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“Eu vim ao mundo e sigo esse sonho”, conta Lorena Bispo, Deusa do Ébano do Ilê Aiyê

Em entrevista ao Portal Umbu, a vencedora da 44ª Noite da Beleza Negra compartilhou momentos de sua trajetória e aspirações para o futuro

Lorena Bispo | Foto: Arquivo pessoal

“Ainda estou tentando entender minhas emoções”, disse Lorena Bispo, a Deusa do Ébano do Ilê Aiyê eleita este ano. Aos 22 anos, a estudante e escritora se juntou à realeza do Mais Belo dos Belos na 44ª Noite da Beleza Negra e não esconde a emoção.

“Eu verdadeiramente estou precisando desaguar, porque ainda é algo que ainda estou absorvendo. Eu estava falando também sobre a música ‘Deusa do Ébano’, que eu sempre ouvi e me emocionava, me arrepiava. E agora eu tenho escutado a música tocando para mim”, conta Lorena que estreará seu reinado na noite deste sábado (1º/3), na saída do primeiro bloco afro do Brasil, no Curuzu, ao lado das princesas Tainã de Palmares e Stéphanie Ingrid Souza.

Criado em 1º de novembro de 1974, o Ilê Aiyê continua, no Carnaval deste ano, as celebrações do aniversário de 50 anos completos em 2024.

>> Leia também: “Orgulho, vitória e teimosia”: Como o Ilê Aiyê se tornou o mais belo dos belos e segue resistindo como bastião da cultura afro em Salvador

Eu vim ao mundo e sigo esse sonho, nesse pulsar diferente, artístico

Lorena Bispo | Foto: Arquivo pessoal

Falando sobre sua relação com a dança e novo momento, a Rainha do Ilê conta que é um “processo honroso” e fala sobre sua jornada na dança: “Sobretudo entendendo a minha história, de onde eu venho, quem são as minhas referências, quem são as pessoas que me inspiram. Minha relação com a dança começa ainda com as movimentações do útero da minha mãe, que sempre amou dançar. Eu vim ao mundo e sigo esse sonho, nesse pulsar diferente, artístico”

Na Escola de Dança da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb), Lorena estudou até os 17 anos, quando rumou para companhias e grupos de dança. Posteriormente, fora iniciada na dança de blocos afros pela mestra em Dança pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Vânia Oliveira, Rainha do Malê Debalê em 2000 e 2006 e Princesa do Bloco Afro Ilê Aiyê em 2001 e 2014. 

“Ela traz para mim todo esse arcabouço, desse entendimento do que é compreender essa ancestralidade por meio da dança de blocos afros e aí eu acesso esse espaço, tenho essa possibilidade”, explica. “Quando é o ano de 2023, eu participo pela primeira vez do concurso Negra Malê e sou consagrada enquanto rainha Malê Debalê. Nesse período eu tive também muito auxílio de uma outra referência para mim, que é a Deusa Gisele Soares”, conta Bispo, mencionando a vencedora da 38ª edição do concurso do Ilê Aiyê.

Em 2024, Lorena se encorajou para encarar o “Mais Belo dos Belos”, mas confessa: “Ainda muito no entendimento de, sendo muito sincera, não acreditar, de achar que eu não era capaz ou que minha dança não era tão boa para estar acessando esse lugar”.

A gente vem da vivência, a gente vem do diálogo

Apesar do sentimento, Lorena avalia que, em sua trajetória sempre foi fortalecida por seus familiares. “Eu entendo que a minha mãe e o meu pai, a minha família, eles fizeram um trabalho de base imprescindível comigo, de colocar músicas para eu escutar e mostrar como isso pode fazer diferença na minha vida. Então eu digo que, por mais que minha mãe, meu pai não tivessem entendimento de causa naquela época, eles tiveram o entendimento da vivência”.

“A gente vem da vivência, a gente vem do diálogo. Então a minha primeira intelectualidade vem desse espaço, não um espaço acadêmico, mas é um espaço de vivência, é um espaço de diálogo, é um espaço de músicas, é um espaço de minha mãe falar assim: ‘O que você quer fazer com seu cabelo? Com qual penteado você quer ir para a escola hoje?’. E é através desse movimento que eu me entendo, que eu me compreendo.”

Foi o avô cambista quem compartilhou a emoção da Noite da Beleza Negra com a filha, que compartilhou com Lorena e inspirou o apreço pela arte.

“Meu avô, enquanto homem de múltiplas funções, enquanto cambista, em uma das noites da Beleza Negra, ele está lá vendendo ingresso e aí chega para minha mãe e fala assim: ‘Olha, é um momento muito bonito. São muitas deusas, são mulheres que estão vestidas assim e elas sorriem, elas dançam’. E minha mãe ficava naquele êxtase de querer estar naquele lugar. E no ano de 2023, minha mãe vai, pela primeira vez, à Senzala do Barra Preto junto com meu pai, minha avó e toda minha família para ver a filha dela, para ver a pessoa que está representando a família nesse espaço. Então para mim foi de uma emoção muito grande, foi de uma consagração de fato”, conta Lorena que, em sua primeira participação alcançou o segundo lugar na competição e se consagrou princesa do Ilê Aiyê, antes de assumir como Deusa do Ébano neste ano.

Ainda assim eu respiro fundo e sigo adiante

Quanto aos desafios, Lorena revela que, mesmo com os esforços emocionais, espirituais, físicos e financeiros, seu maior desafio foi lidar com a própria ansiedade. “Tive que superar meus medos e incertezas. Como mulher negra, enquanto base de uma pirâmide social, a gente se coloca para o embate a todo momento. A gente está ali na trincheira. Que momento a gente reconhece que precisamos respirar e dar lugar a uma pessoa que queira nos ajudar?”, se questiona. “É como eu lido e supero os meus próprios medos e incertezas, mas ainda assim eu respiro fundo e sigo adiante”.

Além da coroa de Rainha do Ilê, Lorena Bispo se adjetiva como “sonhadora” e se entende como um “ser ativo e altivo, mas que bebe muito da semente da sua criança interior”. Graduanda do Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades na Universidade Federal do Estado da Bahia (UFBA), a Deusa se reafirma como dançarina: “Por mais que se entenda as dificuldades do que é ser artista em uma uma sociedade como a nossa, estou resistindo, me entendendo, me compreendendo nesse lugar artístico”. 

Pesquisadora, Lorena publicou em 2019, junto com as amigas Bianca Xavier e Jamily Samara, o livro Manifesto das Pretas: uma ótica para a (des)construção”, obra que aborda temas como educação multicultural e feminista e o empoderamento e potencialização de meninas pretas nas escolas.

Os nossos ancestrais não vieram somente desse ponto de vista

“É a construção dessa intelectualidade de uma criança, sobretudo de uma menina negra no espaço educacional, entendendo que esse planejamento e esse plano pedagógico, nem sempre vão acessar as nossas histórias. Um dos pontapés que tivemos, foi pensar na história de quando a gente acessa o ensino fundamental, o 1º ano do ensino médio, o primeiro momento em que se traz a História para a gente é por meio da perspectiva da escravidão. E aí a gente pensa: ‘Caramba, os nossos ancestrais não vieram somente desse ponto de vista’. Acho que saber disso é algo que muda completamente a visão de um jovem, a visão de uma criança, a visão de uma pessoa adulta, porque é estimular mesmo essa amplitude de inteligência, de possibilidade e de riqueza.”

Também influenciadora digital, Lorena Bispo contabiliza mais de 35 mil seguidores em sua página no Instagram. Múltipla, a Deusa do Ébano aponta a importância de se comunicar com seu público e se movimentar por espaços diversos para estimular mais pessoas nesse lugar. “Me coloco também enquanto comunicadora, uma pessoa que está tentando trazer outros caminhos de possibilidades por meio das redes sociais”.

Perguntada sobre os planos para o futuro, Lorena respondeu ainda está em êxtase e entendendo as emoções para planejar quais caminhos vai trilhar, mas já adianta: “penso que o meu compromisso não pode ser parado, ele não pode ser deixar ser vivo”. Com o desejo de lançar uma segunda edição para seu livro, ela conta que pretende seguir atuando no ramo da comunicação, norteada por como sua história consegue afetar mais pessoas. Lorena diz ainda que quer dar continuidade ao projeto de visitação a escolas públicas e particulares para encorajar as crianças no processo de formação. 

Lorena Bispo se apresentando na 44ª Noite da Beleza Negra | Foto: André Frutuoso/Estúdio Casa de Mainha

“Um dos principais desafios para as mulheres adultas que eu mais vejo é resgatar, mesmo, essa magia, essa esperança. Porque quando a gente está com a mente formada, dificilmente vai conseguir ter essa esperteza para algumas outras coisas que, em contrapartida, a gente consegue resgatar das crianças. Então eu entendo que a base precisa estar muito bem estruturada. Embora a gente entenda que a base está vindo forte, as nossas crianças estão vindo de uma maneira muito fortalecida, mas quanto mais presença, quanto mais elas tiverem caminhos, quanto mais estímulos elas tiverem, com certeza conseguirão ir para mais lugares. Então, não só as crianças, mas os adultos também, mulheres, homens, enfim, pessoas que, de fato, queiram e se permitam possibilitar.”

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