
Costureiro, bordadeiro, artesão e artista plástico são algumas das muitas funções de Gerivaldo Carlos de Oliveira, o Babá Geri, religioso presente no Bembé do Mercado há 28 anos, onde é responsável pela decoração e conforto de quem participa do maior Candomblé de Rua do Mundo, no Largo do Mercado.
Nascido na cidade de Santo Amaro da Purificação, Recôncavo da Bahia, ele é o babakekerê do Ilê Axé Ojú Onirê, terreiro fundado sob a liderança do babalorixá José Raimundo Lima Chaves, conhecido como Pai Pote no Recôncavo Baiano. Apaixonado por esse “pedaço de chão”, como ele carinhosamente chama a cidade em que nasceu, o bacharel em Artes pela Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), conta que se não tivesse nascido como santo-amarense, acredita que não seria feliz como é.
Ao falar de sua caminhada como artista plástico autodidata, o diretor de Relações Institucionais da Associação Beneficente Ilê Axé Ojú Onirê atribui essa sua “chamada para artes” ao Bembé do Mercado e expressa a sua gratidão por fazer parte das celebrações dos 136 anos de existência do festejo, realizando e coordenando diversas celebrações e cerimônias relacionadas às religiões de matriz africana, através do seu próprio Ateliê Orí Mimó.
Em junho 2018, Babá Geri participou do Festival Cultural Brasileiro Lavage de La Madeleine, em Paris. Em novembro de 2019, com o objetivo de promover e fomentar os debates e manifestações culturais no mês da consciência negra, a Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (SecultBA), por meio do Centro de Culturas Populares e Identitárias (CCPI), realizou no Pelourinho, o evento Cultura Negra em Foco. A programação foi composta por exposições, como Mimó – Ancestralidade em Foco. A mostra aconteceu no Foyer Lina Bo Bardi, na sede do CCPI, no Pelourinho.
O acervo consistiu em 16 peças de palha da costa, búzios e argila, trazendo ao mesmo tempo o sentido religioso e artístico. A exposição itinerante propõe o intercâmbio com pessoas de vários locais do mundo para que pudessem refletir sobre a cultura negra no Brasil, vinda de África, fazendo assim com que a beleza da arte sobreponha o preconceito. Babá Geri é inscrito e reconhecido como artesão no PAB/SICAB e conta com o apoio do Ilê Axé Oju Onirê na produção das peças.
Durante a programação do Bembé do Mercado 2025, o artista plástico apresentou a sua segunda exposição chamada “Sabejé Ojú Onirê”, com suas instalações artísticas com entrada gratuita, das 10h às 18hs, no Largo do Mercado.

Confira a entrevista:
Como o senhor analisa as celebrações dos 136 anos do Bembé? Especialmente no que diz respeito a políticas públicas de combate à intolerância religiosa e o fomento do empreendedorismo, já que percebemos aqui no Largo do Mercado, vários artesãos, expositores de seus produtos fruto da agricultura familiar, movimentando a economia da cidade de Santo Amaro com a realização desta edição do Bembé.
Babá Geri: Comentei sobre isso ontem com meu Pai Antonioni, aqui no barracão até. Eu disse a ele da minha gratidão de estar vivendo o Bembé neste período. Esse período que a gente vive agora. Eu penso muito em João de Obá, como se iniciou. Imagine, se hoje é difícil a gente fazer, imagine naquela época. Eu fico imaginando como esse homem foi corajoso em trazer um grupo de pessoas para uma praça pública, numa época em que o racismo imperava. Se hoje impera imagina naquela época.
O Bembé fala do Brasil. O Bembé é o Brasil
São atos de coragem e bravura desse homem, resistência. Eu vou poder viver esse momento, estou aqui todo arrepiado, eu fico muito feliz. Cada detalhe que eu faço, esse mariwô [folha do dendezeiro] que eu estou abrindo, o lacinho que eu coloco, eu fico extremamente feliz e honrado. É o que eu digo sempre sobre o Bembé do Mercado: tem uma importância não só para a comunidade de Santo Amaro. O Bembé fala do Brasil. O Bembé é o Brasil.
Isso que aconteceu e acontece aqui há 136 anos, tem a ver com o Brasil e com as dinâmicas das comunidades negras do Brasil. Então quando o Bembé se afirma politicamente, socialmente, historicamente, culturalmente, o Bembé se consolida e automaticamente fortalece todas essas comunidades do Brasil. Ele rompe as barreiras de Santo Amaro e consegue manter essa relação e representação, então isso é muito importante.
Uma ferramenta extremamente importante para que possamos entender as relações humanas, as perversidades do racismo
O Bembé é uma ferramenta extremamente importante para que possamos entender as relações humanas, as perversidades do racismo. Como negros, para que possamos entender como e de que formas estamos inseridos numa sociedade e em vários outros aspectos. Rompe-se essa barreira do religioso e mostra que essas ações executadas aqui é para além do religioso. Abrem-se os olhos da comunidade negra, do povo negro para outras questões.
O Bembé ampliou a nossa visão para olhar pra Iemanjá, pra Oxum, para o cuidado com estas cerimônias, mas também para lançar o olhar para a política pública. Ele é importante nisso. Uma flecha certeira que atinge esse ponto, atingindo essas comunidades negras para além de Santo Amaro.
O senhor é artista plástico e apresenta a exposição “Sabejé Ojú Onirê” em um momento em que se discute sobre as artes plásticas no Brasil. Como se sente ao expor as suas obras durante os festejos de 136 anos do Bembé do Mercado?
Babá Geri: Me sinto honrado em ter sido escolhido. Foi uma proposta de Pai Pote de trazer minhas obras, minhas peças e expor aqui em praça pública e isso é muito significativo pra mim. Trazer obras de arte e colocar no Largo de Mercado Municipal. Eu, enquanto artista preto, do Recôncavo, da periferia de Santo Amaro, me sinto extremamente feliz por ser uma arte que versa sobre a cultura afro-religiosa, para que as pessoas possam ver, tocar nas peças e entender o que elas são.
O Candomblé é uma religião que tem arte em todos os lugares
Eu proponho ajudar a desmistificar muitos estereótipos e muitas coisas que colocaram e atribuíram ao Candomblé e que não são verdades. Minhas obras vão nesse ponto de ter contato com as pessoas, o contato com as crianças e é por isso mesmo que ela está no Mercado Municipal, em praça pública, para que todos possam ver e fazer essa leitura e sentir como a arte afro-brasileira é bonita. Como os orixás são bonitos. O Candomblé é uma religião que tem arte em todos os lugares. E foi por isso que me encantou.

Eu não trabalhava com arte. Eu trabalhava com artesanato. Eu fazia trabalhos de decorações de festas infantis antes de me iniciar na religião. Quando me iniciei em 2001, eu entrei em contato com essa arte que os orixás usam no dia a dia como, por exemplo, o xaxará, o ibiri e aquilo que me toca de uma maneira linda. O simbolismo da peça me fascina. O ibiri de Nanã, tudo isso me chamou a atenção. Aí eu paro de fazer meu trabalho como decorador de festa infantil e passo a confeccionar estas peças. Daí as pessoas de Terreiro começam a me encomendar. Alguns da minha própria cidade e, posteriormente, de outras cidades da Bahia e do Brasil.
Minha matéria-prima principal é a palha e a nervura do dendezeiro […] que para mim é ouro
Minha matéria-prima principal é a palha e a nervura do dendezeiro, como esta que estou aqui, juntando, que para mim é ouro. Eu coloco pra secar e fico muito satisfeito em trazer minha obra para expor aqui. Me sinto muito grato. Mesmo sem atrações musicais no palco, com shows de artistas nacionais e internacionais, o Bembé consegue se manter ainda atraindo um grande público lindamente.
O público do Bembé vem por conta do Bembé e não por conta das atrações
Isso mostra que algumas manifestações tendem a buscar esses tipos de atrações, pessoas de visibilidade nacional, para atrair público. O Bembé é diferente. O público do Bembé vem por conta do Bembé e não por conta das atrações. É mais um diferencial do Bembé. É um movimento muito bacana, muito legal, muito significativo, potente em todos os sentidos.
Se você pudesse fazer um pedido aos ancestrais do Bembé do Mercado, qual pedido você faria para a cidade de Santo Amaro?
Babá Geri: Eu pediria que eles intercedessem, que olhassem para as comunidades negras da cidade. Para o povo preto da nossa cidade. Para que o povo preto consiga abrir os olhos para adentrar as universidades e ocupar esses espaços como, por exemplo, a UFRB aqui na nossa cidade. Essa é uma luta muito grande nossa, enquanto povo preto, que está lá dentro. Trazer esses jovens para dentro da UFRB, mostrar a importância de estar dentro da academia, de estar pesquisando, de estar estudando, ocupar esse espaço que é nosso.
A gente precisa ocupar esses espaços
As universidades, principalmente a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, que é uma universidade preta, é nossa. A gente precisa ocupar esses espaços. Estamos com essa luta com os alunos de “catequizar”, se é que eu posso dizer assim, para que essas pessoas, esses novos alunos possam vivenciar essas experiências. Tem cursos bacanas como Música, Teatro, etc. Essas comunidades pretas daqui gostam de música, dança, teatro. Eu pediria isso. Que acontecesse um grande despertar cultural e social dessas comunidades pretas de Santo Amaro da Purificação.
Que acontecesse um grande despertar cultural e social dessas comunidades pretas
Como você analisa a chegada do Centro de Referência Bembé, através da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e o CEPAIA? Acha que terão grande impacto como ferramentas para articulação destes jovens junto à UFRB?
Babá Geri: Ave Maria, eu tenho certeza, plena certeza disso! Essa parceria com a UNEB, acredito ser fantástica e vai nos auxiliar nisso também. Trazer jovens, fazer esses trabalhos de expansão de conhecimento nas periferias da cidade e acho que esse Centro de Referência do Bembé será muito bacana pra isso. A UNEB também é uma universidade preta e essa parceria firmada com o Bembé foi muito inteligente e em um momento muito propício. Não só para os povos de Terreiros, mas também para todas as comunidades.
O Bembé acontece firmado no pilar da religião afro-brasileira […] mas ultrapassa essas barreiras também
É algo muito particular do Bembé. O Bembé acontece firmado no pilar da religião afro-brasileira e, por consequência, nos Terreiros de Candomblé de Santo Amaro. Mas logo o Bembé ultrapassa essas barreiras também, rompe isso e vai para comunidades, para lugares, para o gueto, mesmo que nestes locais não exista essa questão afro-religiosa, não existam Terreiros. O Bembé consegue se firmar também. Não é à toa que foi tombado como Patrimônio Material e Imaterial do Brasil.
Tudo tem o seu tempo. Na hora certa irá acontecer
Agora, estamos na luta para sermos reconhecidos como Patrimônio da Humanidade. Com fé em Deus e nos ancestrais, em Xangô e em João de Obá, isso irá acontecer, é só uma questão de tempo. Não chegou o dia ainda. Tudo tem o seu tempo. Na hora certa irá acontecer. Ele está pautado e certificado para isso.
Eu já era artista. Eu sabia que já era artista, mas foi através do Bembé do Mercado que eu consegui realizar a minha primeira exposição em 2020, a pandemia ainda não tinha chegado no Brasil. E parte dessa exposição está ali junto às outras aqui no Largo do Mercado. As outras eu já vendi.
Foi de uma repercussão dentro da cidade por ser a primeira exposição afro-religiosa neste museu
Foi através do Bembé do Mercado que eu consegui entrar num museu. Nunca irei esquecer a minha primeira exposição no Museu do Recolhimento dos Humildes, na cidade de Santo Amaro. Um espaço elitista, branco, de arte sacra europeia. Eu chego nesse espaço e nos altares da igreja eu coloco minhas peças no lugar de santos católicos. Foi de uma repercussão dentro da cidade por ser a primeira exposição afro-religiosa neste museu.

Foi o Bembé que me proporcionou isso, por ter me melhorado como pessoa, como religioso e também como artista. Eu costumo dizer que o Bembé é a minha pérola. Eu coloco numa caixinha de veludo e cuido muito bem com muito carinho e muito cuidado. Uma pérola muito preciosa não só pra mim, mas para todos. Toda pessoa negra, para mulheres, para o público LGBTQIAPN+, para as pessoas que estão nas mazelas. O Bembé é essa pérola cuidada com muito amor.
A cultura não é estável. Ela muda. O que não muda no Bembé é a essência. Isso não pode mudar
Viva o Bembé 2025! Muitas programações, ações vastas que vão para além daqui do Largo do Mercado, um Bembé que se expandiu e rompeu os muros e indo para outros lugares dialogar com outras pessoas, com outros pensamentos, fazendo e refazendo leituras. A cultura é isso não é? Ela é mutável. Ela não é estável. Ela muda. O que não muda no Bembé é a essência. Isso não pode mudar.
Algumas pessoas criticam dizendo que o Bembé não era assim. Está muito bonito. Claro! É o que nós merecemos. A cultura muda. O que não pode mudar no Bembé é essência. E qual é essa essência? O milho não pode mudar a maneira de fazer. Agora a vasilha que eu vou oferecer, eu posso mexer na vasilha. Antigamente, João de Obá arriava num prato de barro, porque era a época. Hoje a gente coloca numa bacia de louça com fios prateados, por desejarmos dar o melhor para os nossos ancestrais.

Agora não podemos mexer na essência do milho que está na bacia. A gente tem que continuar fazendo igual como João de Obá fazia. É justamente aí que está o mistério e é por isso que o Bembé do Mercado se mantém firmado há 136 anos neste lugar. Esse é o segredo do sucesso do maior candomblé de rua do mundo.
Texto: Patrícia Bernardes Sousa é yawo de Oxum, jornalista, redatora, mobilizadora de projetos de Impacto Social em Educação e Cultura Identitária e colaboradora do Portal Umbu.