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Enquanto os carros voadores não chegam

Não tem uma década que a mobilidade urbana sofreu sua maior revolução desde a invenção dos automóveis. O transporte público, um grande adorado das linhas progressistas de melhoramento urbano, foi novamente preterido; os aplicativos de transporte brigaram com legislações locais, polemizaram relações de trabalho e fizeram o escambau para se estabilizarem como a solução aos veículos próprios.

Mal deu tempo das startups responsáveis por esses apps retornarem lucros aos seus desenvolvedores para que novas soluções de transporte urbano ganhassem moral, ou, ao menos, um incentivo da indústria. Seriam os carros autônomos a nova melhor forma de voltar do reggae sem se pendurar num busu ou esperar por algum bendito que aceite sua corrida?

Pelo menos em Salvador, os apps de transporte chegaram em 2016, e era tudo mato, sem concorrência qualificada, pouca funcionalidade e, comparado com hoje, com pouquíssima segurança. Após muita balinha e 5 estrelas, o mercado pra esses apps ficou populoso; se você também é engenheiro de software, certamente recebeu alguma proposta de inovar com app de corrida.

 A grande revolta de taxistas marcou época, mostrando que união de trabalhadores faz barulho, mas que, sem apoio popular (afinal, ninguém queria pagar caro sem saber qual caminho estava fazendo) não tem mudança. E tem sido justamente esse o ponto de queda dessas plataformas; empresas como Uber e Cabify são referências mundiais em software, garantindo agilidade e segurança dos seus apps, mas pecam forte em sensibilidade e retorno aos seus usuários. Carros ruins, demoras em achar corridas e pouca remuneração são apenas os principais pontos que fazem esses apps serem apenas apps e ignorarem os humanos que os utiliza.

Talvez nessa linha de não focar nas pessoas envolvidas, as novas startups de mobilidade removeram de vez o condutor e já começaram a operar, desde 2022, com carros autônomos, sem qualquer condutor humano, chegando a fazer até 10 mil viagens por semana. Ainda operando em regiões e horários limitados dos Estados Unidos, empresas como a Waymo e Cruise já estão se bulindo para botar a cara no sol em outras regiões. Sua tecnologia não é lá tão exclusiva, no sentido da ideia, e equipa veículos não autônomos, como os Teslas do Elon Musk.

Aqui em nossas terras, a capacidade de computadores detectarem veículos vizinhos, faixas de rolamento e limites de trânsito vem sendo usada de forma assistiva, assim como os carros elétricos da Tesla, mas de forma mais humilde, como itens premium em linhas de alto padrão de veículos. A operação autônoma de veículos também foi implantada em parte dos trens do metrô de São Paulo.

Mas, não bastando a desconfiança de andar num carro sem ver o que está pilotando, a ausência de uma pessoa nos táxis-robôs lá de fora tem dado ousadia pra passageiros usarem os veículos para uma pegaçãozinha. Chegando a ser notícia na mídia local de San Francisco, Califórnia, passageiros assumiram ter feito a farra (sexualmente falando) mais de uma vez, mesmo sabendo das câmeras internas e de relatos de usuários sendo advertidos por usarem drogas dentro dos veículos, o que é contra as regras da plataforma.

Não há como negar que os aspectos culturais são os mais afetados pelas inovações. Assim como os apps de transporte tiveram que criar um novo espaço para si na sociedade e, ainda assim, luta para construir uma imagem sólida frente às queixas de remuneração injusta e práticas abusivas de cobrança, só podemos imaginar que o desafio para veículos com altíssima tecnologia embarcada e com maior impacto no mercado de trabalho (já que nem sequer motorista tem mais) vão enfrentar para andar sozinhos por aí.

E, por fim, da mesma forma que os apps de transporte aumentaram o trânsito nas grandes cidades, já foram elaborados estudos científicos atestando que veículos autônomos tendem a piorar ainda mais o problema de tráfego. Se, no caso dos apps de solicitação de motoristas a causa foi a migração dos usuários de transporte público para carros com apenas duas pessoas, aumentando a proporção de carros por pessoa em circulação, os carros autônomos, segundo pesquisadores da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, vão desequilibrar ainda mais essa taxa, já que enquanto o passageiro está fora da via, no seu trabalho ou casa, o veículo permanecerá circulando pela cidade em busca de outros passageiros.

Como resultado, as tecnologias digitais continuam firmes e fortes nessa batalha de ser a mais disruptiva do momento, não há dúvidas. Todavia, a forma leviana como legislações são desrespeitadas e aspectos sociais são postos em segundo plano dão a ideia de que estas provocam um caminho de evolução questionável.

Um retorno confortável pra casa depois do rolê vem com o custo do aumento do congestionamento e da remuneração injusta do condutor, enquanto ele ainda for necessário pra dirigir o carro. Cada vez mais, a noção individualizada de benefício sobrepõe o seu impacto sobre o coletivo; trazer novidades na vida cotidiana sem impactar negativamente sua sociedade ainda é um debate inexistente na cena da inovação, esta já permitiu até umas baguncinhas sexuais em pleno trânsito, mas não foi capaz de resolver problemas reais de cidades cada vez mais disfuncionais.

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Yasmin
Yasmin
11 meses atrás

Sempre sagaz é inteligente. Ótimo texto!!!

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