Grupos de samba junino já tiveram músicas gravadas por grandes nomes da música brasileira

Com a chegada do São João em Salvador, o timbal, o tamborim e o surdo também assumem o protagonismo da festa ecoando o samba junino por toda cidade. Nascido nas periferias da capital baiana, o ritmo toma as ruas com camisas padronizadas e coloridas, saias de chita, chapéus de palha e o povo cantando em um só ritmo os clássicos do samba duro. Nesse movimento, a comunidade LGBTQIAP+ também se destaca, celebrando com liberdade e orgulho a sua presença na cultura popular. Foi justamente por isso que o tema ganhou destaque no quarto episódio do projeto ‘São João da Bahia – Fogo que Não se Apaga’.
O samba junino foi oficialmente reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial de Salvador em 2018, por meio do Decreto Municipal nº 29.489/2018, reafirmando sua importância histórica, cultural e social para a cidade. Como desdobramento desse reconhecimento, em 2023, a prefeitura do município realizou o 1º Festival Samba Junino, com a participação de grupos de toda a capital. A festa reuniu mais de 10 mil pessoas no bairro do Dique do Tororó, celebrando o som do ritmo que nasceu há mais de 40 anos.
A concentração de pessoas em torno do ritmo junino impulsiona a economia local. Segundo a Secretaria Estadual de Turismo (Setur), o período junino de 2024 injetou cerca de R$2 bilhões na economia do estado. Para 2025, a expectativa da Setur é superar essa marca, com base na tendência de crescimento do setor e no histórico positivo de movimentação econômica, ampliando ainda mais a receita baiana.
Entre os mais de 40 grupos de samba junino de Salvador — como Samba Neguinho, Leva eu, Fogueirão, Samba Boqueirão, Unidos do Capim, Samba Morro e Samba Duro de Terreiro — um dos mais antigos é o Samba Tororó. Fundado em 13 de maio de 1983, o grupo tem 42 anos de trajetória e deixou seu nome marcado na história do movimento.
Um dos idealizadores do Samba Tororó é Marco Antônio Santos. Mais conhecido como Marco Poca Olho nas rodas de samba, ele conta que a relação com o ritmo tem raiz na própria família.

“A música chegou a mim por meio do meu pai. Ele foi um dos fundadores do Cordão Carnavalesco Vai Levando, e eu cresci com essa influência dentro de casa. Foi assim que surgiu o Samba Tororó, inspirado nos grupos que já existiam na nossa comunidade. O objetivo da criação sempre foi inserir as nossas comunidades nos festejos juninos, porque sabemos que o apelo das festas de São João é muito maior no interior. Mas o samba junino é um fruto da capital — Salvador é o berço desse movimento”, explica Marco.
Para Marco Poca Olho, o Samba Tororó é uma verdadeira bênção em sua vida, responsável por torná-lo uma figura conhecida em Salvador. Ele também considera a manifestação cultural uma paixão e destaca que, a partir dele, surgiram nomes como Jorge Farofa, Márcio Victor, Tatau e outros nomes famosos, todos frutos do movimento do samba junino. Marco também relembra que algumas de suas composições foram gravadas por grupos reconhecidos: “Eu mesmo já tive músicas gravadas por bandas como Gera Samba e Harmonia do Samba — todas nascidas no Samba Tororó”.
Ele lembra ainda que, enquanto as bandas costumavam se apresentar com roupas estampadas de chita, o Samba Tororó inovou ao adotar um figurino padronizado, usando bermuda branca e roupa exibindo a logomarca.
Com o passar do tempo e muitos sucessos na estrada, em 2011, as bandas de samba junino fundaram a Liga do Samba Junino — uma associação artística e cultural dedicada à preservação da música de origem periférica. A presidenta da instituição, Renata Rodrigues, 47, reflete sobre a importância do apoio governamental para a manutenção da manifestação cultural.

“O samba junino ainda não recebe a devida atenção dos governantes, que não enxergam seu potencial transformador. Trata-se de uma cultura capaz de tirar jovens das periferias das ruas, oferecendo pertencimento, arte e cidadania. Se os gestores públicos compreendessem o poder do samba junino, toda a sociedade sairia ganhando”, destaca Renata.
A líder da Liga do Samba Junino destacou que, recentemente, a entidade foi contemplada com um recurso de R$50 mil, valor considerado insuficiente diante da quantidade de grupos filiados, 22 no total. Foi ressaltado que artistas solo frequentemente recebem valores muito superiores, o que gera um sentimento de desvalorização da cultura do samba junino. Segundo Renata, trata-se de um descaso significativo com uma manifestação cultural que, mesmo com poucos recursos, realiza muitos eventos.
LGBTSAMBA+ e mulheres também
Uma das principais características do samba junino é o acolhimento. É abrindo a roda para caber mais um que a comunidade LGBTQIAP+, historicamente excluída, encontra espaço e protagonismo. Nesse contexto, esse público traz brilho, alegria e autenticidade para as rodas de samba, tornando a festa ainda mais diversa. Afinal, como muitos dizem com orgulho “as gays são o evento”.
Conhecida como a primeira rainha trans do samba junino, Pokett Nery, entrega beleza e muito molejo. “Comecei a frequentar o samba aos nove anos, comecei aqui no Samba Fama, e lembro de ficar admirando e desejando ser rainha daquele grupo”.
Até conquistar o título de rainha, Pokett relembra que enfrentou grandes barreiras. “Nos eventos de samba, nós não éramos bem aceitas. Havia a ideia de que apenas mulheres [cis] poderiam dançar e ocupar o lugar de rainha. Mas eu cheguei, invadi, dominei, e hoje tenho o meu título”, afirma a dançarina.
A artista também recorda o caminho até o reconhecimento. “Fui destaque do Samba do Morro por muitos anos, e foi lá que recebi o título de rainha do samba. Hoje estou aqui, como rainha, invadindo os sambas de Salvador”.

Pokett celebra os avanços, mas também faz um apelo. “Hoje o público aceita mais a comunidade gay e trans, mas é preciso que esse público esteja ainda mais presente. Precisamos de mais liberdade, precisamos de mais respeito”.
Outro grupo que também precisou lutar por espaço nas rodas de samba foram as mulheres negras. Embora sempre estivessem presentes na organização, na hora dos holofotes, o destaque acabava indo para os homens. Foi então que surgiram as sambadeiras — mulheres que, com suas saias longas de chita, um pedaço de madeira nas mãos e muito samba no pé, passaram a ocupar um novo lugar dentro da roda.
Em consonância com Pokett na luta por espaço, o grupo As Sambadeiras do Nordeste de Amaralina, fundado em 2024 por Roseni do Nascimento, 43, mais conhecida como Rosy Bombom, promove não apenas a preservação da presença feminina nos festejos, mas também busca fortalecer a autoestima dessas mulheres.
Desde pequena, Bombom recorda que encontrou no samba junino um refúgio afetivo e cultural. Hoje, transforma essa paixão em resistência e protagonismo feminino. “Conheci o samba junino na minha infância e sempre fui apaixonada pelo movimento. Foi uma maneira que minha mãe encontrou para me fazer ficar quieta”, relembra aos risos a modelo e baiana de acarajé.
Segundo Rosy, o Nordeste de Amaralina já abrigou mais de 40 grupos de samba junino que, ao longo do tempo, foram se desfazendo, estando o grupo das sambadeiras entre eles. Ao crescer, a artista percebeu esse apagamento cultural e, movida pela paixão que carrega desde a infância, sentiu o desejo de criar um novo grupo. Assim nasceu o grupo as Sambadeiras do Nordeste de Amaralina, formado por nove mulheres que, além de manter viva a tradição, reafirmam a força e o protagonismo feminino no samba junino.

“Nós sambamos do jeito que gostamos e acreditamos ser o certo. Cada uma faz do seu jeito, como se sente melhor. Vejo meninas do meu grupo que antes não tinham autoestima, estavam sempre tristes, se achavam feias […] Hoje, temos um padrão de roupas e, depois que elas vestem a roupa, acabam se empoderando. Esse movimento atinge e inspira outras mulheres também”, reflete a fundadora do grupo.
Visando preservar e oferecer suporte às mulheres, Renata Rodrigues destaca as iniciativas adotadas pela Liga do Samba Junino. “A roda é grande e tem espaço para todos e todas. Ser mulher em um segmento majoritariamente masculino é um grande desafio. A Liga hoje propõe um olhar mais respeitoso às mulheres — sejam elas cis ou trans — e incentiva os grupos associados a preservar e valorizar a presença feminina”, encerra.
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Texto: Bruna Rocha