tinha o discurso pronto: “pois é, engravidei, tive filho, ainda estou amamentando e, caso não saibam, meus órgãos ainda estão voltando pro lugar. Então o corpo mudou também.” Mas é chato ter que justificar o próprio corpo diante do olhar do outro, que observa e não se contém. Extravasa uma fala que é também um julgamento. E estamos entre pessoas que se amam e se querem bem.
Minha orientadora, a professora Linda Rubim, diria que são as “tiranias da intimidade”. Como nós, mulheres, somos cobradas de tantas formas sobre como o outro vê o nosso corpo. Em que medida nossa liberdade de olhar também nos aprisiona? Em que medida nosso jeito informal derruba barreiras que poderiam nos defender de comentários que não apenas irritam, mas que podem também machucar?
Volto a pensar em nosso modo de olhar e o que ele diz sobre nós mesmos, sobre nossa cultura. O que nós observamos em nós e nas outras pessoas. Já parou para pensar o quanto o seu jeito de olhar revela sobre você?