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Obituários negros: o papel da imprensa brasileira no apagamento histórico de figuras negras

Neste Dia de Finados, o Portal Umbu revisita o tratamento dado pelo estado e pela imprensa aos negros no Brasil no século XIX

“Foram-se a escravidão e o Império, vieram a liberdade e a República – com sua suposta igualdade de direitos – mas as condições de vida (e morte) dos africanos e seus descendentes em Salvador, bem como no restante do Brasil, não mudaram para a melhor”, assim começa o parágrafo de conclusão de “Geografia da morte: a cultura fúnebre e os cemitérios de Salvador oitocentista (1860-1900)”, artigo de autoria de Francisco de Paula Santana de Jesus, publicado em 2014 na revista Monções, do curso de História da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

O texto revisita costumes e normas sociais que vigoravam no século XIX, no contexto funerário e cultural, que tinham algum impacto na vivência de estrangeiros não católicos – como alemães e britânicos – e afro-brasileiros, que àquela época, ainda tinham que enfrentar, em vida algumas mazelas como a escravidão e a estratificação social. Pensando o Dia de Finados sob a ótica do mês de celebração da Consciência Negra, te convidamos a acompanhar como, para além da manifestação da estratificação social que se manifestava também nos ritos fúnebres e na localização do local de eterno repouso de pessoas negras, a imprensa, deliberadamente, optou por esquecer de homenagear, mesmo na hora do adeus definitivo, personagens negros que marcaram seu tempo.

Jazigo de Cosme de Farias, o rábula negro que carregou consigo o título de “advogado dos pobres” no Cemitério Quinta dos Lázaros. Foto: Reprodução/ABI

Hoje, dia de 2 novembro, é a data de rememoração dos Finados. Uma data de profundo significado cultural e espiritual, em que se recorda e homenageia entes queridos que já deixaram este plano. Estabelecido como feriado por lei em 2002, o momento destaca a diversidade cultural e a riqueza de tradições do país, uma vez que sua constituição marcada pela influência religiosa de povos de África, indígenas e europeia.

Essa miscelânea sacra coexistiu tendo a fé católica como a religião oficial do Estado, então, Imperial e os rituais de matriz africana como transgressora até que, em 1871, o paradigma foi quebrado no Cemitério do Campo Santo, quando a ausência do Capelão fez com que apenas o ritual africano fosse realizado. A segregação vigente desconsiderou que aquele fosse um rito considerável, evidenciando o racismo também na sacralidade.

Francisco de Jesus aponta, em seu artigo, que fatores como uma epidemia de cólera em 1855 e a Cemiterada, que levou o Campo Santo a ser destruído pela população em 1836, foram fatores que levaram a abertura de cemitérios em regiões periféricas de Salvador para “transferir os defuntos para locais onde o odor de sua putrefação não afetasse a saúde dos vivos” e “abrigar os defuntos dos residentes dessas áreas, como o de São Bartolomeu de Pirajá e o de Nossa Senhora de Brotas”.

Cemitério Campo Santo. Foto: Divulgação

O abismo social – tanto econômico quanto racialmente falando –, era explicitado pela ocupação dos cemitérios. Enquanto o Campo Santo era buscado pela “elite”, composta pelos brancos, intelectuais e parte da classe média por se tratar de uma necrópole de prestígio. No entanto, por ser administrado pela Santa Casa, o cemitério também recebia falecidos desafortunados, não incomumente enterrados em covas rasas. Que se evidencie: pessoas negras, como Maria do Patrocínio, uma mulher preta, africana e liberta, poderiam ter toda a pompa de cuidado de um enterro digno, desde que dispusessem de recursos para a compra da sepultura.

Para os demais negros, mestiços e escravizados, restavam o cemitério de Nossa Senhora de Brotas, aberto em 1876, que ficava a 3 km do centro da cidade, numa área essencialmente rural; o cemitério de Bom Jesus da Massaranduba, em Itapagipe, também fora do perímetro urbano, que recebia os recém-chegados de África para um sepultamento precário; e o cemitério da Baixa de Quintas, o Quinta dos Lázaros, para onde foram relegados artífices e os miseráveis de Salvador, que, sem surpreender ninguém, sofreu, de 1856 a 1912, com o descaso do poder público e de administradores subsequentes que não fizeram melhorias significativas em sua estrutura nem planejaram a otimização de vias de acesso como a ladeira da região.

O apagamento para além da vida

O racismo funerário – se é que podemos chamar assim -, é uma manifestação de discriminação que beira o descolamento da realidade, mas ela não está sozinha no processo de exclusão e apagamento de pessoas negras na hora da morte. Aliada de sempre das formas de opressão, a imprensa também teve e tem papel fundamental no esquecimento dos célebres personagens negros que, por meio de suas consciências em movimento, se tornaram agentes de mudança em contextos sociais que facilitavam a luta por direito e visibilidade.

Para entender o processo de apagamento histórico de figuras negras por meio da não publicação de seus obituários, bem como a importância de recuperarmos a memória sobre vida e morte dessas figuras, o Portal Umbu conversou com Osnan Souza, historiador pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e mestrando na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), para falar sobre o tema.

Osnan Souza, historiador e pesquisador. Foto: Arquivo

Em setembro deste ano, Osnan Souza integrou o II Seminário Internacional de História e abordou, ao lado do também historiador Samuel Nepomuceno, “A Imprensa Baiana na República: possibilidades de pesquisa”.

“Desde a Iniciação Científica que venho trabalhando com a imprensa republicana. Na minha pesquisa eu pude observar que a imprensa teve um forte poder de influência política e social durante a República. O jornalismo tinha uma relação direta com o poder político. Os jornais posicionavam-se como ‘aliados do povo’, ao passo que criminalizavam as suas mais diversas atividades”, contou.

“Eu estou folheando e analisando, desde 2018 (no IC), jornais como o Diário de Notícias, Gazeta de Notícias, A Notícia, A Tarde, Correio do Brasil, A Manhã, dentre outros e não percebi nas discussões acerca da história do Brasil, política, economia, cultura, referências à figuras negras. Na verdade, é algo que não vejo ainda nos dias de hoje. Se porventura nós pensarmos no caso do Major Cosme de Farias, podemos ter uma percepção melhor. Um rábula negro, um grande líder popular baiano, atuou em diversas áreas sociais, desde mobilização contra fome e carestia até o exercício jurídico para soltar negros presos injustamente. E mesmo sendo um jornalista, hoje não recebe atenção da imprensa baiana.”

Perguntado a respeito da exclusão de personagens históricos negros na produção de obituários jornalísticos, Osnan Souza exemplifica o tratamento distinto dado, numa mesma notícia, para uma figura histórica negra e outra branca.

“No jornal A Notícia, de 12 de maio de 1915, foi possível identificar algo muito raro, pelo menos nas minhas buscas. A matéria de capa trazia as comemorações do 13 de maio e havia uma foto e um pequeno texto sobre José do Patrocínio, o abolicionista negro. No entanto, quem tomava maior espaço era a princesa Isabel, com o seu nome estampado no título da matéria. Não vemos, por exemplo, a imagem de Luiz Gama. Não vejo isso também em outras ocasiões. Não consegui encontrar imagens de rememoração de Juliano Moreira, por exemplo. É difícil, no próprio dia 2 de novembro e em outras datas, como o aniversário da Proclamação da República, embora traga figuras militares, não é posta nas páginas nenhuma figura negra”, explicita o historiador.

Em 2019, o jornal estadunidense The New York Times revisitou o apagamento racial da imprensa e propôs a publicação de obituários póstumos como forma de celebração de ícones negros e suas obras. Perguntado se recontar a História dando visibilidade a agentes antes excluídos colabora para a discussão da igualdade racial, Osnan disse:

“Eu acredito – e talvez posso estar equivocado – que mesmo hoje, na era das redes sociais, plataformas digitais e influenciadores na web, a imprensa “tradicional” ainda tem um grande papel e poder na sociedade. Inclusive, porque essa imprensa tem se reinventado e acompanhado as transformações tecnológicas. Penso que sim.”

Ele continua: “Refletir a história, a partir de outros pontos de vista, trazendo à luz aqueles sujeitos que tiveram atuações importantes em diversos setores sociais, e foram invisibilizados por serem negros. Pensemos, por exemplo, como parte da população de Salvador só conhece Cosme de Farias pelas reportagens sensacionalistas sobre a criminalidade no bairro. Mas desconhece quem foi a figura cujo nome batiza esta localidade. O movimento pode ser feito atinente a Juliano Moreira. Não é possível que apenas conheçamos a ‘Rótula do Juliano’, ou o hospital psiquiátrico ‘Juliano Moreira’. E Juliano Moreira, o médico, psiquiatra e intelectual?”, questiona.

Luiz Gama, o advogado abolicionista – Foto: Reprodução/Fundo Correio da Manhã
José do Patrocínio, o jornalista e escritor abolicionista – Foto: Reprodução/História da Literatura Brasileira
Juliano Moreira, o psiquiatra que combateu o racismo científico – Foto: Arquivo Nacional

“Acredito que a imprensa tem uma função importante, junto com outras instituições, nessa tentativa de construção de propagação de uma História mais crítica, reflexiva e que busca dar notoriedade àqueles que foram deliberadamente postos à margem.”

Apesar de não definir se havia divisão social e racial em cemitérios na Bahia, sobretudo no século XIX, Osnan Souza apontou para a recorrência de alguns eventos como ponto norteador dessa linha:

“Era muito comum encontrar nas ruas da cidade de Salvador cadáveres negros apodrecendo sob sol e chuva. Os jornais relatavam e traziam imagens de homens, mulheres, crianças e idosos negros mortos nas praças e nos passeios. Eram indivíduos que viviam sem assistência social, vítimas da negligência do Estado e do Liberalismo excludente da República Oligárquica. Muitas delas morriam de fome, atropelamento, doenças e por diversos outros motivos. Mas o fato é que, mesmo após a morte, estes indivíduos não tinham os seus direitos assegurados, não eram tratados como cidadãos. Outra prática que pude notar a existência, através das páginas da imprensa, foi o pedido de esmola por parte de pobres para poder enterrar algum ente.”

Questionado sobre a possibilidade de o Dia de Finados ser abraçado para promover a rememoração de figuras ilustres e cidadãos comuns que foram apagados por conta do racismo, o historiador baiano comenta a relevância de plataformas de comunicação neste processo.

“Acredito que não seja uma tolice dizer que estamos vivenciando atualmente uma revolução nas telecomunicações. Acredito que seja possível aproveitarmos a TV, os canais nas plataformas de vídeo, as páginas nas redes digitais para falarmos das mortes de figuras como o Luiz Gama, Cosme de Farias, Juliano Moreira, Patrocínio, dentre muitos outros sujeitos, e a partir daí tratarmos da vida desses indivíduos. Só assim, será possível demonstrar a relevância das ações dessas figuras para a sua época e para a História.”

Com colaboração de Caio Batista.

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