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“É importante ter, mas é preciso também lutar do ponto de vista político”, afirma o presidente da Black Ordem, Julio Vilela

Em entrevista a Jadson Luigi, do Portal Umbu, Julio Vilela falou sobre sua trajetória profissional, os desafios da advocacia negra e os objetivos da Black Ordem

Na metrópole mais negra fora da África, o acesso da população negra a direitos ainda é um desafio. Com o objetivo de atenuar essas dificuldades para a advocacia negra baiana, um grupo de advogados criou em maio deste ano o Black Ordem, um quilombo jurídico que visa apoiar e promover a integração de advogados negros.

Presidente do Black Ordem, Júlio Vilela é advogado e presidente da Comissão Especial de Relações com a África e a Diáspora da OAB-BA. Natural de Salvador, Julio é graduado em direito pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL) e possui especialização em Ciências Criminais e Gestão pública e privada.

“Sempre tive o sonho de fazer o curso de Direito, ingressei na universidade e pós-universidade, tive um grande desafio na minha vida, que primeiro foi dar um retorno para minha família, para os meus amigos que criaram uma expectativa desde o momento que entrei na academia e o segundo desafio, porque eu era o primeiro advogado da minha família, de toda geração”, relata Julio.

Em entrevista a Jadson Luigi, do Portal Umbu, Vilela falou sobre sua trajetória profissional, os desafios da advocacia negra e os objetivos da Black Ordem. Confira:

Portal Umbu: Quem é Julio Vilela?

Inicialmente, eu gostaria de agradecer pelo convite. Venho acompanhando esse projeto lindo [Portal Umbu], que vem sendo desenvolvido nas redes sociais. Estar dentro desse rol de pessoas selecionadas, para mim também é uma alegria, pois, demonstra que a luta coletiva que fazemos e enfrentando dentro do sistema de Justiça, tem dado certo.

Julio Vilela é um advogado formado pela Universidade Católica, com especialização em Ciências Criminais, gestão pública privada. Atualmente estou Conselheiro da Ordem dos Advogados, presidente da Comissão de África e diáspora e também presido o coletivo de advogados negros e negras e sempre me coloco à disposição para luta coletiva e um sistema de Justiça ainda mais igualitário e justo.

Portal Umbu: Conta para os nossos leitores qual foi sua trajetória até assumir a presidência da Black Ordem da OAB-BA?

Venho de Santo Antônio de Jesus, interior da Bahia, no Recôncavo baiano. Sempre tive o sonho de fazer o curso de Direito, ingressei na universidade e pós-universidade, tive um grande desafio na minha vida, que primeiro foi dar um retorno para minha família, para os meus amigos que criaram uma expectativa desde o momento que entrei na academia e o segundo desafio, porque eu era o primeiro advogado da minha família, de toda geração.

Então, eu não sabia como me posicionar dentro da sociedade, como fazer a disputa dentro do mercado de trabalho, como me inserir nesse grupo. Neste sentido, montamos um quilombo jurídico que nasce lá atrás como o coletivo de advogados negros e negras que seria o espaço onde esses profissionais que já tinham a trajetória mínima dentro do sistema de Justiça pudesse acolher, apoiar e orientar esses novos advogados. Então a dificuldade que passei outrora, eu ressignifiquei e montamos esse coletivo com o objetivo de acolher esses novos advogados e advogadas para poder não passar ou tentar minimizar os sofrimentos que encontramos dentro do sistema judiciário.

Portal Umbu: Qual a sua percepção da representatividade de pessoas negras dentro da OAB-Bahia?

A representatividade sempre de forma mínima. Às vezes algumas pessoas não se reconheciam enquanto negro ou negra por conta do próprio sistema determinar e vínhamos percebendo que não existe a democracia se a população negra, essas mulheres, não estiverem dentro desse sistema, em locais de espaço e de decisão. Então essa percepção, não só nossa como de toda sociedade, vem fazendo com que políticas afirmativas estejam cada vez mais dentro do cotidiano, não só da Ordem dos Advogados, mas do sistema de Justiça.

Portal Umbu: Quais são os objetivos do movimento Black Ordem na OAB Bahia?

A Black Ordem, ela surge dentro do processo eleitoral, onde a gente entende que precisava ter um quilombo ter um espaço nosso onde a gente pudesse se organizar, montar estratégia, falar sobre as nossas dificuldades. Até porque a gente entende que a instituição ela tem que atender toda a advocacia, mas de maneira particular aquela advocacia que mais precisa.

Então a ideia da Black Ordem é juntar todas as pessoas que fazem parte ou não do sistema OAB para que junto a gente possa construir um novo caminho uma nova história para advocacia possibilitando que essa advocacia que sempre esteve invisibilizada possa fazer parte e ter uma instituição ainda mais acolhedora, ainda mais respeitando a nossa Constituição e possibilitando que a população vulnerável acesse a justiça.

Portal Umbu: Em entrevista ao portal Política Livre você comentou sobre a linha de crédito que a Black Ordem solicitou aos advogados negros. Já tem algum avanço por parte da instituição?

A gente fez uma primeira conversa com o presidente da Desenbahia apresentando esse projeto, que em um primeiro momento foi bem recebido. O projeto seria a possibilidade de linha de crédito para que essa advocacia negra, advocacia de forma geral, mas a advocacia negra pudesse acessar sem precisar ter a questão da contrapartida que, na maioria das vezes, o grande problema dos nossos é porque a gente não tem nenhum tipo de contrapartida.

Seja uma casa, seja um automóvel ou alguma garantia para que a gente possa acessar a linha de crédito. Nessa linha de crédito a gente vai poder acessar com juros baixos, até 1.4, ao mês e com taxa de isenção de seis meses, sem precisar nenhum tipo de garantia. O projeto foi protocolado e nós estamos aguardando o retorno, uma reunião do presidente que está com jurídico da Desenbahia, finalizando as tratativas para que a gente possa assinar o termo de cooperação e assim os advogados e advogadas acessarem a linha de crédito.

Portal Umbu: Ao longo da sua jornada no direito, você já passou por algum tipo de discriminação no seu local de trabalho? Se sim, como você se sentiu?

Sim, inclusive eu costumo dizer que toda vez quando a gente se reúne na Black Ordem, parece que a história é a mesma. Na Bahia, infelizmente a gente vive um racismo subentendido, muitas pessoas são racistas e acabam dizendo que não. A gente tem uma estrutura toda racista. Já sofri e ainda sofro. É por isso que a gente está aquilombando, para poder tentar compartilhar essas dores e não adoecer e tentar continuar lutando por uma sociedade que a gente espera e que a gente luta para poder ter.

Como dentro dos espaços de poder nada é dado de maneira gratuita, como as pessoas costumam dizer que “não existe o almoço grátis”. Não é diferente dentro da disputa, ali do poder e da visibilidade, mas a gente tem avançado. Porque temos também as pessoas que entendem e que compreendem, que são pessoas não negras que acabam de uma certa forma tendo a sensibilidade e entendendo seu lugar de privilégio dentro da sociedade. E aí a atual gestão da OAB, por exemplo, tem essa sensibilidade, a gente tem avançado com algumas pautas.

Claro que a gente sempre espera que o processo seja de uma outra forma, que o avanço seja de uma forma mais acelerada, mas a gente entende que ali existe uma correlação de forças e que às vezes as coisas não acontecem do jeito que a gente espera. Mas o fato da gente se unir e apresentar pautas no sistema da OAB, a gente teve alguns avanços, por exemplo, hoje, nós temos a Lista do Quinto, que a possibilidade do advogado e da advogada conseguir ser um desembargador.

Aqui na Bahia a gente tem uma resolução onde os candidatos a desembargador, a lista que é composta por seis tem que respeitar a paridade, onde tem que ter 3 homens e 3 mulheres e desses seis, um tem que ser negro.

Portal Umbu: Um dos desafios que a advocacia negra enfrenta é a falta de dados oficiais, como isso impacta a categoria?

Temos um impacto muito ruim, porque se não sabemos do ponto de vista técnico, quantos somos, onde estamos, quanto recebemos. Fica difícil de fazer política pública.

Recentemente a Ordem dos Advogados nacional lançou o censo da advocacia para sabermos quantos advogados negros têm, qual é a renda, onde é que os advogados negros estão, para, a partir daí, a Ordem e os movimentos começarem a fazer uma política mais direcionada, mais específica, com dados concretos.

Então temos esse déficit no sentido de entender como é que funciona isso e onde é que a gente está. Tem muitos advogados negros que a Black Ordem não consegue chegar, então, com esse senso, vamos saber onde é que essa advocacia negra está e atua. Esperamos que a instituição possa fazer políticas direcionadas para dar qualidade e condições melhores para essa advocacia que entendemos que ainda está à margem dentro do processo do sistema de Justiça.

Portal Umbu: Além deste desafio, hoje, quais são as dificuldades que a advocacia negra enfrenta?

A advocacia, em geral, enfrenta vários problemas, como a morosidade do Judiciário, a disputa muitas vezes desleal, inclusive a Ordem tem acompanhado isso de perto como a questão dos escritórios de massa, onde pessoas acabam trabalhando com um valor bem abaixo daquele estabelecido pela Ordem dos Advogados aqui na Bahia. Não temos uma lei que estabeleça qual o valor mínimo que o advogado e a advogada possam receber, então isso também dificulta muito. Temos feito um trabalho no sentido de tentar valorizar ainda mais a advocacia e poder colocar essa advocacia negra dentro dos espaços e dentro das disputas reais do sistema de Justiça.

Você trouxe um fato de Dra. Lívia [Santana e Sant’Anna Vaz]. Tem também a Dra. Márcia Virgens que hoje é procuradora, inclusive ela apresentou um projeto extraordinário que é o curso de residência jurídica dentro do Ministério Público (MP). A iniciativa possibilita que o jovem advogado negro e indígena possa acessar o MP e fazer uma espécie de residência para concorrer à carreira jurídica dentro do MP. O projeto oferece ainda a essas pessoas o entendimento de como é que funciona o sistema de Justiça e o Ministério Público que, às vezes, infelizmente, as Universidades não possibilitam isso de alguma forma.

Portal Umbu: Neste ano, o presidente Lula vai escolher um magistrado para indicar para o Supremo, na vaga da ministra Rosa Weber. Entidades ligadas ao movimento negro defendem a necessidade de haver uma ministra negra no STF. Conta aos nossos leitores qual a importância da indicação de uma ministra negra para a corte?

A Black Ordem também defende a indicação de uma mulher negra e que seja baiana. É importante pois a democracia, ela só vai resistir na sua plenitude quando tivermos a diversidade. Tem uma frase que é bem forte que fala: nada de nós sem nós.

O STF tem feito vários debates importantes da sociedade, da nossa Constituição de 88, então é importante ter uma mulher e ter uma mulher negra ali. Para esses assuntos tão polêmicos, com uma mulher negra, ela terá a sensibilidade para tratar essas temáticas. Além de que a mulher negra representa uma parcela significativa da sociedade, estamos falando de 50% da população negra e de mulheres negras, e não conseguimos ver esse reflexo dentro da alta Corte do nosso país. Isso é muito vergonhoso para nós enquanto brasileiros. Não temos essa representatividade dentro de um espaço tão sensível, que tem debates tão importantes.

Então, defendemos e entendemos a necessidade de ter uma mulher negra como indicada pelo nosso presidente, Lula, que ele sempre defendeu isso: a pluralidade e a diversidade. Por isso, que foi um governo que retornou e esperamos que com a história e o legado que ele tem ele possa indicar uma mulher negra para a vaga.

Portal Umbu:  Quais são as suas expectativas para que a população negra se movimente para ocupar o mercado de trabalho, a produção de conhecimento e a intelectualidade?

A mídia periférica, hoje, tem possibilitado que a gente tenha acesso a vários conhecimentos que tem um recorte racial, porque sempre existiam, mas que não tínhamos acesso e hoje temos. Atualmente, vemos vários negros e negras acessando as Universidades, disputando uma entrada no mercado de trabalho, disputando doutorado, escrevendo um livro. Eu vejo isso de uma forma extraordinária, um processo que vai demorar um pouco, porém que está acontecendo.

Às vezes a gente também se depara com os nossos, com um currículo imenso que, antigamente, era dito para os advogados negros que precisávamos ter alguns pré-requisitos para acessar alguns espaços de poder e ter o reconhecimento financeiro. Hoje, vemos o nosso povo com o currículo imenso e com todos os pré-requisitos exigidos, mas na hora da contratação, são outras pessoas que estão em determinado local de destaque dentro do sistema.

Então, temos feito esse movimento político, mostrando para o nosso povo e dizendo: é importante ter, mas é preciso também lutar do ponto de vista político. E se a gente entrar naquele modelo da branquitude no sentido de preencher determinados pré-requisitos para poder adentrar em determinados espaços. Sabemos que muitas vezes isso não acontece, vemos muitos profissionais qualificados, com um currículo extraordinário se submetendo a determinados tipos de espaços que não é o espaço que aquela pessoa estudou e que se dedicou.

Os pré-requisitos que a branquitude exige são a questão da pigmentação da cor da pele e o próprio networking. Então, temos feito esse trabalho político para que o nosso povo não adoeça com aquela perspectiva de que precisa ser uma pessoa para ter determinado local. Temos esse cuidado no sentido de dizer que precisamos ter isso, mas também tem que ter outros elementos que a sociedade infelizmente determinou para esse tipo de população que é a população negra.

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