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Coordenadora técnica de cursos da educação profissional do SENAI, Carla Melo conta história de força e resiliência

Em entrevista ao Portal Umbu, a geóloga falou sobre sua trajetória profissional, maternidade e ocupação de espaços

Carla Melo é uma mulher negra com uma história inspiradora: formada em Geologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), sua atuação profissional é na coordenação dos cursos da educação profissional técnica nas áreas de Mineração, Construção Civil, Meio Ambiente e Segurança do Trabalho no SENAI CIMATEC.

Mãe de dois filhos, a geóloga, que é filha do pedreiro Buba e da empregada doméstica Raimunda, fez sua trajetória de muitas dores se transformar em força para outras mulheres da instituição que trabalha. 

Atualmente, Carla ministra aulas, coordena o processo de elaboração do plano dos cursos técnicos, programa a provisão dos recursos didáticos e tecnológicos, estimula a organização de eventos científicos culturais, acompanha o desenvolvimento das turmas e, para além disso, ainda é capoeirista e “psicóloga” das suas amigas nas horas vagas. 

Confira na íntegra a entrevista dessa grande mulher para o Portal Umbu: 

Portal Umbu: Quem é Carla Melo? 

“Vou começar naquela resposta clichê: Sou Carla Melo, mulher, mãe, filha de Raimunda, empregada doméstica, e Bumba, que é pedreiro. Atualmente eu sou geóloga, trabalho na coordenação de curso da educação profissional (SENAI), mas minha trajetória foi bem confusa inicialmente.

Sempre me perguntavam ‘o que você queria ser quando crescer’ e eu respondia que queria ser professora, mas o tempo foi passando, cheguei na fase da adolescência e comecei a querer viajar o tempo todo e conhecer o mundo. Foi aí que a dúvida surgiu: seguir o caminho da geologia, que é uma área que iria me dar a possibilidade de conhecer o mundo, ou seguir na área da educação. Prestei vestibular para Geologia e Pedagogia, daí passei na primeira fase dos dois cursos e a dúvida começou a surgir: o que eu faço agora?

Meu pai é pedreiro e tinha o sonho de ser engenheiro civil – ele tem dentro dele esse sonho que fica escondido -, por isso, na mente dele, eu deveria seguir o caminho da engenharia, mas como ele viu que eu fui puxando um pouquinho para a parte de geologia e tinha uma ligação com a Petrobrás – e com certeza é algo mais dele do que meu -, ele me intencionou, me empurrou um pouquinho para a Geologia. 

Eu procuro sempre fortalecer quem é Carla Melo, eu acho que esse é o ponto principal da minha vida: fortalecimento de saber quem Carla Melo é, para que eu não possa deixar que outras pessoas duvidem de quem é Carla Melo.

Então eu passei no concurso da UFBA, cursei, formei e não cheguei a atuar no campo, mas a Geologia me permitiu voltar para a educação, né? É aquela questão de que tudo que tem no nosso caminho, a gente não consegue desviar até chegar o momento. Roda, roda e a gente acaba parando no lugar que é nosso, naquele local que a gente precisa estar.

A Geologia me possibilitou essa oportunidade de estar lá, na área da Educação. Eu comecei como prestadora de serviço ministrando aula nos cursos de qualificação ligados à área de Mineração, então eu rodava, ia para Feira de Santana, Santaluz, capacitando pessoas na área de Mineração. E aí, com o tempo, eu acabei  sendo chamada para passar por um processo seletivo e hoje eu estou como coordenadora de curso da educação profissional, qualificando vários jovens tanto na área de Engenharia Civil, na área de Geologia, quanto na área de Segurança do Trabalho e também na área de Meio Ambiente.” 

Portal Umbu: Em 2022, uma pesquisa divulgada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) revelou que 62,2% das matrículas nesta modalidade são de mulheres e 52,4% de negros (pretos e pardos). Essas estatísticas se confirmam hoje nos cursos que você coordena?

“Eu tenho um público misto. Eu tenho uma turma à tarde, que é um perfil mais jovem e um perfil que eu não vejo muito essa inserção dos negros dentro de sala de aula. É um público um pouquinho mais tímido.

Porém as turmas do público mais maduro, de pessoas que já tem uma idade, já pararam de estudar há um certo tempo, eu vejo realmente essa inserção dentro da sala de aula. Eu vejo profissionais, eu vejo mulheres, eu vejo negros e até pessoas idosas, que já pararam de estudar por um tempo, mas hoje buscam a educação profissional como um pontapé inicial aí para poder melhorar as suas condições de trabalho.”

Portal Umbu: Apesar dos índices altos na educação, um levantamento feito pelo Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea) em 2022, apontou que apenas 19,54% dos profissionais da construção civil são mulheres. Em uma área historicamente composta por maioria masculina, foi difícil ocupar seu espaço como mulher negra?

“Eu acredito que o que acabou me ajudando nesse processo é ter gestoras mulheres. Elas não são negras, mas são mulheres dentro de um perfil de gestão. Eu passei por um processo seletivo no qual a minha diretora  da unidade e a minha coordenadora geral são mulheres, então acredito que isso impulsionou na representatividade. A questão da gente ter a presença feminina num cargo de gestão ajudou para que eu pudesse ter essa oportunidade, hoje, de atuar no cargo de coordenação e de liderança.”

Portal Umbu: Qual a sua percepção sobre a ocupação de pessoas negras na sua área de trabalho? Há muitas ou poucas pessoas negras em posições de coordenação e gestão do seu ponto de vista?

“É muito tímido. Se a gente pegar o percentual a gente tem aí, uns 2% a 3%, é bem pouquinho. Mas o que me deixa feliz é que eu já vejo, hoje mesmo, tem algo que a gente já consegue enxergar, a gente já verifica em algumas funções, em alguns setores, a presença de pessoas negras atuando naquela função de um gestor, de um coordenador. Mesmo assim ainda é muito tímida essa presença a gente precisa muito avançar ainda nesse sentido.”

Portal Umbu: A formação profissional é uma porta de entrada para o mercado de trabalho em posições que exigem mais qualificação. Atuando na estruturação da Educação Profissional e Tecnológica (EPT), quais os principais desafios do seu trabalho?

“O meu desafio, hoje, maior é conseguir lidar com diversos públicos. Como eu falei, eu tenho um público misto. Então eu tenho um público de pessoas mais jovens, de pessoas que têm a facilidade de estar ali para se concentrar e o fato da gente pegar pessoas que já pararam há muito tempo de estudar, que estão tentando voltar para uma sala de aula, para buscar uma qualificação. Mas essas pessoas têm suas histórias, né? Elas têm seus percalços, têm os seus medos, seus traumas.

Então acho que o desafio diário é conseguir manter aquelas pessoas no ambiente, mostrar o quanto ela é capaz e o quanto elas conseguem enxergar onde elas desejam, onde elas almejam. Eu vejo que essas pessoas vão buscar, realmente, a educação profissional para buscar um cargo melhor, para buscar um cargo de coordenação dentro do seu trabalho.

O curso técnico mesmo, ele possibilita essa atuação como um gestor, ele pode gerir uma equipe de profissionais, então eles buscam, ao mesmo tempo que eles têm aquela questão das dificuldades do dia a dia, são pessoas que trabalham o dia inteiro e vão para uma sala de aula. Então o desafio de estar ali, motivando. Um professor motivando a equipe para que eles consigam manter aquelas pessoas no ambiente de sala de aula.”

Portal Umbu: Ao longo da sua trajetória, você já teve alguma experiência com a discriminação de gênero ou raça em ambiente profissional? Se sim, como lidou com isso?

“Já tive sim. Lá no SENAI a gente geralmente a gente se apresenta com o nome, então eu cheguei em uma situação da pessoa olhar, me olhar da cabeça aos pés, e falar assim:  ‘Mas você que é Carla Melo?’ Naquele olhar da pessoa e na fala da pessoa, a gente percebe. A menina que trabalha comigo lá até brincou falando ‘mas ela estava esperando uma loira de salto alto, né? Do cabelo todo liso.’ 

As pessoas têm a mania de rotular, de julgar o outro, julgar o cargo também, né? A gente tem aquela maneira de estar rotulando qual o cargo que aquela pessoa exerce, quais são os perfis que têm que atuar naquela posição. Então eu já ouvi diversas vezes: ‘Você que é Carla Melo?’ Mas eu tenho essa facilidade de levar as coisas de uma maneira mais leve e mais suave, então toda vez que eu percebo que tem alguém tentando me desestruturar nesse sentido de discriminar ou de duvidar da minha capacidade eu levo bem na esportiva, eu dou um sorriso e digo: ‘Sim, sou eu Carla Melo, o que que eu posso ajudar?’ Eu brinco, eu levo isso de maneira bem espontânea, bem leve e eu procuro sempre fortalecer quem é Carla Melo, eu acho que esse é o ponto principal da minha vida: fortalecimento de saber quem Carla Melo é, para que eu não possa deixar que outras pessoas duvidem de quem é Carla Melo.

é interessante a gente ter uma pessoa que empodere outras pessoas, a gente continua o ciclo e aí uma vai puxando a outra e ninguém larga a mão de ninguém

Às vezes dá aquele choque, às vezes você para, respira e não sabe o que fazer e é por isso que eu estou tentando trabalhar essa questão de quando não souber o que fazer, eu dou  um sorriso. Você fica sem saber o que fazer, né? Sem saber como dar resposta em algumas situações que você vê que realmente as pessoas estão ali duvidando de quem seria Carla Melo, mas eu tento levar de uma maneira mais leve e suave possível.”

Portal Umbu: O Inep, em 2022, trouxe o comparativo percentual de estudantes matriculados em cursos profissionalizantes em países da União Europeia (>50%) e no Brasil (9,3%). Na sua opinião, quanto a formação profissionalizante pode impactar a vida de mulheres negras? Você percebe algum movimento de ocupação de espaços profissionais em prol desta população?

“Nós estamos engatinhando para isso. Recentemente tivemos um projeto chamado ‘Maria das Construções’, que é justamente a oportunidade que a gente coloca de inserir essas mulheres dentro do papel, dentro da empresa da construção civil, que é uma área que a gente enxerga como área masculina. Esse projeto é uma parceria com a prefeitura, que eles já enxergam essa possibilidade, então volta em mim a sensação de que a gente tentou.

Volta e meia a gente tem cursos só focados para a área das mulheres, pra gente tentar inserir ali, no mercado de trabalho e, por incrível que pareça, quando aparece a seleção, a maioria das mulheres é negra. Não é um um percentual alto, mas já vem acontecendo mesmo e dentro dos cursos, a gente já enxerga presença feminina muito grande. Às vezes a gente tem turma que, por incrível que pareça, tem um percentual maior do perfil feminino, do público feminino, do que o masculino.

não é só inserir, é dar condições para que essa pessoa consiga avançar

E recentemente, tem uma ex-aluna nossa que hoje já ensina dentro da instituição. Então é muito gratificante pra gente conseguir enxergar a transformação de uma mulher, uma mulher negra, que buscou ali a educação profissional. Ela foi pra Engenharia, seguiu lá na área e aí, depois, ela volta para poder ensinar, está ali, qualificando aquelas pessoas, e ela dá aquele feedback: ‘Muito obrigada pela oportunidade’, ‘eu sou grata a você’. Então acho que o que fortalece a nossa profissão é que a gente quer sempre mudar a vida das pessoas. O propósito é mudar a vida de pessoas por meio da educação, mostrando que a gente consegue, a gente está dando esse passo, é bem lento, mas a gente já tem ações voltadas a isso, afinal a gente vê mulheres nesse mercado de trabalho.”

Portal Umbu: Qual a sua perspectiva a respeito da representatividade feminina negra na sua área de trabalho? Na sua opinião, o que pode ser feito para empoderar essa população, fortalecê-la social e profissionalmente e superar adversidades?

“Ai, gente, é maravilhoso, viu? Eu recebo muitos feedbacks mesmo. A gente teve uma feira agora, dos ex-alunos, e encontramos esses alunos,  então a gente tem esse feedback. Recentemente, convidei uma aluna para poder estar ministrando aula lá dentro do curso. É só alegria quando eu levo essa  ex-aluna para dentro de uma sala de aula, para que ela exerça o papel de professor. É interessante ver aquele olhar ali, todo voltado para aquela pessoa e aí você começa a fazer a leitura daquele olhar, que é de representatividade, de se enxergar. ‘Poxa, né, eu tenho hoje uma professora que ela já partiu da educação profissional, seguiu para uma graduação, eu consigo chegar lá também’. Então é interessante a gente ter uma pessoa que empodere outras pessoas, a gente continua o ciclo e aí uma vai puxando a outra e ninguém larga a mão de ninguém.”

Portal Umbu: Quais são as suas expectativas para que a população negra se movimente para ocupar o mercado de trabalho, a produção de conhecimento e a intelectualidade?

“É bem pouquinho ainda, viu? Eu vejo um passo bem lento com relação a isso. Não enxergo ainda um movimento de grande ocupação dentro das universidades, dentro da educação profissional, pegando aí na ideia das condições de vida dessas pessoas. Porque é muito complicado uma pessoa que trabalha, que tem uma jornada de trabalho de oito horas por dia. Aquela pessoa ainda tem condições de estudar, de encarar a jornada de três, quatro horas e, no dia seguinte, aquela pessoa ter que cumprir mais oito horas de jornada dentro do trabalho e mais oito ou 10 horas de trabalho? Então assim, eu acho bem lenta, eu acho que é um movimento ali que a gente precisava olhar para baixo para depois a gente olhar para cima. Às vezes a gente pensa: ‘Eu quero inserir aquelas pessoas todas ali na faculdade, eu quero inseri-las na educação profissional’, mas não é só inserir, é dar condições para que essa pessoa consiga avançar. Não é só ir na inserção, é saber como é o dia daquela pessoa, de qual maneira a gente consegue ajudar aquela pessoa para que a gente consiga manter ela dentro de uma instituição de ensino. Confesso que é o meu desafio diário conseguir manter e fazer com que aquelas pessoas enxerguem as oportunidades que vão mudar a vida delas, mas em contrapartida tem toda uma história daquela pessoa por trás dessa questão.”

Portal Umbu: Além de coordenadora dos cursos de Mineração, Construção Civil, Meio Ambiente e Segurança do Trabalho no Senai/Cimatec, quais são os seus projetos paralelos e pessoais?

“Carla Melo é essa pessoa extrovertida que vocês conhecem: eu sou amiga, sou parceira, nas horas vagas sou ‘terapeuta’ das minhas amigas – busco terapia também -, sou uma mãe doida e apaixonada. Eu tenho aquela ideia de uma maternidade não muito conservadora, então eu busco no máximo estar próxima dos meus filhos, para estar ali brincando, aproveitando o máximo, pois eu tento hoje viver o presente, estar fazendo coisas que me alegram, coisas que me conectam à minha realidade.

Penso aí, como projeto de vida, seguir na área da Psicologia. É algo que eu venho pensando muito em fazer, um curso de extensão para essa área de terapia que eu descobri que sou boa nesse sentido. Recebo muitos feedbacks de pessoas que não são amigos, que do nada conversam comigo e perguntam: ‘Você é terapeuta?’. Então acho que é algo que eu quero fazer como um projeto futuro para minha vida. Mas hoje, eu estou buscando melhorar o meu bem estar.

Quando era pequena, eu jogava capoeira e agora estou tentando resgatar isso. É algo que me conecta, que me possibilita ser eu, consigo dançar, consigo cantar, é onde esqueço os meus problemas, então agora Carla Melo também é capoeirista.”

No fim da entrevista, a nossa convidada relembrou momentos marcantes da sua trajetória, e se emocionou ao relatar os momentos mais difíceis e mais lindos da sua vida.

“Além da minha mãe e do meu pai serem a  inspiração da minha vida, meus filhos também são minha inspiração diária. Quando estava para concluir a graduação, eu fiquei grávida de Isabelle, que é a minha filha mais velha e aí eu já estava no final da faculdade, já para entregar o TCC, o projeto final de curso, e concluído disciplinas que, por incrível que pareça, eram as  disciplinas mais difíceis do curso que eu deixei pro final e aí eu acredito que a oportunidade de ser mãe no final da  faculdade foi o que me impulsionou. Quando olhava as entregas de TCC, eu olhava para minha barriga e dizia para mim mesma seguir,  ia para as atividades de campo e eu respirava. Foi um momento difícil.

No dia minha formatura, eu fiz  questão de entrar com minha filha no colo, com meu diploma, para mostrar e até para para lembrar – porque às vezes a gente acha que uma gestação, uma gravidez, o fato de ser mãe,  faz com que a gente pare e, para mim, não foi assim -, para mim, a questão de ser mãe que me impulsionou mais a continuar. E eu fiz questão de entrar com ela no colo, com meu diploma, para mostrar que eu tinha, ao longo daquela jornada, adquirido dois diplomas: que era de ser mãe, que eu estava saindo da Universidade Federal da Bahia com diploma de mãe e com minha filha do colo. E eu não parei, eu continuei, persisti e não desisti.

O meu  segundo filho foi a mesma questão, né? Quando eu tive meu segundo filho eu também passei por um processo de separação e aí a gente pensa que a gente não tem mais chão. Que a gente meio que se apoia naquela figura masculina para que a gente possa seguir, uma presença masculina na nossa vida pra gente seguir. Meu segundo filho me impulsionou a querer sair da situação na qual não me cabia mais, na qual eu poderia viver sendo mãe, naquele momento, sem uma figura masculina ao meu lado, mas que isso não iria mudar a pessoa que eu sou. Então consegui, também por meio da minha segunda gestação, enxergar isso de que, além de ser mãe, eu era mulher, eu conseguia seguir sem estar me apoiando em nenhuma figura masculina, então isso foi muito gratificante para minha vida. Então eles dois, Isabelle e João  também são minhas motivações diárias para  eu não desistir. Por isso que eu busco sempre algo a mais, não só por mim, mas por eles também.”

Foto: Yasmin Cardim

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