
Nascida e criada no bairro da Liberdade, a jornalista e escritora Midiã Noelle lança neste sábado (5), em Salvador, o livro “Comunicação Antirracista: um guia para se comunicar com todas as pessoas, em todos os lugares”. Publicado pela Editora Planeta, a obra, que já teve eventos de lançamento em São Paulo e Brasília, é um guia essencial para quem deseja aprimorar a comunicação e evitar a reprodução de estereótipos e desigualdades.
Graduada pela Unisba (antiga FSBA) e Mestre em Cultura e Sociedade pela UFBA, Midiã Noelle é diretora-geral da COMMBNE. Em sua trajetória, conta com passagens pelo jornal Correio, Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). Foi líder Acelerada pelo programa Marielles do Fundo Baobá por Equidade Racial, Associada de Comunicação e Advocacy para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e integra a Rede de Líderes da Fundação Lemann
A autora também idealizou o site Lista Negra, sobre empreendedorismo negro e integrou iniciativas como o Programa Corra pro Abraço, do governo do estado, e colaborou na elaboração do Plano de Comunicação pela Igualdade Racial do governo federal. Como todas essas vivências a direcionaram à escrita de “Comunicação Antirracista”, Midiã contou na entrevista ao Portal Umbu que você lerá a seguir.
1. Você conta um longo histórico de atuação na temática racial e na defesa de pessoas negras por meio da comunicação, caminho apresentado por seu pai, conforme sua introdução ao livro “Comunicação Antirracista”. De que forma a sua história, da sua família e de pessoas com quem você teve contato ao longo da sua carreira no jornalismo te conduziram à produção dessa obra?
MN: Eu costumo dizer que eu sou fruto, de fato, de uma família extremamente ousada, que é original do bairro da Liberdade, onde eu cresci e toda parte distrital da Liberdade, que entram vários outros bairros também, como IAPI, Caixa d’Água, Sieiro. Então eu sou parte desse bairro, e desses vários territórios, onde eu morei, incluindo a própria Liberdade. E eu gosto dessa palavra, “liberdade”, além de ser essa coisa do território que Milton Santos que fala com a gente, que é onde desemboca tudo, a minha família também, de fato, me traz essa lógica de um legado ancestral, de um legado familiar também.
É importante falar da minha família no meu processo, porque eu tive um pai cinegrafista, uma mãe que também atuava no audiovisual, tios fotógrafos e que trabalhavam também no ramo da tecnologia, da computação, numa época que era muito difícil terem pessoas da comunicação da tecnologia assim ousando viver da sua criatividade, então isso me impulsionou muito esse olhar para arte, para educação, para cultura e sobretudo para comunicação. Então, eles foram importantes para mim, de fato, mas também várias outras pessoas, sobretudo as mulheres negras.

Eu tive muita sorte de todos os espaços de trabalho que eu passei, e nem tudo em jornalismo, ter trabalhado com mulheres negras no meu caminho. Então, jornal Correio, Linda Bezerra, Prodeb, que é Companhia de Processamento de Dados da Bahia, meu primeiro grande estágio com Rachel Quintiliano. Depois encontrei Fernanda Lopes, no Fundo de População da ONU, depois Trícia Calmon e Emanuela Silva no Corra Pro Abraço, que são pessoas também que foram me conduzindo a compreender de que forma a comunicação impactava a vida de pessoas, nesse vai e vem de experiências profissionais na comunicação, nas diversas áreas de de movimento social, jornalismo diário e governo entendi que não se pode pensar na comunicação se não for antirracista.
2. A violência no jornalismo traz, com frequência, a imagem de pessoas negras submetidas a justiçamentos, excessos policiais e outras violações. Contudo, o audiovisual focado em entretenimento também é um poderoso agente quando se fala na construção de estereótipos de pessoas negras, limitação de suas histórias à pauta racial e na perpetuação de estigmas que sempre relacionam a população à miséria e a posições de oprimido na sociedade. Como um olhar descolonizado e voltado ao fortalecimento do antirracismo pode contribuir para a desconstrução dessas ferramentas?
Quando a gente tem uma compreensão de que o racismo, a violência racial, impactam a vida das pessoas, fazemos uma autorreflexão de que é a partir do reconhecimento da humanidade dessas pessoas que nós, pessoas negras, que durante quase 400 anos fomos submetidas a um processo de objetificação, de deslegitimação, de violência, de coisificação, podemos entender no processo da história quem fomos de fato. Isso não nos coloca no lugar de vitimização, mas nos coloca no lugar de pessoas que sobreviveram a um processo de sequestro, tráfico, assassinato e morte, mas que nossa vida não se resume e não é baseada nisso. Porque antes era esse processo de escravização, os processos civilizatórios foram pensados e construídos a partir da perspectiva de pessoas negras.
A lógica do ódio impactou tanto a gente que ela não pode ser uma verdade
A gente tem outras histórias, autores como a própria Bárbara Carine, que traz para a gente a história negra das coisas. Ela traz essa perspectiva afrocentrada para a construção da perspectiva histórica do mundo. A gente teve cientistas, médicos, a gente faz a brincadeira com reis e rainhas: “Ah, se todo mundo era herdeiro de reis e rainhas, e as outras pessoas que não eram herdeiras? Todo mundo era filho de rei e rainha?”. Não, porém sim. Porque no Brasil, sobretudo, nesse processo do tráfico transatlântico, todas as pessoas que sobreviveram a esse processo de violência, essas pessoas de verdade não são nem reis e rainhas, essas pessoas são deuses. Essas pessoas são, de fato, de uma força tão grande e a gente tem que honrar tanto essa ancestralidade que sobreviveu e chegou até aqui, seja na condição que for, pessoa escravizada ou não, porque as dinâmicas de violência eram tão grandes, que até forçava que pessoas que também sofreram as violências, tivessem que se unir aos algozes para poder não morrer. A lógica do ódio impactou tanto a gente que ela não pode ser uma verdade. Então, isso vai e acaba respondendo também às nossas práticas cotidianas de trabalho.
Se a gente conseguir compreender que as pessoas negras, o lugar delas não é um lugar de de violência e de estigmatização, entende que a construção das narrativas, a construção da imagem, a construção das nossas histórias de vidas podem ser baseadas em outras histórias que não nos colocam nesse lugar de invisibilização, porque gente preta é muito foda. Gente preta tem um histórico de luta muito forte. Se as pessoas não nos estigmatizarem, o caminho vai ser sempre de prosperidade. Então, eu gosto muito dessa lógica de que, a partir do olhar descortinado, a partir do entendimento de que falar sobre população negra é falar também sobre trajetórias de sobrevivência, de força e respeito à memória do povo negro, indígena e brasileiro.

3. Em “Comunicação Antirracista”, você aponta que, além da comunicação, a filosofia da linguagem também abriga “um dos meios mais eficazes de ser compreendido”. Qual a importância de se atentar ao próprio discurso e como analisar o próprio vocabulário pode ser uma estratégia que gere mudanças positivas reais onde se está inserido?
A gente não pode naturalizar a partir do nosso discurso, da nossa linguagem, da forma da gente falar, o processo de estigmatização da população negra. ‘Palavras’, por exemplo, é o que é mais elementar, quando a gente fala de comunicação antirracista, é o mais fácil, mais palpável, mais tangível para as pessoas, mais óbvio também.
Por exemplo, quando a gente fala em ‘inveja branca’, inveja é inveja. Por que é que a gente tem que colocar inveja enquanto branca para poder ser atenuada a lógica da inveja? Aí vem, por exemplo, para a lista negra. Por que é que a ‘lista negra’ tem que ser negativa? Porque ela é negra, então, é uma lista ruim, uma lista negativa. A inveja é inveja, ela é ruim também. É diferente, por exemplo, a ‘lista negra’ de ‘buraco negro’. O buraco negro é preto, é um buraco escuro na sua concepção do que existe. Mas por que é uma lista negativa, na construção do sentido da linguagem, ela tem que ser negra? São coisas distintas. Isso vem no dia a dia também. Claro que existem formas: a gente tem o Gabriel Nascimento, que fala de racismo linguístico, a gente tem Marcos Bagno, que tem um livro sobre preconceito linguístico. A gente tem que considerar os territórios das narrativas, das formas que as palavras são faladas, mas também tem uma conotação que impacta as pessoas.
Uma conotação que gera uma um processo de discriminação, de colocar as pessoas no lugar de inferiorizado e a gente sabe que nós não somos a minoria. Nós somos a maioria minorizada, como o pensador Richard Santos traz para a gente. A partir da linguagem que a gente reforça aquilo que é positivo e negativo, é a partir da linguagem também que a gente fala ‘nós não somos minoria, nós somos minorizados’, ‘nós não somos descendentes de escravos’. Eu sou descendente de pessoas escravizadas, porque elas não nasceram escravas, elas foram escravizadas. Então, é fundamental a gente entender o quanto a linguagem impacta as vidas das pessoas, o discurso pode ser um catalisador de coisas positivas ou de coisas negativas, é como a gente fala, por exemplo, dos territórios que a gente vive, que são estigmatizados e não pode ser assim.
4. Em entrevista recente ao programa Café PT, você mencionou que a diversidade também está relacionada ao lucro. Nos últimos anos se tornou crescente a representação positiva de pessoas negras, seja na apresentação de programas e telejornais, como o É de Casa ou o Bahia Meio-Dia, seja em telenovelas e filmes como “A Pequena Sereia”, “Volta por Cima” e “Iwájú”. Apesar dos ganhos dessas produções, ainda há quem critique a iniciativa e diga que se trata de “representatividade forçada”, “lacração”, “woke” e similares. Como você avalia essa representação e qual caminho você enxerga para driblar o racismo reacionário?
Eu acho que quem fala que a presença de pessoas negras que tem aumentado, em programas televisivos, é algo que é representatividade forçada, lacração ou similares são pessoas que não entendem a diversidade do Brasil e que, de fato, tem o ódio racial como como algo inerente a elas. Desde quando o ser branco é o ser normal? Desde quando o ser branco tem que ser o padrão? Ou por que tem que ser o padrão? Desde quando, a gente sabe que no Brasil, pelo menos, é sempre.

A gente se coloca num lugar de inferioridade tão grande que, às vezes, enquanto população em sua diversidade, acaba concordando porque a gente não quer também ser equiparado ao que a gente é. Aquela coisa subjetiva de pensar que eu sou parte de uma história que é de dor vai me colocar num lugar de sentir essa dor e às vezes nós, na nossa diversidade enquanto população, também não queremos ser equiparados a essa história de dor, sobretudo pessoas negras que não compreendem, por exemplo, as pautas sociais. Quando falam isso, na verdade, elas estão sendo, muitas vezes, impulsionadas por lógicas conservadoras que colocam elas na construção de um sentido de que o que elas são é algo ruim.
Então, se vem dessas pessoas é isso e se vem de pessoas não negras, e aí eu não estou falando de pessoas indígenas, amarelas, mas de pessoas brancas, é total e puro ródio racial. Porque a gente está ocupando espaços que nos eram negados e, mesmo a gente construindo esses espaços, as pessoas tomavam e reconstruíam, mesmo a ideia, como se fossem deles.
driblar o racismo reacionário é a gente ser o que a gente é
Eu avalio que representação é importante, ocupação é importante e driblar o racismo é ocupar os espaços e é falar de uma forma também consciente que não basta só a gente estar ocupando os espaços sem trazer perspectivas de enfrentamento às violências contra nós enquanto população negra. Eu falo muito que as igrejas católicas tomaram um lugar de abraço às pessoas, às comunidades, porque tem uma lógica de comunidade e teoria de prosperidade e de evolução. E é isso que a gente precisa, falar também de evolução, de respeito, de alegria, de amizade e seguir nos espaços também a partir da linguagem, da comunicação, de como as pessoas são. Acho que há um processo da esquerda no Brasil de não se colocar na linguagem que a população fala de fato.
[Falta] desconstruir essa lógica, uma comunicação elitizada, que não dialoga, por exemplo. Por isso que eu adoro essa nova era da dos influencers, porque eles fazem comunicação a partir, claro, das plataformas digitais que não pertencem a eles, que dá lucro às empresas, mas que eles também se comunicam com todo mundo a partir do que eles são e do que as pessoas são. Então isso é muito incrível. Eu acho que driblar o racismo reacionário é a gente ser o que a gente é, da forma que a gente é, mas claro, respeitando a dignidade humana de pessoas negras, indígenas, pessoas que foram invisibilizadas, sequestradas, assassinadas. Tem que ter um compromisso ancestral com quem chegou antes e sobreviveu.

5. Você volta a Salvador para o lançamento de “Comunicação Antirracista” neste sábado depois de passar por São Paulo e Brasília. Como foi a recepção nessas cidades? De que forma você espera que o livro seja recebido na capital mais negra do país e quais resultados você espera alcançar?
Em Brasília e Salvador, que vai ser agora no sábado, eu me sinto mais em casa, mais tranquila, mais confortável. Em São Paulo, que foi o primeiro, me senti mais ansiosa. Mas ao mesmo tempo tive a presença de minha mãe, que esteve lá comigo e foi um lançamento belíssimo na Megafauna, no Copan, em que as pessoas estiveram e participaram. Eu tive uma das pessoas que me colocaram nesse caminho da comunicação antirracista, que foi a Rachel Quintiliano, que é da Revista Raça. Foi um momento belíssimo. Em Brasília, lotou o teatro de um shopping, então fiquei muito feliz com isso.
Agora eu espero que em Salvador seja estourada, é minha cidade, é o meu lugar. Não é só a capital mais negra do país, não. É o lugar mais negro fora do continente africano! Então, eu espero que esse livro chegue para cada pessoa que possa ler e falar: “Olha, bairro da Liberdade!”, “ela é do bairro da Liberdade!”, “ela é de Salvador e que coisa linda os caminhos que ela traçou e como a família dela impactou”.
Naqueles oito capítulos que eu escrevi no livro, que vai desde a comunicação como legado familiar até como a representatividade importa, passa por falar sobre como todo mundo tem lugar de fala. Tem um capítulo que eu gosto, que é o “Que show da Xuxa é esse”, sobre construção de imaginários. Também fala sobre como as pessoas podem e devem, dentro das suas vidas, independente de serem comunicadoras profissionais ou não, exercerem uma comunicação antirracista. Então, eu quero que esse livro alcance o Brasil todo. Alcance pessoas de todas as idades, sobretudo adolescentes nesse processo de formação educacional. Alcance estudantes de comunicação em todos espaços de comunicação, técnica, graduação, mestrado, doutorado e que também a gente possa, depois, reverberar para fora. Eu acho que esse é o meu próximo caminho.

Eu tenho lançamento agora em Nova York, dentro do Fórum Permanente de Afrodescendentes, um evento paralelo, organizado pelo projeto SETA. Mas eu quero muito que a gente também possa traduzir e levar para outros lugares essa realidade do trabalho excepcional que o Brasil faz, e que não é feito só por mim, mas por uma série de pessoas que vieram antes de mim e que virão depois e que pensam a pauta da comunicação antirracista no Brasil de forma heroica.
SERVIÇO
Lançamento de “Comunicação Antirracista: um guia para se comunicar com todas as pessoas, em todos os lugares”, de Midiã Noelle
Local: Livraria LDM, shopping Vitória Boulevard, Salvador
Horário: 15h
Amei! A maneira como a entrevista foi conduzida fez com que eu quisesse ler até o final
Muito bom!!! Quero ler