Como um todo, homens e mulheres culpabilizam a sujeita sobre as violências que sofre. Geralmente, a visão masculina nos culpa por não sabermos escolher o homem para um relacionamento – ou nossa mãe por não ter encontrado um bom pai
“E agora? Quem irá nos proteger?”, após essa pergunta, super-heróis adentram o local e salvam mocinhas atormentadas pela fúria de um vilão.
Ao assistir diversos produtos culturais com esse tipo de cena, fomos treinadas a acreditar que os homens fariam esse papel. Mas diante das inúmeras falhas que os mesmos cometem, mudamos o curso e escolhemos um caminho tanto (ou mais) perigoso quanto esse: acreditar que podemos nos proteger!
A proteção masculina é um dos discursos que prevalece na distinção social dos gêneros. As ferramentas culturais alimentam esse imaginário com histórias, filmes, músicas e outras narrativas que validam no homem o lugar de resguardar a mulher, a figura frágil e sensível. Há o namorado que defende a parceira em uma briga com o cara que deu em cima dela; o pai babão e ciumento que quer proteger a filha de interesseiros e até a aclamação da proteção masculina ao pressionar mães solos a casar de novo.
Essa proteção funciona? Muito porcamente e, em alguns casos, nunca! Com os depoimentos das redes sociais por todo lugar, tivemos acesso a mulheres relatando homens de suas vidas que duvidaram de suas palavras em casos de assédio e abuso, que pediram silêncio caso o abusador fosse da família ou que consideraram “exagero” a exposição da acusação. Além do que, certas figuras masculinas ainda endossam o coro do “O que você estava fazendo?”, deslocando a culpa para a vítima e reajustando os pensamentos dela para focar mais em se “prevenir” do que “punir” nessas situações.
Essa perspectiva não vem apenas da parte dos homens. De fato, a proteção que vem do julgamento de vestimentas, jeitos, personalidades, locais de convivência e lazer faz muito parte da cultura das mulheres na relação com a violência sobre seu corpo. Elas sabem que os homens não se dedicam a nos proteger e que podem até se tornar nossos maiores inimigos. Ajustadas à situação e dominadas pela vulnerabilidade material e emocional, elas escolhem focar na “prevenção”, recalculando a rota de costumes, gestos, falas e emoções para não ter que enfrentar a dor de que homens de seu convívio podem violentar seus corpos.
Lembra aquela senhora de idade que te ensinou que a melhor forma de lidar com o marido abusivo é ficar calada e tentar satisfazê-lo para que ele não seja mais violento? Ela não dizia isso à toa. No tempo dela, não havia possibilidades hábeis de deixar aquele casamento, seja por falta de independência financeira, preocupação com o bem-estar dos filhos, ou a simples questão da reputação, que é uma necessidade humana válida sobre aceitação social e pertencimento a um grupo. Essas eram as circunstâncias dessa mulher que, claro, mudaram muito. Mas os ajustes mentais-culturais levam muito mais tempo para se renovar do que as demandas externas.
Como diz muito bem o quadrinista Andre Dahmer: “Pessoas usando tecnologia do século XXI para emitir opiniões do século XIX”. Por isso, nos deparamos com comentários em redes sociais debochando de mulheres que denunciam homens, questionando seu comportamento ou transformando a situação em questões de “ciúmes e dor de cotovelo”. Como um todo, homens e mulheres culpabilizam a sujeita sobre as violências que sofre. Geralmente, a visão masculina nos culpa por não sabermos escolher o homem para um relacionamento – ou nossa mãe por não ter encontrado um bom pai. Enquanto a visão feminina pesa a culpa pelo excesso de confiança em si mesma e pela permissão em se colocar em situações de risco (como ir a uma festa (!)).
Foi especialmente isso que observei no caso da Mariana Ferrer. Uma jovem vai a uma festa a trabalho (era modelo e influencer e foi convidada para o evento), é drogada e estuprada por um homem que já fez o mesmo com outras mulheres e sempre passou impune. Mariana juntou forças e denunciou publicamente o abusador e as respostas ficaram divididas entre apoios e participação na sua luta, e outros/as duvidando dos detalhes de sua história, usando as culpabilidades que mencionei acima. Pior ainda, algumas mulheres trouxeram o discurso de culpabilização-reflexo. Em vez de atacarem diretamente a Mari, elas alegavam que “se fosse comigo, seria diferente”, soando ter uma capacidade a mais, que a vítima do caso não teria. Culpar a vítima, falando o que você faria de diferente para evitar a situação de violência é a cereja do bolo desse processo de culpabilização.
Eu entendo que a culpa promovida entre as mulheres é uma forma de querer nos proteger. Existe um medo latente e constante de perder mais uma mulher pela violência que os homens não conseguem deixar de praticar e, por isso, há o desejo de “treinarmos” umas às outras, a qualquer custo, sobre como se proteger. Esse mecanismo revela que, de algum forma, as mulheres desistiram de exigir dos homens que mudem seu comportamento porque elas entenderam que eles são incapazes de serem melhores. Pior ainda, o máximo que é feito é tentar educá-los, mas nunca puni-los, em vista de que a ideia prevalecente é que eles não merecem tal punição porque são “imaturos” e precisam ter mais uma chance de se melhorar. Caso não melhorem (de novo), o jeito, para as mulheres, é evitar “atiçar” o comportamento nocivo deles.
Levando tudo isso em conta, eu te pergunto: quem irá nos proteger? Proteger as mulheres das violências dos homens? A nossa união, o conhecimento, a educação e, claramente, a punição. Para esse último, quero evidenciar a eficiência de um protocolo usado na Espanha, em boates e casas noturnas com a parceria da polícia, que garantiu a agilidade e provas concretas para o caso da mulher que foi estuprada pelo jogador brasileiro Daniel Alves. O protocolo No Callem (Não nos calamos, em português) foi criado pela prefeitura de Barcelona desde 2018 e tem o intuito de combater agressões sexuais e violências em lugares de lazer noturno, como boates e bares.
Esse protocolo tem como base cinco princípios fundamentais:
Atenção prioritária à vítima: o estabelecimento deve estar atento a situações de agressão e acompanhar a vítima em casos mais graves – a não ser que ela não queira.
Respeito às decisões da pessoa agredida: todas as informações legais devem ser passadas à vítima que deve ter liberdade para tomar a decisão final.
O foco não deve estar em um processo criminal: é preciso informar que existem outras formas de resolver a situação e focar no processo de recuperação da vítima.
Atitude firme com o agressor: é importante mostrar ao agressor o repúdio do local para esse tipo de comportamento, ainda que se garanta o direito à defesa por parte dele.
Informação rigorosa: a privacidade dos envolvidos precisa ser preservada e deve ser evitado passar informações para fontes não confiáveis.
Por fim, é preciso também questionar os homens que endossam o discurso de nos proteger. Geralmente, eles ditam isso no sentido de que “se alguém encostar em você, eu mato” ou, “pode me contar quem te tratou assim, que eu acabo com a raça dele”. Apesar de transparecer cuidado e proteção aos corpos femininos, essa postura de ataque ao “inimigo” não afeta os ciclos de violência a qual uma sujeita pode ser submetida. O homem que esbraveja para proteger sua filha, será o mesmo que vai encobrir o colega de trabalho que assediou uma mulher no escritório. Ele vai socar a cara de quem deu em cima de sua mulher, mas vai dar risada do amigo que mandou a foto de uma garota da balada bêbada e seminua.
Ou seja, enquanto os homens se preocuparem com as mulheres que lhes rodeiam, sem romper a irmandade sólida entre seus comparsas, a proteção deles será apenas uma fachada para ganhar a simpatia das mulheres, ao mesmo tempo que disputam o lugar de “homem” na competição masculina sobre o domínio do corpo feminino – seja para protegê-lo ou invadi-lo. Romper com os ciclos de violência desde a raiz seria o movimento real e sincero para proteger as mulheres. Se não houver isso, é só mais um discurso para fragilizar a condição feminina e mantê-la submissa e dependente da proteção dos homens. Depois de tudo isso, me responda: “Quem poderá nos defender?”
FONTE:
https://ohoje.com/noticia/cultura/n/119153/t/andre-dahmer-traz-quadrinhos-a-goiania
https://www.instagram.com/p/Cop1vcuPROW/
https://www.instagram.com/p/CkI8t7Ns1lQ/?igshid=MDJmNzVkMjY%3D
https://theintercept.com/2020/11/03/influencer-mariana-ferrer-estupro-culposo/
OPINIÃO
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