
A maternidade é um dos trabalhos mais exaustivos da vida de uma mulher. Muitas vezes sem amparo ou rede de apoio, criar os filhos é parte de uma rotina exaustiva e desgastante. Mas e quando, além dos seus próprios filhos, a mulher precisa cuidar de um dos seus próprios pais? As pessoas que se encontram nesta situação podem ser enquadradas num grupo chamado de Geração Sanduíche.
Em artigo publicado pela Fundação Getúlio Vargas, a pesquisadora Janaína Feijó explica que o termo é uma forma de descrever a compressão vivida pelas demandas simultâneas de gerações ascendentes e descendentes à sua, apresentando que, por definição, esse grupo é formado por adultos, majoritariamente entre 35 e 50 anos, que precisam assumir responsabilidades simultâneas por um ou ambos os pais e de filhos ou netos dependentes.
A expressão, importada da literatura acadêmica americana dos anos 1980, se adequa ao atual processo de envelhecimento populacional no Brasil. Dados da Fundação Getúlio Vargas mostram que, em 2023, cerca de 575 mil mulheres entre 35 e 49 anos estavam nessa condição — o que representa 60,2% de todos os adultos nessa situação no país.
Entre as pessoas nesse contexto está Andréa Cerqueira, 52, que cuida da mãe idosa há quase 20 anos, quando os problemas de saúde começaram. “Ela estava tendo uns problemas de saúde, desmaiando e eu falei: ‘Não poderia deixar ela sozinha’. Na época, ela já tinha mais de 70 anos”, contou ao Portal Umbu.
Natural de Feira de Santana, Andréa não é filha única e explica que, mesmo com isso, lida sozinha com a responsabilidade pelos cuidados com a mãe porque uma irmã é casada, enquanto o irmão não “não é responsável para tomar conta”. “[Quando] eu casei, levei minha mãe para morar comigo. Só que aí tem uns 10 anos também que eu separei, mas ela continuou morando comigo”, disse ao explicar que, mesmo depois de casar novamente, manteve os cuidados com a mãe ao longo de 17 anos.
Perguntada sobre a rede de apoio, a entrevistada relatou que conta com a ajuda da filha, Verena, para auxiliar em momentos em que precisa se ausentar. No entanto, Andréa conta que a sobrecarga referente aos cuidados acabou duplicando, isso porque além da mãe, ela se tornou a principal responsável por uma tia também idosa.
“Agora ainda estou cuidando da minha tia. Ela não mora na minha casa, mas mora no meu caminho. Eu tenho que ir lá, limpar a casa dela. Eu que compro as coisas para ela, quando ela precisa de médico, eu que tenho que levar ou então arrumar alguém para levar”, explicou, ressaltando que a tia é ainda mais velha que a mãe e que encara a responsabilidade como uma segunda maternidade. “Então eu tenho duas. Porque ela não tem marido e nem tem filhos”.
Trabalhando fora, Andréa diz que os cuidados não trazem grandes impactos financeiros porque a mãe é aposentada e seus rendimentos são utilizados para atender às necessidades da idosa. No entanto, segundo a FGV, 34% das mulheres da geração sanduíche estão fora do mercado, enquanto as que permanecem têm maior presença na informalidade (37%) e enfrentam rendimentos mais baixos que os homens em igual condição.

Esse cenário escancara uma lacuna histórica: o trabalho de cuidado, ainda que essencial à economia, segue invisibilizado e sem remuneração. Um estudo do Instituto Locomotiva estima que, se fossem pagas por esse trabalho, as mulheres brasileiras ganhariam em média R$ 834 a mais por mês, valor que somaria R$ 905 bilhões por ano somente no campo da economia do cuidado.
No entanto, Andréa Cerqueira confessa que lidar solitariamente com os cuidados de suas familiares da terceira idade a afetou psicologicamente. A pressão constante, aliada à falta de tempo para si mesmas, leva a quadros de estresse crônico, ansiedade e até depressão. Muitas relatam culpa por não conseguirem dar conta de tudo, num ciclo de exaustão física e emocional.
“No psicológico, influenciou um pouquinho. […] O meu psicológico abalou muito”, contou, explicando que a situação fez com que ela buscasse terapia e encontrasse outros meios de lidar com a pressão. “Eu vou para a psicóloga, faço minha aula de dança, que é o que eu gosto muito e faço atividade física para melhorar meu psicológico”.
Especialista em relações familiares, a psicóloga Bianca Reis, mencionou que, conforme pesquisa realizada pela Infojobs em 2024, 83% das mulheres estão em dupla jornada de trabalho e afazeres domésticos, estando no lugar principal de cuidado. “Cuidado geral, cuidado de filho, cuidado de marido, cuidado de pais, mães, tios e tia. 75% também assume o lugar do trabalho não remunerado, no mundo”.
“[Conforme] dados do IBGE, as mulheres dedicam quase 10 horas a mais do que os homens também nas tarefas domésticas. Quando a gente coloca tudo isso no mesmo pacote e ainda acrescentando as questões relacionadas a preocupações, medos relacionados a violências físicas, psicológicas, sexuais e o que elas já passaram muitas vezes na infância, atreladas a esses dados que eu trouxe e, em adição, mulheres ganhando 21% menos que homens no mesmo cargo, se for uma mulher preta, ganha 52% menos. Então, a gente também precisa levar isso em consideração: etnia e gênero. É uma trama que coloca as mulheres numa posição onde elas estão três vezes mais suscetíveis a desenvolver transtorno de ansiedade e depressão”, explicita.

Perguntada sobre o que faria se pudesse reduzir a carga do trabalho de cuidado, Andréa Cerqueira respondeu: “ter mais tempo também para fazer minhas atividades, porque eu só ando correndo”.
“O povo diz que eu preciso ‘desligar’. Eu corro tanto, que tem vezes que até para dormir, eu não consigo porque minha mente está sempre trabalhando. Eu já acordo agoniada para fazer as coisas. Até no meu trabalho o povo fala: ‘rapaz, tu tem que desligar um pouquinho. Tu tem que pensar’. Eu já estou tão acostumada a correr que, às vezes eu estou no trabalho, eu bato o meu ponto para almoçar e fico na frente do computador, comendo e cuidando do meu computador. […] Eu deito, demoro muito para pegar no sono”, contou.
Tratando de pacientes com demandas voltadas aos relacionamentos familiares e românticos, sexualidade, gênero, infância, ansiedade, depressão e outras importantes questões psicológicas e humanas há mais de 11 anos, a psicoterapeuta Bianca Reis explicou que mudanças comportamentais como essas podem estar relacionadas à “hipervigilância”, estado caracterizado pela preocupação constante com possíveis perigos, o que leva à dificuldade para dormir e relaxar. “O transtorno de ansiedade, as mulheres têm três vezes mais chances de desenvolver que os homens. Ainda com um contexto que seja, de repente, desfavorável, as chances aumentam, assim como também a depressão”.
“Toda vez que a gente sente que está indo para extremos, por exemplo, comendo demais, comendo de menos. Dormindo de mais, dormindo de menos. Tem pessoas que ficam com um sono que não passa, não importa o quanto durma, não necessariamente é insônia, é o contrário. Sempre cansada e não consegue se reenergizar. Então, eu vejo muito como um rapto da essência, dessa existência assim, que só pode ocorrer de uma determinada forma.”
“Então, quando você traz esses sintomas, eles são sintomas que não são gerais, mas eles são comuns. Mesmo de desregulação dessa qualidade de vida, desse emocional, dessa mente, desse corpo, desse ser humano que está nessa condição”, analisou.
Para reverter esse quadro, é preciso reconhecer a economia do cuidado como um pilar essencial para o funcionamento da sociedade. Isso inclui valorizar, redistribuir e investir nesse trabalho, criando condições para que mulheres possam cuidar sem sacrificar sua autonomia, renda ou saúde.
Enquanto isso não acontece, milhares de mães brasileiras seguem no centro da engrenagem, garantindo o bem-estar de suas famílias — e sustentando, quase sozinhas, uma economia que ainda não aprendeu a cuidar de quem cuida.