Dia de celebração é marcado por gratidão a milagres alcançados e presença histórica negra
Nossa Senhora Aparecida, é a forma como Nossa Senhora é carinhosamente chamada no Brasil, país do qual é padroeira. Ela é reverenciada numa estátua de Nossa Senhora da Conceição, vestida com um manto azul e homenageada hoje, no dia 12 de outubro.
A sua aparição, em 1717, teve fatos registrados primeiramente pelos padres José Alves Vilela e João de Morais e Aguiar no livro da Paróquia de Santo Antônio de Guaratinguetá, que pertencia à região onde a imagem foi encontrada.
Conta-se que a história tem início em uma festa para o então governante da capitania de São Paulo e Minas de Ouro, Dom Pedro de Almeida, organizada pela população para receber o conde. Para preparar o banquete da celebração, pescadores foram até o rio Paraíba com a missão de conseguir muitos peixes para toda a comitiva do governador, mesmo não sendo o período de pesca.
Assim, Domingos Garcia, Filipe Pedroso e João Alves, sentindo o peso de sua responsabilidade, fizeram uma oração pedindo a ajuda da Mãe de Deus. Depois de inúmeras tentativas sem sucesso, João Alves lançou a rede novamente e não pegou o peixe, mas pescou a imagem de Nossa Senhora da Conceição, porém, faltando a cabeça.
Emocionado, lançou de novo a rede e, desta vez, pegou a cabeça que se encaixou perfeitamente na pequena imagem. Só este fato, já foi um grande milagre, mas, após esse achado, eles apanharam tamanha quantidade de peixes que tiveram que retornar ao porto com medo de a canoa virar.
Os pescadores chegaram à Guaratinguetá eufóricos e emocionados com o que presenciaram e toda a população entendeu o fato como intervenção divina. Assim aconteceu o primeiro de muitos milagres pela ação de Nossa Senhora Aparecida.
A imagem ficou na casa de Filipe Pedroso por 15 anos. Ali, os amigos e vizinhos se encontravam para rezar à Nossa Senhora da Conceição. Graças e mais graças começaram a acontecer e a história se espalhou Brasil afora.
Por várias vezes, à noite, ao rezarem junto à imagem, as pessoas viam que as luzes se apagavam e depois acendiam misteriosamente. Então, todo o povo da vizinhança passou a rezar aos pés da imagem. Construíram um pequeno oratório em Itaguaçu, que em pouco tempo já não comportava o grande número de fiéis que para lá acorriam.
O vigário da cidade de Guaratinguetá resolveu construir uma capela no morro dos Coqueiros. A construção contou com a ajuda do filho de Filipe Pedroso e as obras terminaram em julho de 1745. No dia 20 de abril de 1822, o imperador Dom Pedro I visitou, juntamente com uma grande comitiva, a capela para homenagear a imagem milagrosa de Nossa Senhora Aparecida.
A quantidade de pessoas e romeiros que visitavam a imagem aumentava a cada dia. Por isso, em 1834, deram início às obras da igreja que é conhecida hoje como Basílica Velha. Ela era bem maior que a capela e foi consagrada no dia 8 de dezembro do ano de 1888.
Nossa Senhora Aparecida é uma mãe preta
A padroeira do Brasil, nem sempre foi negra. O historiador Lourival dos Santos afirma que a imagem da santa passou por um processo de africanização imposta por devotos brasileiros: “Eles tinham essa necessidade de uma maior identificação com um ícone religioso. Apesar de o padrão estético valorizado no Brasil ser o europeu (branco), Aparecida passou por um enegrecimento”.
Para uma publicação da Universidade de São Paulo (USP), em 2006, Santos contou que houve uma negociação de padrões culturais e relata que a Igreja Católica apenas permitiu, mas não participou desse processo de enegrecimento.
A padroeira do Brasil já foi representada de formas diferentes das que conhecemos hoje. Santos encontrou, em estampas e santinhos do início do século passado, imagens de Aparecida branca.
Para compreender como funcionou esse processo de assimilação da santa pela população e o seu enegrecimento, Santos realizou entrevistas com uma família de devotos negros. Além disso, ele analisou as canções brasileiras referentes à santa. Essas pesquisas foram a base da tese de doutorado de Santos, defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Aparecida, que foi encontrada no rio, ficou escura pelo tempo que passou embaixo da água e pelo incenso das velas da capela onde foi colocada. “Tratava-se, na verdade, de uma imagem de Nossa Senhora da Conceição, tanto que, por um bom tempo, o dia da padroeira foi comemorado em 8 de dezembro”, conta o pesquisador. Mas esse enegrecimento de Aparecida, nas representações e na população, não tem uma data exata.
A partir das três gerações da família Jesus, devotos negros de Aparecida, Santos buscou ver como um grupo de negros católicos se relaciona e trabalha com as questões religiosas. Ele observou que na família, formada por migrantes de Minas Gerais e atuais moradores da periferia de São Paulo, os problemas são sempre mediados pela intervenção da santa.
“A devoção é também uma forma dessa comunidade se integrar com outras”, explica. Segundo o pesquisador, ao milagre ‘racionalmente’ comprovado – porque sem explicação “científica” – da igreja se opõe a esses milagres cotidianos e constantes a que os devotos se referem. “São as graças relacionadas à saúde, ao parto ou ao fim de um caso de alcoolismo na família que aproximam os devotos de Aparecida”, diz.
A mãe da primeira geração da família é analfabeta e seus filhos têm, em geral, escolaridade baixa. Somente seus netos chegam próximos ao ensino superior.
A devoção à Aparecida é também uma forma de inclusão deles na comunidade nacional que, ao migrarem do campo para a cidade, precisam redefinir a própria identidade. O elemento religioso, já forte no interior, acaba sendo um ponto de sustentação das famílias pobres nas grandes cidades.
Um dos membros da família é um padre ligado à teologia da libertação. “Por ter mais estudo, ele acaba sendo um mediador de classe social, entre sua família e outros níveis”, explica Santos.
O pesquisador também analisou as canções que tratam de Nossa Senhora Aparecida e constatou que, até 1981, as músicas não falam sobre a cor da santa. Seu enegrecimento – contrário ao comportamento dominante de embranquecimento, inclusive cultural – só se consolida após a atuação da teologia da libertação no País.
E é na década de 1990 que haverá uma explosão de canções sobre a santa. “Foi uma tentativa dos católicos de fazerem frente ao avanço dos evangélicos e de sua música, que estavam começando a aumentar sua influência na cena religiosa”, acredita Santos.
Os traços da Santa visivelmente não são de uma mulher negra, mas apesar disso, há um importante processo nessa história que é a reafirmação da população negra em querer se identificar com uma mulher negra como santa e transferir a ela, a sua fé e devoção, súplicas e pedidos diários, portanto, pode-se dizer que Nossa Senhora Aparecida é sim uma santa negra, uma mãe que ouve, aconselha, acolhe e protege a população preta do Brasil.
Devoção à Santa Aparecida
Essa devoção se propagou por todo o mundo desde então e é por diversos milagres alcançados por meio da santa que se tornou tão aclamada pela população brasileira. Um deles aconteceu na pequena cidade do recôncavo baiano, Salinas da Margarida, o qual presenciei com muito apreço.
Era fevereiro, próximo ao Carnaval, estava prestes a festejar os meus 15 anos, e fomos a Santo Antônio de Jesus, cidade vizinha, para pegar as peças que faltavam para compor a festa, entre elas o meu vestido, que estava no carro junto com minha mãe Adriana e meu tio Abel. Mas no retorno, por conta da quantidade de itens, acabei voltando em um transporte alternativo, enquanto meus familiares retornavam sem mim para casa.
No meio da viagem, algo me despertou a curiosidade, havia uma quantidade de pessoas paradas e o trânsito muito congestionado. Desci para verificar o que estava acontecendo juntamente com os outros passageiros, até que avistei o carro da minha família parado e a minha mãe com uma expressão aflita no olhar. Desesperada, tentei ver o que aconteceu, mas fui impedida por ela, que me confortou dizendo que estava tudo bem.
Quando cheguei em casa, fui surpreendida pela notícia de que aquela situação que presenciei com minha mãe foi um acidente. Uma moto que passava em alta velocidade cruzou com o carro em que tio Abel estava e os passageiros acabaram sofrendo diversas fraturas, mas os meus familiares estavam vivos, apenas com poucos arranhões.
O carro, no entanto, ficou muito danificado e é aí que o milagre se manifesta. O chaveiro do nosso Uno, era uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, que se perdeu com o acidente, mas o desenho da santa ficou nítido no vidro do carro. Quando vimos, tivemos a certeza que ela esteve presente naquele lugar e que impediu que o acidente fosse pior.
A partir desse dia, a família Rocha começou a comemorar o 12 de outubro com louvor, tornando a data o dia de gratidão pelo milagre. Realizamos a missa sempre em agradecimento a esse milagre concedido por ela, Nossa Senhora Aparecida, e oferecemos um banquete para as pessoas da nossa comunidade. Somos um milagre vivo de fé e devoção a essa santa que é mãe, mãe preta.
Foto: Gerson Oliveira