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Empreendedorismo feminino abre caminho com produção artesanal de ovos de Páscoa frente à crise do cacau e encarecimento de doces industrializados

Em entrevista ao Portal Umbu, Enylla Ingrid e Sâmara Mylles falam sobre como iniciaram no comércio de doces artesanais e os desafios do empreendedorismo

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil/2018

Um dos períodos de maior aquecimento econômico, a Páscoa deste ano pode ter deixado um gosto um pouco amargo na boca dos consumidores por conta de um fator decisivo na hora da compra: o preço.

As gôndolas coloridas de supermercados e grandes varejistas apresentaram ovos de chocolate valores mais altos que o esperado para 2025 por conta do aumento no preço do cacau. O déficit global na produção do fruto saltou de 200 mil toneladas na safra 2023-2024 para 700 mil toneladas em 2024-2025. Entre os motivos para a alta estão a crise climática, a influência do El Niño sobre as lavouras e doenças nas plantações que afetaram grandes produtores internacionais, como Costa do Marfim e Gana.

No Brasil, onde o consumo de chocolate pode chegar a 230 mil toneladas e a produção gira em torno de 190 mil ao ano, o chocolate em barra e o bombom acumularam alta de 15,62% em um período de 12 meses, conforme a prévia de fevereiro do Índice de Preços para o Consumidor Amplo (IPCA) do IBGE, o item “chocolate em barra e bombom” acumulou alta de 15,62% nos últimos 12 meses.

Já os tradicionais ovos de Páscoa têm alta estimada em 18%, a maior em 13 anos, influenciada pela supervalorização internacional do cacau e da baixa do real. A produção deste item, segundo a Associação Brasileira da Indústria de Chocolates, Amendoim e Balas (Abicab), apresentou uma queda de 22,4% em relação a 2024.

Com a inflação e dificuldades na produção, os ovos comumente encontrados em lojas mais tradicionais ainda apresentam outros problemas, mas desta vez, relacionados à composição, como o baixo percentual de chocolate e o excesso de outros ingredientes como gordura e aditivos que alteram o sabor do produto.

Diante dos desafios enfrentados pela indústria, os negócios locais acabam ganhando espaço e conquistando o paladar dos consumidores. Para entender como funciona a produção de ovos de Páscoa artesanais, o Portal Umbu conversou com duas jovens mulheres empreendedoras: Enylla Ingrid, fundadora da Manga Rosa Confeitaria, e Sâmara Myles, fundadora da Saborosa Empada.

Natural de Tapiramutá, na Chapada Diamantina, Enylla é formada em Publicidade e Propaganda e hoje conduz sua empresa ao lado do namorado Rafael Santos. No entanto, a jornada dela na gestão de negócios começa aos 15 anos e com o apoio de um familiar especial. “Isso foi em 2016, meu avô, de aniversário de 15 anos, me deu R$ 50 e eu fui comprar as coisinhas para eu começar a vender bombom na escola. Eu consegui comprar todos os materiais e ainda sobrou um pouquinho para eu usar de troco”. Ela conta que, embora tenha tido apoio do pai, que é contador, para precificar seus produtos, não ter referências empreendedoras em casa foi uma aventura.

Enylla e Rafael são sócios na Manga Rosa Confeitaria Artesanal | Foto: Arquivo pessoal

O processo foi amadurecendo ao longo dos anos e, em 2021, buscando formalizar ainda mais a Manga Rosa, a confeiteira registrou o empreendimento no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ) e formou sociedade com o namorado, Rafael Santos.“A gente divide tanto as contas, quanto as produções. […]  ele gosta mais de ficar na parte mais burocrática, de finanças, então ainda assim a manga rosa tem um rosto meu”, conta.

Para Sâmara, a história de encontro com o negócio foi um pouco diferente. “Eu comecei fazendo empada doce porque eu gostava. Minha mãe é confeiteira desde que eu nasci e eu sempre disse: ‘Nunca vou trabalhar com isso, nunca vou ficar a madrugada toda, perdendo a noite, cozinhando’. Paguei minha língua, né?”, brinca. 

Com o empreendimento surgindo entre 2019 e 2020, Sâmara conta que foi durante a faculdade que as coisas engrenaram. “Eu comecei a vender na faculdade quando deslanchou, foi justamente no período de Páscoa, quando eu postei um ovo salgado e aí o vídeo viralizou. Várias pessoas foram me conhecendo e, aí sim, eu comecei a trabalhar com a confeitaria”. Mesmo com o sucesso, ela conta que ainda encarava a área como uma segunda opção, uma vez que na época ela gerenciava uma loja de roupas. Mas à medida que a procura pelos itens da Saborosa aumentou, o negócio se desenvolveu e ganhou o apoio de Tâmara Mila, mãe e sócia de Sâmara.

Páscoa e outros períodos de procura

Apesar do atual cenário, a Páscoa continua sendo o período de maior rentabilidade para os negócios, como conta Enylla: “A Páscoa, para a gente, é o momento chave do ano. Tanto na parte parte de faturamento, que é o nosso maior faturamento hoje, quanto na parte de campanha mesmo, é onde a gente consegue investir mais tanto o nosso tempo quanto a nossa produção. E também por ser num período no meio do primeiro semestre. Não é como o Natal, por exemplo, em que a gente tem como concorrentes empresas de perfumaria ou lojas de roupa”

“Eu tenho percebido que as pessoas têm buscado mais as confeiteiras artesanais e eu não digo isso só por mim, mas por outras colegas de profissão e por clientes também. Esse ano a gente recebeu algumas mensagens e algumas pessoas vieram diretamente a mim para falar, que sentiram que as vendas de ovos de Páscoa nos mercados ou nessas lojas de conveniência demoraram mais. Porque nos anos anteriores, assim que acabava o carnaval, a gente já conseguia ver os expositores sendo montados e esse ano demorou mais um pouco, justamente por isso, pela crise do cacau”, explica.

“E aí que a gente consegue ter uma margem mais ampla para falar: ‘ó, o que você tá comendo, pode ser ainda melhor’. Além de ser ainda melhor, você vai estar apoiando um comércio menor, um comércio local que vai te agradecer profundamente por você ter feito essa compra, diferente de você ir lá no mercado na gôndola e pegar um ovo de Páscoa que o sabor não vai ser tão interessante assim.”

Ela analisa que a clientela, com um vasto leque de opções, acaba precisando escolher entre dar um presente para um familiar ou comprar um panetone, produto que ela também comercializa. “Na Páscoa, não. A gente tem como únicas opções os ovos de chocolate e outros presentes que envolvam essa temática”. A empreendedora menciona ainda que, além da Páscoa e do Natal, outro período de festas que influencia positivamente para o faturamento da empresa é o São João. “Incrivelmente, a gente consegue ter um um volume de vendas tanto quanto o da Páscoa, por exemplo. Nós também fazemos licores artesanais e a gente consegue ter uma margem de lucro muito muito melhor porque é um produto que, apesar de ter alguns segredos, tem um custo mais baixo comparado ao ovo de Páscoa, por conta dos ingredientes e tudo mais. Mas ainda assim, a gente consegue ter uma margem de lucro bem boa”.

Já Sâmara conta que, além do período pascal, as festas de fim de ano também foram um momento para a Saborosa. “Ano passado, na verdade, foi meu primeiro Natal e foi um estouro, porque eu comecei a trabalhar com panetone salgado também, que já é diferente. E eu sou uma pessoa que eu não gosto muito de doce, então, eu penso em fazer coisas para pessoas iguais a mim, que não gostam tanto de doce”.

“Até o começo desse ano, a Saborosa era só minha, mas minha mãe veio trabalhar comigo e ela trouxe a parte doce. E já era uma coisa que eu sentia que faltava muito”. A confeiteira conta que a chegada da mãe atendeu a pedidos de clientes que queriam encomendar ovos de Páscoa na versão doce, além da salgada. Sâmara, que também faz itens para festas de aniversário, compartilha que uma novidade é uma versão de ovo de Páscoa feito de cookie. 

“É um lanche que tem viralizado muito. Que as pessoas têm comprado para comer e hoje é um dos meus itens da loja mais vendidos. Porque as pessoas gostam de coisas diferentes, as coisas diferentes chamam muita atenção.”

Analisando o momento atual, ela diz: “Eu tenho muitas amigas confeiteiras e a gente comenta que estava todo mundo com uma expectativa muito baixa. Então eu realmente fiquei com medo de apostar, de não conseguir, mas eu me surpreendi. As pessoas começam a fazer pedido, normalmente, na semana da Páscoa e esse mês, bem antes da Páscoa, as pessoas já estavam fazendo o pedido”.

Fidelizar e atrair

Pensando na atração e na fidelização de clientes, Enylla conta como a relação com o público é fundamental para a manutenção de um negócio. “Nós temos clientes que nos acompanham desde a época da pandemia, que eu estava lá no interior. Então, são clientes que são amigos e que a gente sente falta quando eles não pedem e aí manda a mensagem. Tem esse cuidado de conversar mesmo, de tratar o cliente como se fosse um amigo, como uma pessoa e não só como um número que chega […] A gente tem esse cuidado de ajudar a pessoa quando ela está em dúvida, saber o que que ela gosta mais, qual é o paladar dela, se ela gosta de algo mais azedinho, se ela gosta de algo mais doce, pra gente conseguir indicar. E esse cliente sai satisfeito. Desde o primeiro momento que ele chega até a gente, como contato no WhatsApp ou no Instagram, até o pós-venda”.

A criadora da Manga Rosa Confeitaria diz que costuma perguntar se o cliente tem algo a acrescentar, um feedback para melhorar a entrega da marca, interação que já rendeu retornos positivos e elogios ao atendimento e atenção. “São coisas que, apesar de serem simples de serem resolvidas, ainda assim, talvez seja um diferencial nosso. Qualidade não é um diferencial. Eu sou formada em comunicação também, fiz Publicidade e Propaganda, e no curso, os professores falam que ‘qualidade não é o seu diferencial, qualidade é sua obrigação. Você precisa entregar um produto de qualidade para o seu cliente’. Então, ter esse atendimento diferenciado, eu acho que é um dos nossos diferenciais, porque cativa a pessoa, ela se sente próxima”

Comunicação pós-venda é uma das estratégias para fidelizar consumidores | Foto: Enylla Ingrid/Arquivo pessoal

Citando uma estratégia, a empreendedora de Tapiramutá  menciona a organização de calendário que rende benefícios aos clientes mais assíduos. “No início do ano, a gente planeja um calendário e, antes de liberar o menu, nós fazemos um grupo onde liberamos o menu antes para que as pessoas tenham acesso com um valor mais em conta”. A estratégia provoca uma “pressão” nos consumidores, que acabam buscando os produtos com antecedência e economizando. “[O preço] realmente aumenta e a gente não volta para esse menu depois que a campanha de pré-Páscoa fecha […] E a gente não tem distinção, posta no Instagram, as pessoas entram no grupo do WhatsApp e a gente compartilha também nas listas de transmissão do WhatsApp”, conta.

“Além do menu ser mais em conta, a gente dá um mimo também para agradecer. Então, a gente sempre tenta dar essa bonificação para quem se empenha em estar ali, antes de todo mundo”, explica, mencionando que, na divulgação, além do uso de tráfego pago nas redes sociais, ela e o sócio contam com uma importante ferramenta. “E boca a boca também, meus pais são especialistas nisso lá no interior, então vem muita gente a partir deles”.

Já a fundadora da Saborosa Empadaria conta que o recurso visual é um elemento-chave para atrair a atenção dos consumidores. “Hoje em dia, as pessoas comem pelas fotos. Elas querem ter um produto que elas possam tirar uma foto bonita e postar. Então, eu tento trazer para a Saborosa isso: além de ser um produto bom, ser um produto instagramável, para que a pessoa possa ver e postar”, diz Sâmara Mylles.

“Além disso, eu tento fazer a minha marca ser divertida, alegre, comunicativa e, principalmente, uma marca jovem. Eu sou uma pessoa jovem, então eu falo com o meu público jovem. Eu trato as minhas clientes, os meus clientes como amigos. Eu tento me comunicar com eles, como se fossem amigos, para que eles tenham confiança em mim”, cita a empreendedora.

Desafios de empreender

Perguntadas quanto aos principais desafios enfrentados na confeitaria, as empreendedoras analisaram o quadro através das dificuldades com preços e de sobrevivência do negócio.

“Atualmente, o nosso maior desafio está sendo os custos mesmo”, conta Enylla Ingrid. “O chocolate subiu muito do ano passado para cá. O valor do quilo do chocolate praticamente dobrou, então a gente fez alguns malabarismos na hora da precificação, sem perder a qualidade. Inclusive, foi uma das coisas com que eu me preocupei na hora que a gente estava montando o menu e também explicar isso para os nossos consumidores, porque a gente atende aqui em Salvador até determinado período e depois a gente vai para o interior, que é minha cidade, para atender lá também”. 

A empreendedora diz que há sempre a preocupação de explicar o que influencia o preço para os clientes, mas que encontrou na variedade de itens uma alternativa para driblar a situação. “Além do ovo de Páscoa, a gente tem uma caixinha com quatro brigadeiros temáticos, então, a gente trouxe elementos de Páscoa, como um carimbo temático para as pessoas presentearem ou para quem quer comprar para si e não ficar sem o doce nesse momento tão especial. Tem um ovinho que é como se fosse um bombom de morango, que também fica com preço mais em conta, não deixa de ter o tema de Páscoa. E a gente tem também uma barra de chocolate recheada”

Caixa com brigadeiros temáticos é novidade da Manga Rosa para Páscoa deste ano | Foto: Enylla Ingrid/Arquivo pessoal

“A gente foi manobrando a crise do cacau de outras formas, para que a pessoa não fique desamparada: ‘Poxa, eu quero comer um chocolate, mas agora eu não tenho como pagar esse valor’. E também que a gente não fique sem atender a esse público”, fala a fundadora da Manga Rosa Confeitaria Artesanal.

Observando outro entrave, Sâmara conta que poucas oportunidades de desenvolvimento também são desafios para ela. “Acho que falta um pouco de oportunidade. E o meu maior medo, o meu maior receio é não dar certo, não acontecer. Eu acho que eu sou muito nova, mas eu só consigo pensar no meu futuro. Eu sou uma pessoa que pensa lá na frente”

“Hoje eu tenho planos para a Saborosa, eu quero expandir, abrir um ponto físico, porque hoje ela é apenas virtual. Mas o meu medo é que tudo seja muito extravagante, muito alto. A gente, como jovem, tem muito pouca possibilidade de crescer no empreendedorismo. É bastante solitário o empreendedorismo”, analisa. Apesar das preocupações, ela conclui se encorajando: “Se você não não fizer o seu, você não vai conseguir [..]  Eu penso que se chegou até aqui é porque é para ser”.

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