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Jornalista e Defensor dos Direitos Humanos Jean Wyllys retorna ao sertão baiano, na Felis, para denunciar os efeitos da desinformação e afirmar: “Lutar pela verdade também é lutar pela vida”

Na mesa “Falsolatria: fake news e o culto à mentira”, Jean provoca a juventude a pensar sobre verdade, poder e responsabilidade com a palavra

Foto: J.Neri


Era pouco mais de 9h da manhã, no último dia 7 de maio, quando o auditório da Felis – Feira Literária de Serrinha – se encheu. O público, majoritariamente jovem, se ajeitava nas cadeiras para acompanhar uma das mesas mais esperadas da edição: “Falsolatria: fake news e o culto à mentira”, com o escritor, jornalista e ex-deputado federal Jean Wyllys. Ao lado de Keila Simpson, presidenta da ANTRA, e do ativista Jarele Rocha, Jean não economizou nas palavras: falou de política, desinformação, racismo, redes sociais e juventude com a franqueza de quem sabe que falar a verdade, nesse país, custa caro.

Natural de Alagoinhas, no interior da Bahia, Jean começou sua fala resgatando o próprio percurso. Filho de uma família humilde, criado em escola pública, chegou à universidade graças ao esforço nos estudos e se tornou referência internacional na defesa dos direitos humanos. “Eu sou dessa terra. Vim do mesmo chão que vocês. Sei o que é crescer no interior, ouvir que não vai dar em nada e mesmo assim sonhar. Sonhar com mais do que só sobreviver”.

A fala logo enveredou pelo tema central da mesa: a mentira como estratégia de poder. Jean lançou recentemente o livro Falsolatria, em que analisa o uso das fake news como ferramenta da extrema direita para manipular a opinião pública e consolidar discursos de ódio.

A mentira corre. Corre muito. E corre porque encontra terreno fértil no preconceito. É mais fácil acreditar que um jovem negro morto era bandido, do que aceitar que ele foi assassinado por racismo. É mais fácil crer que um homem gay é pedófilo, do que encarar que a homofobia ainda estrutura nossas relações.

Segundo Jean, a desinformação encontra solo fértil especialmente onde há falhas no acesso à educação. “O Brasil é um país com altos índices de analfabetismo funcional. Gente que até estudou, mas não consegue interpretar um parágrafo. Essas pessoas recebem vídeos mentirosos, mensagens no WhatsApp e acreditam porque não foram preparadas para duvidar.”

Foto: J. Neri

Para ele, o papel da juventude hoje é fundamental. “Não dá pra gente achar que só porque você nasceu depois do golpe de 64, você está livre da ditadura. A ditadura está viva na mentalidade. Está viva na naturalização da violência. Está viva no racismo, na homofobia, na misoginia. Cabe à juventude duvidar. Questionar. Porque o que está em jogo é o futuro de vocês.”

Jean também provocou o público a escolher melhor suas fontes de informação. “Não é porque chegou no seu celular que é verdade. Jornalismo sério, com responsabilidade editorial, com gente assinando matérias, é outra coisa. Não se compara a corrente de zap ou a vídeo de youtuber sensacionalista.”

Ao falar do livro Falsolatria, publicado pela editora Máquina de Escrever, ele foi enfático: “Esse livro é um manifesto. É um alerta. Ele quer te fazer pensar. O celular te suga, te rouba dados, te manipula. O livro te oferece. Ele só quer que você pense.”

A Feira Literária de Serrinha, que este ano tem como tema “Ancestralidade e Literatura”, foi definida por Jean como um território de resistência. “Me chamaram aqui pra falar de verdade, num momento em que a mentira virou ferramenta de governo, é muito simbólico. Me sinto honrado. Porque estou voltando pra minha terra. Porque essa terra me formou”.

A mesa se encerrou com aplausos, abraços, fotos e emoção   especialmente entre jovens LGBTQIA+, mulheres negras e estudantes da rede pública. Jean terminou sua fala olhando direto para a plateia:


“A minha geração quer deixar um mundo melhor para vocês. Mas não adianta deixar um mundo melhor se não houver pessoas melhores. Ser uma pessoa melhor é respeitar. É pensar antes de falar. Antes de postar. Antes de compartilhar. O mundo já tem mentira demais. O que está faltando é gente com coragem de dizer a verdade.”

Confira a entrevista com Jean Wyllys na íntegra: 

A gente vem de um processo muito intenso de atuação da extrema direita, marcado pelo uso sistemático de fake news. E aí, a pergunta é justamente essa: você lançou um livro tratando sobre esse tema. Como se escreve a verdade em um país que persegue quem ousa dizê-la?

Jean:
É difícil. Muito difícil. Existe um ditado popular que diz que “a mentira tem perna curta”, mas, na verdade, ela corre muito rápido. A verdade é lenta. A mentira se espalha com muito mais velocidade e, muitas vezes, quando a verdade chega, ela já não consegue reparar todos os danos causados.

A gente vive num país com um alto índice de analfabetismo. E saiu uma pesquisa recentemente mostrando que quase 70% das pessoas com ensino superior são analfabetas funcionais. Isso facilita demais a propagação da desinformação.

Tem uma geração de pessoas acima dos 50 anos que não compreende bem o que é a internet. Elas recebem informações no celular, no WhatsApp, e acreditam piamente. Agora, com a inteligência artificial, estão sendo criadas imagens absurdas. Quando uma senhora vê essas imagens, ela acha que são reais. Ela nunca ouviu falar em IA, em algoritmo. Mas ela tem um celular e está recebendo mentiras – sem ter noção do dano que isso pode causar.

A mentira, ou melhor, a desinformação, se apoia em preconceitos já existentes. Por exemplo, quando uma pessoa negra, honesta, trabalhadora, é morta numa abordagem policial, no dia seguinte surgem notícias falsas dizendo que ela era traficante. As pessoas aceitam isso com facilidade porque há racismo enraizado. Elas associam moradores de periferia ao crime.

Da mesma forma, quando alguém acusa um homem gay de pedofilia, isso pega porque muita gente ainda não aceita a existência de pessoas LGBTQIA+. Finge que aceita, mas não aceita. E aí, uma mentira dessa encontra eco no preconceito.

É difícil, mas a gente não pode renunciar a essa tarefa. Tenho trabalhado em várias mídias, escrevi artigos, e publiquei esse livro, Falsolatria, que é um alerta, um manifesto. Acho que as pessoas deveriam ler para compreender a gravidade do que está acontecendo e evitar cometer tantas injustiças. E eu vou continuar fazendo esse trabalho. Porque é o que nos resta: defender a verdade. A verdade, mesmo que doa ao mundo.

Em Falsolatria, você diz que a mentira virou culto. Como chegamos até aqui?

Jean: 

Chegamos até aqui porque não combatemos o preconceito. A mentira se espalha porque ela reforça o que as pessoas já querem acreditar. Quando matam um jovem negro e dizem que ele era traficante, isso cola porque a sociedade é racista. Quando atacam uma mulher trans e dizem que ela é perigosa, isso cola porque a sociedade é transfóbica. O problema não é só a mentira, é o terreno onde ela germina.

Agora eu quero mudar um pouco o tom. Queria que você deixasse um recado para a juventude que vai ler seu livro. Um jovem do interior, como você, baiano, de Alagoinhas. Uma mensagem de esperança.

Jean
Olha, eu quero dizer a essa juventude que a minha geração deseja deixar um mundo melhor para vocês. Mas não adianta deixar um mundo melhor se não deixarmos também pessoas melhores para o mundo.

Ser uma pessoa melhor hoje é ter responsabilidade com o que você divulga na internet. Ser uma pessoa melhor é respeitar as meninas, reconhecer que as mulheres têm os mesmos direitos. É não alimentar ódio contra as mulheres. É lutar contra o racismo — ou, ao menos, se esforçar para não reproduzi-lo. É entender que sua religião não está acima das outras.

Então, eu digo: leiam esse livro. Mesmo que devagar, uma página por dia. Eu sei que vocês gostam mais de vídeo, mas se permitam essa experiência. O livro tem uma vantagem em relação ao celular: enquanto você lê um livro, ele não tira nada de você. Já o celular, enquanto você lê, está extraindo todos os seus dados. Essa é a diferença.

Jean, a gente sabe que essa feira tem um peso enorme. Você mesmo falou sobre a importância em participar dela. Tem muitos jovens aqui para te ouvir, para te conhecer. Como você enxerga o papel do seu livro nesse momento em que lidamos com as fake news e com a atualização constante da desinformação nas redes? E como essa feira contribui para que os jovens compreendam temas como o pós-colonialismo e o impacto das narrativas?

Jean:
Essa feira é muito importante. Só o fato de me convidarem para falar sobre ancestralidade já mostra o quanto ela é necessária.

A juventude precisa entender que a internet virou uma terra sem lei. Nela circula de tudo: venda de armas ilegais, tráfico de pessoas, pornografia infantil… E também muita mentira. Muita desinformação.

Então, o que você lê na internet, questione. Não acredite de imediato. Procure fontes confiáveis. E sabe quais são? Aquelas que podemos fiscalizar, que têm responsabilidade com o que publicam. Se for um jornal sério, com histórico, ok. Mas não vá acreditar só porque viu uma declaração no WhatsApp.

A gente precisa lembrar que contra fatos não há argumentos. Não adianta alguém dizer “não está chovendo” se você está vendo a chuva cair.

Acho que Falsolatria é um caminho. Ele planta dúvida, provoca reflexão, ilumina ideias. É um livro feito para isso: para despertar. E eu espero que essa juventude se permita sentir esse impacto.

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