
Como se diz em baianês: junho de 2025 está brocando. São tantas festas até aqui que, mesmo faltando outras, fevereiro deve estar torcendo o nariz, afinal, até o Carnaval começou em seus últimos dias e, ainda assim, porque em Salvador a gente adianta para a quinta-feira. Para valer mesmo, o Reinado de Momo invadiu os idos de março. Junho não veio para brincadeira.
Já tivemos os 13 dias de Santo Antônio, Corpus Christi quase encostado no São João, e ainda tem São Pedro (ao lado de São Paulo, embora poucos lembrem dele). O mês vai terminar entregando mais um dia que todo mundo vai considerar feriado, pois é a véspera do Dois de Julho, a maravilhosa, irreverente e única forma de fazer uma festa cívica misturada com lavagem, celebração religiosa e tantos outros elementos que manejamos tão bem.
E vamos festejar mesmo porque, agora em 2025, agosto não vai ter parada. A outra independência, a do Grito do Ipiranga, vai ser em um domingo de setembro; outubro vai seguir o mesmo caminho com a Festa de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil; o 2 de Novembro, idem. O feriado da Proclamação da República vai cair no sábado e aí, só mesmo a memória de Zumbi para dar à gente um refresco. O Dia Nacional da Consciência Negra vai cair numa quinta e aí, viva o ponto facultativo.

Mas é bom lembrar que estas nossas festas de junho e julho resultam da nossa diversidade, ou seja, a capacidade brasileira, com ênfase para os baianos, de promover alianças no campo simbólico, especialmente o religioso. E isso aparece até na nossa maior festa cívica.
Entre um punhado de amendoim e outro, uma fatia de canjica e uma dose de licor para rebater, anote aí algumas informações sobre as costuras que estas festas receberam das culturas africanas, indígenas e portuguesas com pontos às vezes tão justinhos que a gente nem percebe facilmente.
É sempre bom refletir sobre isso porque tem aquele povo sem graça que adora cortar nosso barato com estupidez e violências, como racismo e intolerância religiosa. O bom é que as fogueiras – já vou dando spoiler – tem mesmo é a função de afastar o mal, ou seja, a nossa seara festiva está devidamente protegida desses espelhos sem luz e espíritos de chicharro. Agora, vamos à parte final dessa saga junina:
A festa de Pedro e o esquecimento de Paulo
Passou São João e já, no dia 28, começam as homenagens para São Pedro. O que ninguém lembra é que, no mesmo dia, tem festa também para São Paulo. Pedro é bem parecido com todo mundo, afinal ele foi aquele cara com uma amizade cheia de altos e baixos com Jesus. Ora estava sendo elogiado – “Bem-aventurado és tu, Pedro, porque não foi a carne e o sangue que te revelaram isso [a condição dele como Messias], mas o Espírito” (Mt. 16:17) -, e em seguida ganhava uma baixa – “Ainda hoje, antes que o galo cante hás de me trair” (Mt. 26:34) -. Só que Pedro, mesmo com suas idas e vindas, virou o primeiro chefe da Igreja com poderes para ligar as coisas entre o céu e a terra proclamados pelo próprio Jesus.
Já São Paulo andou um tempo perseguindo os futuros irmãos de fé. Ele se converteu em um episódio maravilhoso e digno das séries apoteóticas dos nossos dias, como Games of Thrones: o cavalo em que estava se curvou diante de uma luz poderosa enquanto ele ouviu uma voz se apresentando como aquele que ele andava perseguindo; ficou cego; depois foi curado e aí virou um discípulo fervoroso. A maior obra de Paulo foi levar o cristianismo para além dos limites de Jerusalém, de forma que há até gente que o considere o fundador pra valer desta religião.
Além de ter duas cidadanias – era judeu e romano – Paulo tinha um título que hoje poderia ser o equivalente a um doutorado. Conhecia profundamente as questões das leis e debates do judaísmo. E lá foi ele escrever o que pensava sobre a sua nova fé. O poder da pessoa é tanto que, dos 26 livros do Novo Testamento, 13 e às vezes 14, são atribuídos a ele. Inclusive as coisas mais duras da chamada doutrina moral da Igreja Católica sobre gênero e sexualidade.
Por outro lado, Paulo é o cidadão que criou um dos mais belos textos da nossa literatura ocidental. É atribuída a ele a Carta aos Coríntios, que tem, em um dos seus trechos, uma ode ao amor como uma grande virtude. Muita gente a conhece por meio da música Monte Castelo, de Legião Urbana, em que são mesclados trechos da carta de São Paulo a um soneto de Luís de Camões (1524- 1579 ou 1580).
Assista:
Pois é, Paulo foi bem humano, com seus altos e baixos. Acho que essa sua condição de intelectual, bem mais do que o popular Pedro, e os seus ataques de rigor o tornaram alguém mais distante do povo que o esquece na celebração do seu dia. Mas a importância dele é tanta que a Igreja o festeja junto com aquele considerado seu primeiro papa. O ideal, portanto, é celebrar os dois, mas dando ênfase a São Pedro que equilibrou um pouco as coisas neste mês romântico. Se tudo começa com o pedido para que Santo Antônio arrume o namoro e São João diga se vai virar coisa séria, São Pedro é o protetor das viúvas e dos viúvos. A tradição diz que ele foi um. Assim, na sua festa, mesmo quem nunca esquece o amor, apesar da inconveniente e nunca bem-vinda morte, também tem lugar para festejar.

Aliança em meio à opressão
E junho vai se despedir, mas deixar tudo pronto para a celebração cívica que a Bahia soube criar de uma forma única. Afinal, tem hino, hasteamento de bandeira, discurso de autoridade, mas a gente vai mesmo é prestar reverência aos Caboclos. Tudo bem que, lá no início, as elites usaram a ideia dos indígenas como símbolo da nossa nação como se eles fossem coisa do passado. Podem conferir o herói Peri, de O Guarani, e Iracema, a Virgem dos Lábios de Mel, de José de Alencar (1829-1877). Ah, mas o povão não ia deixar barato!
Segundo o grande Manuel Querino (1851-1923), em 2 de Julho de 1824 pegaram uma carroça que ficou da guerra de um ano antes, enfeitaram com crótons – tem até um que se chama Dois de Julho – folhas de fumo e de café, colocaram um mestiço indígena já idoso e percorreram o mesmo caminho feito pelo Exército Libertador.

Protesto ou Carnaval são possibilidades que aparecem em variadas fontes como característica do primeiro cortejo em comemoração à Independência. Eu gosto da ideia do protesto, afinal nada que prometeram para a galera que realmente ralou – abolição ou melhoria de vida – virou coisa concreta. O primeiro representante do povo brasileiro na figura de um indígena foi eternizado em uma estátua e virou símbolo da Independência do Brasil na Bahia que foi pra valer mesmo, pois o grito de seu Dom Pedro não resolveu quase nada.
De símbolo cívico e literário, os Caboclos do Dois de Julho se encontraram com os Encantados que o povo das religiões afro-brasileiras, mas com pioneirismo dos candomblés angola, passou a reverenciar como os donos da terra brasileira. E por isso é tão bonita a parada do cortejo para que as imagens do Caboclo e da Cabocla fiquem alguns minutos viradas para a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e que os membros da irmandade homônima façam suas homenagens. Ali é a lembrança de uma aliança histórica, simbólica e religiosa que ensina como gente oprimida se alia para combater a tirania também naquilo que não se enxerga facilmente.

Então, gente, é para amar ou não amar este mês de junho e os primeiros dias de julho? Feliz festas juninas e julinas, pessoal!