O multiartista participou da Feira Literária Internacional de Serrinha e através da sua arte inspirou os jovens presentes a estarem mais próximos da literatura

Na Feira Literária Internacional de Serrinha (FELIS), que segue até sábado (10), o rapper, escritor e ativista MV Bill levou ao palco mais do que suas memórias: trouxe uma crítica direta ao abismo entre a literatura e as periferias brasileiras. Em sua palestra, intitulada “A vida nos ensina a caminhar: memórias construindo futuros possíveis”, ele compartilhou vivências marcadas pela cultura hip-hop, pela militância e pela urgência de tornar o conhecimento uma ferramenta de emancipação.
A FELIS, realizada em sua segunda edição no interior da Bahia, é um espaço plural e gratuito que valoriza a literatura como instrumento de transformação social. MV Bill destacou a importância de eventos como esse, que colocam a leitura e a cultura no centro da cena, com protagonismo negro, popular e periférico. Para ele, realizar uma feira literária fora dos grandes centros, com tamanha diversidade, mostra que a chama da transformação segue acesa.
Durante a palestra, ele falou sobre seu novo livro, A Vida Me Ensinou a Caminhar, escrito durante a pandemia. “Queria contar minhas vitórias, mas o momento me levou para dentro. Decidi falar das vezes em que errei, em que não deu certo. Foi isso que me fez crescer”, explicou. A obra mergulha em episódios marcantes de sua trajetória, incluindo os bastidores do documentário Falcão – Meninos do Tráfico, dirigido e produzido por ele, que expõe as entranhas do tráfico e da exclusão social nas favelas brasileiras.
Bill relembrou a criação de uma biblioteca comunitária na Cidade de Deus, ainda na juventude, com o amigo Michel. A ideia era simples: espalhar a liberdade que ele mesmo havia encontrado nos livros. “Para mim, o livro foi libertador, então acreditava que poderia libertar outras pessoas também”, contou. Mas a frustração veio cedo: ninguém aparecia. “Ficávamos só nós dois debatendo, discutindo, às vezes até brigando, mas sempre tentando construir algo.” Essa experiência deu origem à CUFA – Central Única das Favelas, a partir da compreensão de que era preciso, antes de tudo, criar o hábito da leitura. “O livro estava muito distante da realidade das pessoas.”
Com a CUFA, MV Bill ajudou a revolucionar o cenário cultural das periferias do Rio, promovendo acesso à cultura, educação e esporte. Mas faz questão de pontuar: “Nunca quisemos substituir o poder público. O Estado é insubstituível. O que fazemos é ocupar os vazios enquanto cobramos que o Estado cumpra o seu papel.”
Em duas décadas à frente da organização, viu jovens se formarem em áreas como literatura, audiovisual e esporte. Ainda assim, recorda a desigualdade no acesso aos meios de produção. “Naquela época, quem tinha câmera era só quem vinha do asfalto. Eles vinham às favelas, filmavam nossas vidas e transformavam aquilo em documentário, reportagem, tese de mestrado. Mas nada voltava pra gente.”
Durante sua fala, criticou também o distanciamento do hip-hop em relação às suas raízes políticas. “Hoje tem muito jovem fazendo rap sem saber o que o movimento significa. A cultura se popularizou, mas também se desconectou. Tem gente fazendo sucesso, mas sem entregar mensagem. Isso diz muito sobre o tempo em que estamos vivendo.”
Mesmo assim, ele acredita na potência de espaços como a FELIS. Para Bill, realizar uma feira literária no interior da Bahia, com protagonismo negro e popular, mostra que a chama da transformação ainda arde. Mas ele faz um alerta: “Não dá mais pra repetir o discurso dos anos 1990 de que o desenvolvimento salva. Ele pode até abrir portas, mas se ninguém estiver disposto a atravessá-las, a transformação não acontece.”
A literatura, segundo ele, ainda é uma linguagem distante de muitas quebradas. “Mesmo com mais autores periféricos sendo publicados, o livro continua inacessível. O livro assusta. Falta incentivo, mas também falta a consciência de que o conhecimento é um investimento.”
Foi justamente esse poder do livro que o conduziu à militância. Abdias do Nascimento, Malcolm X e Darcy Ribeiro foram decisivos para sua formação crítica. Segundo ele, esses autores o tiraram da escuridão da ignorância e influenciaram profundamente sua música, fazendo com que passasse a escrever letras mais críticas.
Hoje, com microfone ou com caneta, MV Bill segue abrindo caminhos entre os becos e os livros. Nomeia injustiças, confronta as ausências do Estado e projeta futuros possíveis — especialmente para os que ainda lutam para existir e serem ouvidos.
Confira a entrevista completa na íntegra:
Você ensinou a caminhar e isso inspira o nome da sua palestra hoje, aqui. Quais foram os principais aprendizados que esse livro trouxe para a sua trajetória pessoal e artística?
Eu acho que um dos aprendizados mais importantes veio já no processo de composição do livro. Escrevi durante a pandemia e a ideia original era lançar um livro que contasse as minhas histórias de sucesso, os troféus, as conquistas. Mas como eu estava vivendo aquele momento tão delicado, de introspecção, acabei mudando o foco. Decidi escrever sobre as vezes em que eu não me dei tão bem, mas que me ensinaram muito. São essas experiências que, de alguma forma, moldaram quem eu sou hoje.

Como você enxerga o papel do hip-hop na construção de futuros possíveis para a juventude periférica aqui no Brasil?
Cara, hoje não é mais como antigamente, né? Antigamente, quem fazia rap ou vivia a cultura hip-hop sabia que estava inserido numa movimentação cultural e política. Hoje, muita gente participa sem nem ter consciência disso. E a juventude das periferias também está diferente. Muitos não querem mais ouvir músicas que trazem alento ou transformação, como foi na minha época. Então rola uma desconexão. Tem gente fazendo um “rap pop”, por assim dizer, que faz sucesso nas comunidades, mas que não carrega mais aquela mensagem de enfrentamento, de consciência. Não dá pra generalizar, claro, mas é um sinal dos tempos.
Por isso fico tão feliz de estar aqui, numa feira literária, com gente que quer ouvir o que a gente tem a dizer. Isso mostra que a chama ainda não se apagou. Só que não dá mais pra repetir aquele discurso do fim dos anos 90, de que “o desenvolvimento salva vidas e transforma territórios”. Ele pode até trazer informação e oportunidade, mas se quem está ouvindo não estiver aberto, e quem está falando estiver desconectado, a transformação não acontece.
A literatura ainda é elitista ou já começou a falar a nossa língua?
Ainda tá muito elitizada. Tá distante da nossa realidade. Mesmo com o aumento de autores e autoras periféricos, o livro ainda é visto como algo inacessível. Primeiro porque muita gente ainda não construiu o hábito da leitura. A gente vê isso nas redes sociais: às vezes a legenda, a foto e o vídeo estão explicando tudo, mas a primeira pergunta que aparece nos comentários é “onde é?” ou “quanto custa?”. A galera tem preguiça de ler.
E com o livro físico, essa resistência aumenta. A gente perdeu uma grande oportunidade de trazer as pessoas para o lúdico, para o imaginário, que é justamente o que o livro proporciona. Quando eu falo da minha trajetória, sempre cito os livros que foram fundamentais pra mim, que me tiraram de uma vida de escuridão e abriram minha mente. O livro tem esse poder de abrir caminhos.
Mas aí tem essa distância provocada pelo elitismo, pelos preços altos, e também por uma certa resistência das próprias pessoas. Porque, muitas vezes, elas gastam numa noite de festa o que poderiam investir em sete ou oito livros. Falta incentivo, mas falta também consciência de que o conhecimento é um investimento. Por isso acho que precisava de uma campanha nacional, séria, articulada pelos governos federal, estadual e municipal. Tem livro que faz a pessoa largar o celular e mergulhar num mundo novo.

Caminhada Literária:
Chamado Abdias do Nascimento, uma grande liderança já falecida, o primeiro livro que li foi O Negro Revoltado. O segundo foi a autobiografia de Malcolm X, também uma liderança negra importante dos Estados Unidos, assassinado por sua luta por justiça e igualdade. E o terceiro livro foi de outro nome fundamental, o político e antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro, que escreveu sobre a história de Zumbi dos Palmares. Esse livro falava sobre a importância de sermos a exceção dentro de um sistema que não nos favorece, resistindo e construindo caminhos mesmo em meio à opressão.
Esses três livros foram fundamentais na minha vida. Me ajudaram a ser uma pessoa melhor, mais consciente, e também influenciaram minha forma de fazer rap – um rap mais denso, com letras mais extensas, reflexivas e críticas.
Nas minhas músicas, eu colocava os lamentos e as mazelas da Cidade de Deus. Falava das injustiças, da desigualdade, das coisas que eu acreditava que precisavam ser ditas. E a primeira pessoa a dizer que minha música era ruim foi minha mãe. Ela disse: “Essa música é ruim, você não vai fazer sucesso com isso. Vai arrumar um trabalho, quero ver você com carteira assinada”.
Minha mãe, coitada, nunca tinha visto ninguém da Cidade de Deus fazer sucesso como artista. Então ela estava me protegendo do fracasso, da frustração. Mas, no fundo, essa crítica me incentivou a melhorar. Me fez buscar ser melhor como músico, como artista, dentro do meu propósito. Então, sim, minha mãe teve uma grande responsabilidade no meu crescimento.
Andava pela Cidade de Deus falando de rap, pregando a cultura R&B e rock. Junto com meu amigo Michel, montamos uma biblioteca comunitária na favela. Para mim, o livro foi libertador, então eu acreditava que poderia libertar outras pessoas também. Mas, no início, ninguém entrava na biblioteca. Ficávamos só eu e Michel, debatendo, discutindo, às vezes até brigando, mas sempre buscando construir algo.
Foi aí que percebemos que antes de oferecer os livros, precisávamos criar o hábito da leitura nas pessoas, despertar o interesse pela literatura. Estava tudo muito distante da realidade da comunidade. Foi nesse contexto que surgiu a CUFA – Central Única das Favelas.
Com a CUFA, tive a oportunidade de viver um momento muito importante para as favelas do Rio de Janeiro. Levávamos cultura, educação, esporte e possibilidades para quem não tinha acesso. Mas é importante dizer: em nenhum momento quisemos substituir o poder público. O Estado é insubstituível. O que fazemos é ocupar os vazios enquanto cobramos para que o poder público cumpra o seu papel.
Fiquei 20 anos na CUFA. Ajudei a formar muitos jovens nas áreas da literatura, do audiovisual, do esporte. Muitos se tornaram professores, multiplicadores. Um dos cursos mais fortes que tínhamos era o de audiovisual, porque naquela época o acesso às câmeras era muito restrito. Hoje em dia é possível gravar com o celular, mas naquela época, só quem vinha “do asfalto” tinha equipamento e formação.
Essas pessoas vinham nas favelas, filmavam nossas vidas e transformavam aquilo em documentários, reportagens, teses de mestrado, mas nada voltava para a comunidade. Não havia contrapartida. Por isso criamos o curso de audiovisual: colocamos a câmera na mão dos jovens, para que eles se filmassem e contassem suas próprias histórias.
E o mais bonito disso é que, enquanto a mídia tradicional retrata a favela pelo viés da violência, da pobreza e do abandono, os jovens se mostram de outra forma. Eles reconheciam os problemas, sim, mas também retratavam a alegria, o amor dos pais, os namoros, a beleza do cotidiano. Eram histórias mais humanas, mais completas.