O nome desta coluna, “84 coisas ao mesmo tempo”, é mais ou menos a média de tarefas, demandas, atividades, que devo fazer todos os dias, para mim ou para os outros. A parte interessante é que não fui eu que nomeei, foi uma amiga (involuntariamente, porém de forma genial), que certamente também vive o mesmo “drama” que eu.
Vivemos numa sociedade hiper conectada, viciada em trabalho, que utiliza a tecnologia para encurtar distâncias, mas a “sobra” deste espaço encurtado é redirecionada para a execução de mais tarefas, geralmente para o nosso emprego. Trabalho já há alguns anos de forma remota e dou graças a Deus por não pegar o trânsito de uma hora para ir, uma hora para voltar, que marca as relações de trabalho tradicionais na modalidade presencial. Entretanto, essas duas horas de “gordura” e muitas outras, são utilizadas para… trabalhar. Almoço? Muitas vezes em 15 minutos, e fazendo coisas pelo celular. Encurtamos o espaço para alongar o tempo servindo a Mamon [1] e, pior, enriquecendo os outros, uma vez que continuamos no lado bem mais fraco dessa mais valia [2].
Ah… o celular! Estes pequenos dispositivos com software e hardware que rivalizam com um computador potente e que funcionam como estações móveis de… trabalho! Para mim que labuto essencialmente com comunicação para os meios digitais, ou para todas as pessoas cujo Whatsapp se tornou uma grande sala de reunião, ou um grande gerenciador de tarefas (ou de bagunças), o celular é mais uma corrente sutil que não deixa a gente sair plenamente do nossos afazeres laborais.
Seja qual for essa corrente sutil que nos prende às demandas do capitalismo selvagem, cabe a nós a reflexão do que é necessário e do que é supérfluo. É possível estar em menos grupos de trabalho? É possível organizar o trabalho de modo a não precisar estendê-lo para fora do escritório e das oito horas diárias, por meio do celular? Será que não procrastinamos no tempo regulamentar, ou não pegamos mais carga do que podermos dar conta, porque sabemos que “qualquer coisa fala no zap”? (Eu mesma ACABEI de falar com o meu editor enquanto escrevia esse texto, antes das 7h da manhã. Cartão amarelo!). Se respondemos “não” para essas três perguntas, acrescento outra: será que diante uma dinâmica de trabalho que, hoje, ultrapassa oito horas diárias para a maioria das pessoas, estamos vivendo numa sociedade saudável?
Infelizmente, não posso me dar ao luxo de me manter desconectada muito tempo, pela própria natureza do trabalho que eu escolhi. Mas tenho que ter a consciência de que sim: eu escolhi. Não posso me eximir da carga de responsabilidade que é alimentar e ser alimentada por essa rede, cuja engrenagem e a consumidora sou eu.
Todavia, mesmo quem não trabalha com comunicação escolhe alimentar todos os dias este sistema. Por trás da maioria do entretenimento da sociedade hiper conectada, existem muitos oompa loompas [3] trabalhando sem descanso para fazer funcionar esta fantástica fábrica das redes sociais. Com isso, não quero dizer que devemos todos abandonar este modo de vida que levamos e viver como nossos pais, ou nos tornarmos haribow [4] morando no mato sem internet (inclusive, eu odiaria). Também não quero dizer que o fato de termos essa conscientização transforma em fios de ouro as correntes que nos prendem.
Não. Apesar de nossas escolhas serem, a maioria das vezes, conscientes, não é como se nós, força de trabalho, tenhamos plena igualdade de decidir sobre nossos destinos e dinâmica laborais. O peso dessa barganha é quase sempre do empregador ou da nossa necessidade de dinheiro, e damos nossos jeitos aqui e ali para nos adaptar, afinal “a esperteza é a coragem do pobre” como diz lá no Auto da Compadecida [5].
Mas eu tenho esperança e emprego esforços para colocar limites em mim mesma e em outras pessoas, me organizando melhor, tentando jogar a partida dentro dos 90 minutos sem precisar de prorrogação, e dizendo alguns “nãos” bem colocados, aqui e ali, para resgatar de volta aquele recurso que hoje é o mais valioso para o mercado de trabalho: o tempo.
[1] Mamon é o deus do dinheiro, das posses e de tudo o que é material. Ele é classificado com “ruim”, viu? Não reze pra ele não!
[2] “Mais valia” é a “diferença entre o valor final da mercadoria produzida e a soma do valor dos meios de produção e do valor do trabalho que é a base do lucro no sistema capitalista” (wikipédia). Alguém ainda lembra do bom velhinho Karl Marx? Aparentemente, ele está super atual!
[3] Oompa Loompas: atenção jovens! Assistam o filme “A Fantástica Fábrica de Chocolate”, preferencialmente a versão mais antiga.
[4] Haribow, palavra que deve ter muitas grafias, pois ela faz parte do vocabulário falado, não escrito, das pessoas 30+ como eu que moram em Salvador. Acho que hoje equivale a um hispter.
[5] O Auto da Compadecida: pelo amor de Deus, se você não conhece (filme, série, peça de teatro), isso realmente é um problema!
Dizer NÃO é necessário. Muito embora, sejamos alimentados diariamente de in formações que nos faz pensar que se não conseguimos as 84 coisas ao mesmo tempo, estamos fazendo algo errado. Só que NÃO! Aquela coisa que Neruda falou “você é livre para fazer suas escolhas, mas é prisioneiro das consequências” é bem sério (rs).
Exatamente, Oberdã! É a ilusão do controle que queremos ter.
Pertinente e pontual, concordo plenamente com essa reflexão necessária e atual.