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“Ela não reclama”: sobre os silenciamentos impostos às mulheres

portrait of woman while making the gesture of silence

É muito comum que quando, ao desvelar um problema que acomete as mulheres, outras pessoas se manifestem em oposição, alegando especialmente que “minha esposa/mãe/avó/tia/irmã não reclama disso”. Será mesmo? 

Preciso te dizer que se elas não reclamam externamente, com palavras exatas ou discussões calorosas, não é porque a situação não as incomoda, mas porque escolheram o silenciamento. Por costume ou proteção, para se sentirem mais amadas e pertencentes às suas relações, as mulheres tendem a adotar o silêncio, aquele que nasce do apagamento das suas vontades, necessidades e angústias. É importante você saber também que elas não mantêm esse silenciamento ininterruptamente, mas, quando algo lhes escapa das bocas irritadas, das testas franzidas ou dos gestos frenéticos, elas são interrompidas, paralisadas e impedidas de prosseguir. 

Por vezes, elas também se auto-sabotam e interrompem o próprio “processo de reclamação”. Sabe aquela cena clássica de sua mãe no meio da sala, esbravejando que “ela é a única que pensa em tudo”, que se ela parar “a casa não anda” e que ninguém lhe dá um minuto de sossego? O comportamento precedente a esta cena é que os integrantes do lar (incluindo o marido/pai) permaneçam em silêncio total, ou contenham uma risada, ao presenciarem a matriarca perdendo as estribeiras – de novo. A sequência de acontecimentos pós-explosão é que as pessoas se movimentam e começam a assumir melhor as tarefas – até o momento em que a reclamona, ou se incomoda das coisas mal-feitas, ou diz que é melhor ela mesma fazer. Rapidamente, todos desistem de cooperar e o ciclo se repete.

Para os que foram atacados, a conclusão é que no fundo, lá no fundo, essa mulher ama toda essa responsabilidade e exaustão do papel da maternidade, apesar dos incômodos (o tal do “padecer no paraíso”). Já a mulher em questão não se sente bem ao ver que a família presenciou seu “escândalo” e, agora, estão cumprindo suas obrigações com medo que ela surte de novo. Por toda a sua vida, essa sujeita foi treinada a agradar a todos – condição básica cobrada das figuras femininas da sociedade – e lhe faz muito mal perceber que ela descumpriu essa regra porque não aguentou o tranco. Com a cabeça mais fresca, ela tenta convencer a si mesma que o problema foi a falta de organização e que, da próxima vez, será diferente, basta ela mesma mudar – e não os membros da família.

É nesse ponto que eu preciso te avisar o quão raro será você ver mulheres da sua família ou convívio admitirem o cansaço e dores que passam, transformando isso em uma reclamação legítima. Mas, por quê? 

“Como apontam Diniz e Pondaag (2004, 2006), o silêncio, para as mulheres, é um reflexo das posições de gênero. Trata-se de uma estratégia de sobrevivência e enfrentamento (mesmo em situações de violência), na qual a mulher se responsabiliza pela manutenção e pela “paz” da relação amorosa e familiar, ainda que para isso precise suprimir a expressão de seus pensamentos e afetos.” (p. 120)

Esse trecho faz parte do livro “Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação” da Valeska Zanello que, sendo pesquisadora e psicóloga, tem trabalhado em centros de atendimento psiquiátrico e, através de entrevistas, tem notado como o silenciamento no seio familiar é mais comum do que imaginamos. 

No seu artigo “Saúde mental e gênero: facetas gendradas do sofrimento psíquico”, ela evidencia que 100% das entrevistadas relatam situações de silenciamento ao sofrimento psíquico. Veja o relato de uma delas: “[…] isso é coisa que eu venho juntando desde a infância […] Mágoa, rancor, raiva […]. Assim, tudo meu eu guardo, eu tranco. Aí eu fui juntando e agora, depois de velha, piorou mais”. Outra respondente aponta algo semelhante:  “Nada foi fácil, aí eu fico só me fazendo de forte mas tem hora que eu choro, que eu me desabo mesmo. Dor até sinto mas não demonstro essa impressão de dor sabe? E aí eu vim, eu vim nessa luta de muito tempo né? Só que a cabeça foi o que adoeceu, porque eu fui guardando tudo isso comigo.”

Elas não reclamam e, por vezes, nem mesmo conseguem visualizar o tamanho do sofrimento que carregam e, ainda quando isso acontece, elas não permitem validar essas emoções. O artigo evidencia isso ao afirmar que: “A invisibilização do sofrimento apareceu em 85,7% das entrevistas, sendo contabilizada em sua maioria como uma desqualificação da própria paciente, mas também apareceu nos ambientes familiar e social ou, ainda, no âmbito judicial no que concerne às vítimas de violência física e sexual.” Por isso, faz todo sentido que: a mãe que esbravejou mude de ideia em poucos dias; a esposa que chorou na noite anterior diga na manhã seguinte que não foi nada; a irmã que discutiu no grupo da família, por se sentir invalidada pelos tios, peça desculpas e não siga com a discussão. 

Por isso, com a mente e o coração aberto, observe as evidências que eu trouxe e alinhe-as às experiências que você viveu com mulheres da sua família. Tenho certeza que a memória irá trazer inúmeras cenas de tristeza, dor, agonia, cansaço, incômodo que elas, por muito tempo, foram incapacitadas de falar ou expressar. Eu te convido a mudar essa narrativa e ser a pessoa que ofereça a essas mulheres o ambiente seguro e protegido para elas expressarem, paulatinamente, as camadas de sofrimento que o silêncio escondeu ao longo dos anos. Nesse momento, você vai descobrir que elas reclamam sim – e possuem todo direito para tal.  

FONTE:

ZANELLO, Valeska; FIUZA, Gabriela; COSTA, Humberto Soares. Saúde mental e gênero: facetas gendradas do sofrimento psíquico. Fractal: Revista de Psicologia, v. 27, p. 238-246, 2015. 

ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Editora Appris, 2020.

OPINIÃO

O texto que você terminou de ler apresenta ideias e opiniões da pessoa autora da coluna, que as expressa a partir de sua visão de mundo e da interpretação de fatos e dados. Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal Umbu.

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