Quando penso no assunto da não binaridade, a primeira coisa que me vem à mente é a Carla menina, a criança que almejava ser feminina. Eu lembro dos medos de me assemelhar aos meninos. Do dia que meu cabelo ficou bem curtinho por conta de piolhos e que minha mãe me chamou atenção sobre como fiquei parecida com um primo que tem traços muitos semelhantes aos meus – e eu me senti péssima. Lembro do desespero de cogitar a ideia que as pessoas pensassem que eu era uma menina tentando ser menino. Que isso seria um sinônimo claro de que eu era feia, ou pior ainda, indesejável.
Aos 8 anos de idade com meu cabelo de “menino”
Mesmo tão pequena, eu já tinha entendido que a maneira como eu me expressava seria medida pelo quanto os meninos iriam me olhar como uma garota que desejassem como namorada. Ou aquela que ganharia os concursos de beleza da escola e seria referência às colegas de classe. Eu era uma criança super inteligente, dedicada e estudiosa. Mas nada disso me fazia sentir “menina”, ao contrário, meu excesso de inteligência, pouca maquiagem e óculos de nerd me tiravam o brilho da feminilidade que, na época, era a única forma que eu tinha de me sentir bem no meu próprio corpo.
Em tempos em que deveria estar brincando, me divertindo, curiosa sobre a vida e aberta às novas experiências, eu vivia em pânico em saber se eu transitava no lugar certo: o caminho para ser mulher. Este que seria entregue a mim a cada mudança no meu corpo, um espaço público de deduções e suposições sobre o polo a qual me aproximava – masculino ou feminino. Se eu comecei a ter pelos, eu sou mulher, mas se eu quero ser feminina, preciso tirá-los; se a bunda cresce e as curvas aparecem, já sou mulher, mas só serei feminina se estes traços forem usados do jeito certo; se meus seios despontam, sou mulher, mas se não forem grandes suficientes para serem vistos como femininos, precisarei usar sutiãs com bojo senão será um corpo masculino.
Aos 15 anos me achava feia por não ter seios maiores e parecer um “homem”
Quando a vida adulta chegou, encontrei discursos diferentes, muitos deles questionadores da performance feminina (ainda bem!). Com meu ímpeto de liberdade, resolvi experimentar muitos deles. Deixei os pelos crescerem, diminui a necessidade de maquiagem e adereços e sai do desespero de chegar a um corpo padrão. Investiguei detalhes do meu corpo e enxerguei meu ser feminino com mais amor, aprendendo também a reconhecer que ele também era feito de dor, devido aos muitos desejos sobre ser feminina, mais mulher, vista como um ser que agrada aos olhos ou ao tesão masculino. Foi nesse caminho de tentar me sentir mais confortável sobre quem eu era como mulher que nasceu minha não binaridade.
Depois dos 30 aprendi a conviver com meus pelos e me sentir bonita e feminina assim
Quando me encontrei na ideia de que era muito mais feliz ao ser o que eu quisesse, senti leveza em somar novas percepções. Se eu conseguia aceitar a mulher que era, eu conseguiria viver sem ser “mulher”? Se a sociedade não controlava mais como meus pelos seriam, quando minhas pernas ficariam ou não abertas, qual decote me tornaria mais ou menos vulgar, porque eu ainda performaria em reação ao que me diziam? Era meu momento de experimentar ser ativa sobre a minha própria vivência.
Somando-se a busca por pertencer a mim, passei a ouvir muitos discursos e falas de pessoas não binárias ou questionadoras da binaridade de gênero. Acho que a primeira personalidade que me chamou a atenção foi o cantor Sam Smith. Quando assumiu sua não binaridade, ele passou a transparecer elementos “femininos” em sua interpretação: maquiagem, botas, danças, trejeitos. Aquilo mexeu comigo. Vi um brilho novo nos olhos dele e achei viva aquela pessoa que renascia. Dali em diante, fiquei atenta em observar outras figuras semelhantes. Jonathan Van Ness, do Queer Eye, foi outro que apresentou no seu exterior a possibilidade de performar masculino e feminino. Barba, cabelos grandes, saias, vestidos misturados a calças, camisas e sapatos masculinos. Porém, foram duas pessoas, em especial, que abriram meus olhos sobre a ideia de gênero: Rita Von Hunty e o/a poete americane Alok.
Sam Smith e Jonathan Van Ness
Antes de trazer a abordagem deles, vamos a um bê-a-bá breve do que podemos compreender a respeito de gênero e identidade. Essa figura do unicórnio da diversidade explica bem as definições mais simplificadas de Gênero, Orientação Sexual, Identidade e Expressão de Gênero. Confira[1]:
De acordo com as teorias Queer, ou estudos de gênero – que já dominam espaços nas maiores universidades do mundo -, ao nascer, somos designados biologicamente por um gênero de acordo com o órgão reprodutor que temos e, normalmente, isto determina como nos expressamos socialmente, estabelecendo inclusive a quem devemos nos atrair sexualmente e romanticamente. Se não refletirmos, todos os pontos acima nos são entregues com a bandeja da “normalidade” e entendemos que basta seguir o que nos cabe e seremos felizes.
Mas somos muito mais que isso e, com a explicação simples deste Unicórnio, podemos observar precisamente onde nos colocamos para cada ponto que ele apresenta. Eu nasci designada como menina – e depois mulher – porque foi identificada em mim a presença de uma vagina e útero. Isso automaticamente me colocou como uma pessoa que performaria a dita feminilidade e gostaria de beijar homens e se apaixonar por eles. Foi meditando nessas regras recebidas que eu decidi colocar meu corpo e minha expressão social em cheque. Quem eu quero ser? Mulher, homem? Feminina ou masculino? O que me faz ser o que sou? O tamanho do meu cabelo, os pelos nas minhas axilas ou meu mamilo?
Voltando às duas pessoas que mencionei como referência sobre as ideias de gênero. Primeiramente, o/a poete, artiste e escritore americane transfeminine e não-conforme em gênero[2] Alok Vaid-Menon[3] apresenta que o sistema binário é uma estrutura imposta, colonialista, ocidental, uma forma de opressão da expressão humana, de suas possibilidades e singularidades/criatividades. Isto porque estudos já demonstram que a ideia de gênero em povos indianos, indígenas, africanos e de outras regiões era mais ampla, com possibilidades complexas e diferenciadas. Ile aponta que até a binaridade de nossas roupas é um evento recente, do final do século 18, que determinou que certos trajes e produtos seriam divididos como masculinos e femininos. E essa concepção binária mistura-se à construção do patriarcado, uma forma opressiva de diferenciar humanos de acordo com seus órgãos reprodutores, usando a justificativa biológica para organizar a função feminina para dentro do lar e da maternidade e do homem para conquistar espaços de poder e voz.
Rita Von Hunty[4], persona drag queen do professor, ator e You Tuber Guilherme Terreri Lima Pereira[5], já indica estudos históricos que apresentam a primeira drag queen, William Dorsey Swann, como uma pessoa não binária, negra, ex-escravizada que vinha de um povo que não tinha atribuição de gênero. No Brasil, inclusive, ela explica que também temos muitos relatos semelhantes. Por exemplo, no Brasil Colônia havia a Chica do Manicongo, primeira travesti perseguida pela Santa Inquisição. Ela vinha de um povo onde performar como outro gênero fazia parte de sua cultura. Anterior a isso, há o caso do índio Tibira, pertencente a um povo originário indígena que não possuía gênero binário e onde ele desempenhava abertamente um papel feminino. Por conta dessa característica, ele teve seu corpo explodido por um canhão, se tornando o primeiro caso de homofobia e transfobia registrado no Brasil. Rita ainda esclarece que todos os povos ameríndios – do Canadá à Patagônia – tinham um sistema de gênero em tríade, homem, mulher e dois espíritos.
Semelhante a fala de Alok, Rita Von Hunty explica que a visão binária de gênero, com divisão sobre roupas e trejeitos é um projeto recente, já que o papel masculino na França do século 15 incluía maquiagem, meias, peruca e outros elementos “femininos”, especialmente para as pessoas mais importantes como ministros, reis e príncipes. Enxergar o mundo como duas possibilidades é uma importação europeia, fruto da colonização e da catequese, em prol da construção da família, da posse privada e do controle social. Por isso, ela aponta que mexer na questão de gênero significa movimentar um lugar muito profundo da nossa construção social e econômica – um espaço que foi feito para colocar um grupo como participativo (homens) e outro a serviço do anterior (mulheres), especialmente através de trabalho não remunerado e subalterno.
Alok Vaid-Menon e Rita Von Hunty
Os apontamentos destes estudiosos me ajudaram a compreender o gênero como um treinamento social que movimenta as peças do jogo de poder político atrelado ao patriarcado. Entendi que tudo que tentei ser e era chamado de feminino, se tratava de uma mera performance imposta ao meu corpo e, se eu era capaz de atuar nela, mesmo sem vontade, o que poderia ganhar se escolhesse voluntariamente os caminhos de outras formas de expressar um gênero? Na não binaridade encontrei uma maneira de me deslocar por um espectro de cores que achariam espaço nos meus traços, minhas roupas, minha forma de sentar, decorar meu rosto e muito mais.
Dos polos a um espectro colorido
Hoje eu posso dizer que estou em um processo muito iniciante da não binaridade e que ele basicamente se passa muito diante do espelho. Por várias vezes eu experimento possibilidades fora da bolha da feminilidade e de repente ouço vozes, como: “nossa, pareço um homem assim”. E aí aproveito este momento pra dizer: “por que não ser um homem?” Por outras vezes, eu simplesmente me enxergo como um não-gênero. Apenas um ser com batom vermelho na cara, shorts masculinos, brincos pendurados e pelos nas pernas. Enfim, o que posso dizer é que estou saindo desse lugar de dois pontos opostos, onde eu olhava um com repulsa e medo, e o outro com expectativa e ansiedade, para me entregar a muitas possibilidades, tão variadas que talvez leve uma vida inteira para experimentá-las.
Eu sendo eu, pessoa não binária – e feliz!
[1] Fonte: https://www.escoteirosrs.org.br/post/diversidadeslgbt
[2] Alok se identifica como pessoa não binária e usa os pronomes neutros “they” e “them”, que não possuem uma tradução literal para o português, mas o movimento queer utiliza “elu/delu/ile/dile” como alternativa.
[3] Fonte da entrevista com Alok: https://youtu.be/Tq3C9R8HNUQ
[4] Fonte da entrevista com Rita: https://www.youtube.com/watch?v=VlOVwMgkvPM
[5] Como vamos nos referir a Guilherme como sua persona Rita, os pronomes usados serão “ela/dela”.