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“Eu vi que para estar no centro, precisaria fazer um teatro que vem da periferia e que fale sobre a nossa realidade enquanto povo preto”, diz o ator Heraldo de Deus

Foto: Fernanda Maia

O ator baiano Heraldo de Deus tem se destacado no Teatro e Cinema. Ao mesmo tempo, o artista está em papéis nos filmes “Saudade fez morada aqui dentro”, em cartaz há mais de sete semanas e que recentemente entrou no catálogo da Netflix, “Longe do Paraíso”, que estreou no último dia 7 de novembro e o longa-metragem “Malês”, dirigido por Antônio Pitanga.

Durante este novembro negro, mês em que se celebra o Dia da Consciência Negra, os soteropolitanos poderão conferir o trabalho de Heraldo e prestigiar o filme “Malês”. Isso porque, após estrear no Festival de Cinema do Rio de Janeiro, o longa será exibido em algumas mostras na capital baiana.

No teatro, Heraldo também tem se destacado na atuação de papéis marcantes como é o caso do espetáculo “Nó”, que estreou em abril deste ano, no Teatro Sesi Casa Branca, em Salvador. Na peça, o ator interpreta Sebastião, marido de Célia, interpretado pela atriz Iana Nascimento. “Nó” acompanha o cotidiano deste casal e se debruça sobre temáticas importantes como, por exemplo, o racismo, a violência e o luto.

Atualmente, o ator se divide entre Salvador e Paraíba, onde grava a segunda temporada da série Cangaço Novo, título lançado pela Amazon Prime. Na entrevista publicada na íntegra abaixo, Heraldo de Deus relembra sua trajetória, divide as impressões sobre os projetos que vêm desenvolvendo na frente e atrás das câmeras, fala sobre sua ancestralidade e analisa o processo de arquitetura hostil que Salvador vêm passando nos últimos anos. Confira:

Portal Umbu: Quem é Heraldo de Deus?

Heraldo de Deus é um menino criado com vó e que essa avó deu o gosto por contar histórias. Partindo disso, me tornei ator, e do teatro que é a minha base, cheguei no audiovisual.

Portal Umbu: Pesquisando sobre sua trajetória, li que você iniciou sua carreira em encenações dos presépios e das coroações de Nossa Senhora. Como foi esse primeiro contato com o fazer artístico e quando você percebeu que iria trabalhar com arte?

Na realidade eu não considero um começo de trajetória! Para mim sempre foi por pura diversão eu sempre fui desinibido. Uma das minhas memórias mais antigas sou eu sendo o palhaço do aniversário de 2 anos de um primo. Para mim era tudo uma grande brincadeira de faz de conta e por gostar de fazer isso eu sempre fui me inserindo na escola católica que estudei, na igreja que frequentei… acho que tudo aconteceu, porque fui uma criança que teve a possibilidade de brincar e de fabular muito exacerbada.

Quando eu tinha 10 anos uns produtores foram à escola que eu estudava chamar alguns alunos para um teste de um especial de TV. Não rolou, mas ver a câmera apontada para mim, causou alguma coisa que não sei explicar. Saí da escola querendo estudar teatro, perdi na segunda fase e vieram mais duas reprovações. Coloquei em minha cabeça que minha carreira não dependeria estritamente de fazer graduação na UFBA. Estudei comunicação e alguns anos depois de me formar vi uma seleção para uma peça no teatro de plataforma!

“Eu vi que para estar no centro, precisaria fazer um teatro que vem da periferia e que fale sobre a nossa realidade enquanto povo preto.”

Eu vi que para estar no centro, precisaria fazer um teatro que vem da periferia e que fale sobre a nossa realidade enquanto povo preto. Então, o grande marco que considero o início da minha carreira profissional é o espetáculo “Zeferina: A rainha de urubu”, nesse momento percebi que era possível. No ano seguinte, tentei o curso livre da Ufba e acho que talvez essa tenha sido uma escola do que fazer e do que não fazer artisticamente. De lá para cá, são 12 anos entre o teatro e o cinema passando pela publicidade e pela TV/streaming.

Portal Umbu: Atualmente, o público pode conhecer o seu trabalho em produções como “Saudade fez morada aqui dentro” e “Longe do Paraíso”. Como você analisa este momento da sua carreira?

É engraçado porque considero o cinema um grande lance de plantação e colheita. Os dois filmes que agora estão em cartaz foram rodados em 2018 e 2019. De lá para cá, muita coisa dentro e fora de mim, mudou e acredito que amadureci muito artisticamente. São dois filmes importantes para mim. “Longe do Paraíso”, por ser dirigido por Orlando Senna, um mestre do nosso cinema que pensou muita coisa importante num cenário nacional e internacional também, e pela discussão sobre esse direito à terra que o filme traz.

Já “Saudade”, é um reencontro com a turma da Plano 3 (coletivo de realizadores de cinema na América Latina) com quem gravei meu primeiro curta lá em 2012, “Navegantes”. Um pessoal que me ajudou até no meu nome artístico, pois, um dos integrantes chama Haroldo Borges e eu estava pensando em usar o nome artístico Heraldo Borges foram eles que para evitar confusão falaram: você é de Deus e de Deus é mais legal! Além de tudo é um filme sensível, poético, viver o set com eles lá em Poço de Fora me fez aprender muito.

Portal Umbu: No início deste ano, você atuou no espetáculo “Nó”, que se debruça sobre temas sensíveis para famílias negras como, por exemplo, o racismo, a violência e o luto. Como foi para você trabalhar com esses temas tão desafiadores?

Para mim que sou pai de um garoto de 6 anos e que estou aguardando a chegada do meu segundo filho, só de passar pela cabeça a imagem deles sofrendo alguma violência eu já fico mal. “Nó” é aquele espetáculo necessário que propõe uma reflexão sobre a nossa realidade e principalmente nos faz refletir a nossa atualidade, mesmo que a história se passe na década de 50. Aliado a tudo isso a possibilidade de estar em cena com minha companheira Iana, que considero uma baita profissional, dedicada e talentosíssima. O texto foi escrito por Gildon Oliveira que considero uma grande referência quando falamos em dramaturgos baianos. Acredito que, em meio a todas as pessoas envolvidas no processo, toda dureza de abordar esse tema ficou amenizada.

Espetáculo “Nó” realizou temporada em abril deste ano, no Teatro Sesi Casa Branca, em Salvador. Foto: Vanessa Aragão

Portal Umbu: Houve algum projeto em que você sentiu que se envolveu demais ou que transformou profundamente o seu olhar acerca de uma questão? Como foi lidar com esse processo?

Muitos projetos, em diversos fatores: “Navegantes” foi a possibilidade de fazer alguém que não tinha um braço, interpretar Mário Gusmão, um precursor de tantos como eu que, mesmo depois de 40, 50 anos, vivo situações similares às dele. Acho que tudo que fiz me transforma de alguma forma, muda meu olhar.

Portal Umbu:  Além das produções citadas acima, você atuou no longa “Malês”, como foi a experiência de trabalhar em uma produção de Antônio Pitanga que conta a história do povo negro no Brasil pela própria ótica?

Eu acho que “Malês” é um chamado da ancestralidade. A primeira vez que ouvi falar que o filme ia ser produzido foi em 2016, eu era funcionário da Dimas e Camila [Pitanga], com o pai, havia feito uma visita num momento que eu não estava. Uma colega comentou comigo que o filme seria rodado aqui e pensei comigo mesmo: essa história é minha. Vou estar nesse filme e tentei da forma que me era possível chegar. Não é que depois de 5 anos o filme veio até mim? Na hora que tinha que chegar e da melhor forma possível.
Seu Pitanga é nosso baluarte, uma lição de sensibilidade, de vitalidade, de perseverança, aulas de como cada artista negro deveria se portar nesse país, MESTRE, assim em caixa alta mesmo.

Vou contar uma história que aconteceu comigo: alguns anos atrás, fui participar como ator do clipe “Confiança”, de Mateus Aleluia. Num dado momento ele olhou para mim e disse: Heraldo, guerreiro Hauçá. Fui correndo pesquisar as imagens dos Hauçás e não era que eu parecia mesmo?!

Digo que esse foi meu primeiro teste de ancestralidade, depois fiz um desses que compramos pela internet. E deu que, além de 91% da minha ancestralidade africana, mais da metade disso provém da região onde estão os Hauçás, a chamada Costa da Mina, de onde vieram os negros mulçumanos aqui chamados de Malês. Por isso, no primeiro dia cheguei no filme com a camisa “Confie na força dos seus ancestrais”. “Malês”, para mim, é esse chamado ancestral! É uma responsabilidade nossa de dar luz a essa história tão apagada.

Portal Umbu: Você está concluindo o curta “Espinho Remoso”, onde assina o roteiro e a direção. Como foi trabalhar “por trás das câmeras”?

Comecei num coletivo chamado Ouriçado Produções, depois fui estudar cinema quando conheci meus sócios, Vilma e Djalma e fundamos a “Sujeito Filmes” a partir do curta “Sujeito Objeto”. Desde 2017 também tenho essa atuação do lado de trás das câmeras, escrevendo, dirigindo, produzindo. Espinho Remoso é o meu quarto roteiro dentro da Sujeito, antes, escrevi também “Sujeito Objeto”, em parceria com Djalma, “Cinco Fitas”, em parceria com Vilma Carla e Bárbara que, além de ter escrito, também atuei.

Portal Umbu: Ainda sobre o curta, ele propõe uma reflexão interessante entre a cidade e as pessoas. Como você tem visto as intervenções e transformações estruturais, como a redução de áreas verdes na cidade, e mudanças sociais que Salvador têm passado nos últimos anos?

“Espinho Remoso” é o primeiro filme que assino roteiro e direção sozinho e parte da minha observação da cidade e de como a arquitetura muitas vezes é pensada para afastar as pessoas, principalmente as que se encontram em situação de rua. As grandes esferas ou os cactos abaixo dos viadutos para que as pessoas não tenham o mínimo abrigo.

“Espinho” é esse meu olhar sobre essa Salvador que segrega, e fico do lado de quem se parece comigo. Engraçado porque o filme faz uma crítica justamente a algumas “áreas verdes” que acabam afastando pessoas. Para mim a mesma Salvador que fica mais quente pela quantidade de cimento é a que planta cactos em locais pontuais para afastar pessoas em situação de rua. São as mesmas pessoas que falam “não dê comida senão eles vão achar que tem que morar aqui na rua”. Gente que está na sua igreja de domingo a domingo, mas a caridade não chega na página 2. Fica só na capa.

Salvador é uma cidade muito potente e vejo que a cultura é um grande vetor de transformação, ministrei umas aulas de audiovisual em Valéria e toda vez saio esperançoso com o que a galera de lá tem a dar para cena na poesia, no teatro. Crianças e jovens com uma visão de mundo que com certeza eu gostaria de ter tido quando mais jovem.

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