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“Na ginecologia meu coração bate mais forte”, conta a médica e enfermeira Jaqueline Neves

Eu me lembro que eu cheguei dentro desse espaço para abrir caminhos para outras meninas negras se inspirarem em mim”, contou a criadora da página @‌trans_amor

Foto: Arquivo pessoal

Acompanhando trajetórias, feitos e projetos de mulheres que se movimentam por si e criaram a rota da mina para outras mulheres, o Portal Umbu conversou com Jaqueline Neves, 43 anos, é uma mulher negra apaixonada por cuidar de pessoas.

Enfermeira há 19 anos e médica ginecologista há 9, ela acredita que o cuidar vai além do estudo porque é algo que vem de dentro. Por isso, a importância de sua abordagem se comprova dentro do contexto social da cidade de Salvador. Jaqueline acredita que o afeto e a inclusão são os principais caminhos para um tratamento humano.

“Antes de ser médica, eu sou enfermeira, uma profissão que chegou 10 anos antes da outra, e eu acredito muito que sem essas duas profissões, eu não seria feliz, e não me sentiria realizada como me sinto profissionalmente”, inicia.

“Ser mulher já é algo complexo e entender mulher é mais complexo ainda, mas pela experiência em tratar de mulheres, em ouvir as angústias, os dissabores, resolver questões durante a gravidez e fora dela, eu consigo entender um pouco de cada universo”, afirma a ginecologista.

“Quando eu pensei em atender aos meus, pensei muito no afeto e acredito que ele vem através das nossas relações, de como a gente se relaciona conosco mesmo primeiramente, e depois com o outro, e como isso norteia as nossas atitudes, para que com a gente mesmo, sabe? Muitas vezes, as pessoas não conseguem aderir a um plano terapêutico por conta das relações de afeto consigo mesmas que são muito complicadas.”

“Então, quando você ouve um pouco das angústias da realidade, você consegue entender o porquê daquele quadro de saúde estar daquele jeito e a questão da inclusão vem a partir da identidade de gênero. Hoje, a gente tem pessoas do sexo feminino ou pessoas que têm útero, vagina, ovários que não se identificam como mulher. Mas essas pessoas também precisam de cuidado”, explicitou.

Neves conta que também direciona os seus estudos para pessoas transgêneros e enfatiza a importância de oferecer todos os cuidados necessários, incluindo suporte psiquiátrico e psicológico, terapia hormonal e acompanhamento médico especializado.

“A ginecologia, da forma como é vista como sendo uma especialidade clínica e cirúrgica, era algo muito rígido. E eu acho que essa questão da transexualidade veio para dar uma nova perspectiva à especialidade. Pessoas transgêneros, elas precisam ter todos os cuidados como as pessoas cisgêneros têm e até um pouco mais, porque algumas necessitam da transição clínica ou da transição clínica e cirúrgica, que envolvem a terapia de reposição hormonal ou as cirurgias transicionais”, explica.

“Então, essas pessoas primeiro precisam de um suporte psiquiátrico e psicológico grande, e isso não quer dizer que elas são loucas por precisarem passar por um psiquiatra. Quer dizer que a sociedade é tão rígida nos conceitos de gênero, e por isso elas precisam de um suporte melhor de profissionais para que possam se sentir seguras nas suas escolhas.”

A ginecologista ainda conta: “Quando eu comecei a trabalhar com pessoas trans, a maioria delas tinha mais de 40 anos, ou seja, eram homens trans, mulheres cis [lésbicas], que depois de uma certa idade disseram ‘eu quero ser quem eu sou, eu quero colocar minha essência para fora’, e precisavam de um acompanhamento clínico de acordo com essa faixa etária, não só para tratar comorbidades, mas também questões relacionadas à idade que já tinham”.

Jaqueline diz que, no começo de sua atuação na área da saúde, se preocupou com como poderia cuidar das pessoas que estavam em grupos que ela ainda não tinha acesso: “Quando eu estava no meu primeiro ano de residência, meus colegas que estavam no terceiro ano foram para São Paulo fazer estágio opcional e uma delas voltou falando que a transexualidade era algo que estava sendo bastante estudado, e eu mal sabia o que era transexual. Como eu vou ajudar? Como eu vou tratar?”, se perguntou.

A médica ainda diz que começou a se interessar mais pelo assunto após a novela ‘A Força do Querer’, com o personagem transgênero Ivan: “Em 2018, eu pude escolher meus opcionais e eu não pensei duas vezes em estudar sobre transexualidade. Me joguei e percebi que ali era amor à primeira vista. Quando terminei minha residência em 2019, vi um cartaz de um curso na Universidade de São Paulo (USP) sobre orientação sexual, identidade de gênero e sexualidade. Eu fiquei temerosa, perguntei a Deus se era isso mesmo e, um belo dia, eu estava na missa das mães me perguntando se era isso mesmo e pedi um sinal para Deus, porque eu precisava saber se era esse caminho mesmo que eu teria que seguir”, relembrou.

“Acredite, a homilia [reflexão] do padre foi toda sobre discriminação e ele falava muito que a segregação não vem de Deus. Tudo aquilo que vem para incluir vem de Deus, aí essa foi a minha resposta. Depois disso, me inscrevi no curso, e foi a melhor coisa que fiz na minha vida, nas primeiras palavras, percebi que era isso mesmo que eu queria fazer da minha vida.”

Para potencializar a sua pesquisa, a ginecologista criou uma página no Instagram para falar mais sobre o assunto. A página @‌trans_amor é uma comunidade que se mantém por si só, onde as pessoas se sentem abertas a explorar o seu eu interno sem amarras: “Eu adoro estudar e vejo uma melhora nesta questão da sexualidade aqui em Salvador, mas antes, na cidade, em relação à identidade de gênero, as pessoas nem falavam muito sobre, e por isso, quis criar essa página no Instagram para deixar de ser um assunto no qual eu pesquisava para ser algo acessível a outras pessoas”.

Jaqueline é uma mulher negra, retinta, que reconhece o papel importante que desempenha na sociedade. Ela reconhece o privilégio e a responsabilidade que isso representa e vê sua presença como uma oportunidade de abrir caminhos para outras pessoas negras.

“Você adentrar na área de saúde sendo uma pessoa negra na Universidade Federal – e eu sou da época que não existia cotas – era algo extremamente raro, em um local super elitista, mesmo sendo enfermagem naquela época. Eu nem vou mencionar a faculdade de medicina, que aí não tinha nenhum negro mesmo, e isso, para mim, significa nada menos que Apartheid. Uma cidade que tem mais de 80% da população negra e não ter pessoas negras ocupando os espaços, isso é um Apartheid, depois das cotas isso foi melhorando bastante, mas ainda não chegamos lá”, analisa.

“Eu era a única pessoa negra da minha sala. Isso significa muito e me dá uma responsabilidade maior ainda de abrir espaços. Muitas vezes eu me questiono se dá pra ficar em ambientes que eu sou a única pessoa negra do local, mas eu vejo que depois de mim chegaram outras pessoas e, por ser uma mulher negra retinta que sofre preconceito de gênero e de raça,  eu sei muito bem dos dissabores em ter a cor da noite nessa sociedade em que vivemos. Desde o olhar, até o fato de ser associada ao lado negativo do ser humano, de não se sentir pertencente dentro do espaço que a gente vive, mesmo sendo um lugar majoritariamente negro. E é aquilo que eu falei anteriormente: todas as vezes que eu me questiono, eu me lembro que eu cheguei dentro desse espaço para abrir caminhos para outras meninas negras se inspirarem em mim”, concluiu.

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Isabel ribeiro
Isabel ribeiro
6 meses atrás

Parabéns pela valorização da trajetória de mulheres negras no mês da mulher. Que sirva de inspiração para os jovens.

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