Uma homenagem a Eliete Paraguassu e às mulheres que fazem de Salvador um território de força, luta e continuidade ancestral

Em pleno século XXI, quando o mundo ainda se curva à lógica do poder patriarcal e colonial, é em Salvador que pulsa uma outra narrativa. Uma história costurada por mãos femininas, negras, calejadas e sagradas. Uma cidade moldada por quem, historicamente, foi encarregada de parir a vida e sustentar a cultura, mesmo diante do abandono. Salvador é, por excelência, a Cidade das Mulheres.
Essa expressão, que hoje ganha ressignificações políticas e poéticas, foi cunhada pela antropóloga Ruth Landes na década de 1930, ao testemunhar o protagonismo das mulheres negras nos terreiros de candomblé. Landes viu, naquela Salvador ancestral, uma força rara: as mulheres como líderes espirituais, guardiãs do território e fiadoras da comunidade. Um matriarcado simbólico, mas concreto, onde o útero não era apenas biológico, mas um centro de gravidade social.
Essa força não ficou no passado. Ela ecoa — e se reinventa — no presente. Hoje, uma de suas expressões mais emblemáticas atende pelo nome de Eliete Paraguassu, mulher negra, marisqueira e filha do quilombo da Ilha de Maré. Ela carrega nas costas a memória de tantas outras mulheres que resistiram em silêncio. E, com coragem, rompeu esse silêncio ao ocupar uma cadeira no parlamento municipal de Salvador. Sua voz é a voz da maré. E a maré, como se sabe, quando decide subir, ninguém segura.

Mas Eliete não está só em sua travessia. Carrega consigo os ataques e tentativas de silenciamento que tantas mulheres enfrentam quando ousam sair do lugar que lhes foi imposto. Entre essas ofensivas, uma prática antiga e covarde: plantar denúncias e factoides mentirosos, muitas vezes utilizando pessoas das próprias comunidades, cooptadas para espalhar suspeitas e narrativas falsas sobre sua conduta. É uma arma que busca não apenas manchar sua imagem, mas desestabilizar sua força política e afetiva. Suas palavras incomodam, seus gestos desafiam, sua existência reordena. E isso irrita. Irrita os algozes da ordem colonial, da política branca, masculina, elitista — os que não suportam ver uma mulher negra pescadora sendo também legisladora.
Ao mesmo tempo, sua presença inspira. A Cidade das Mulheres se firma cada vez mais como um território onde o pensamento e o trabalho exigem inserção plena de gênero. Mulheres que constroem, planejam, educam, lideram — não só nos bastidores, mas nos palcos principais. É um movimento de dentro pra fora, de baixo pra cima, da maré para a câmara.
Mas é justamente nos espaços mais estratégicos — a administração pública, o pensamento acadêmico, a formulação de políticas, a educação — que essa presença feminina e negra desperta as reações mais violentas. Ameaças que se disfarçam de “processos legais” ou “disputas eleitorais”, mas que, na prática, são ofensivas para minar conquistas históricas como as políticas de cotas. Liminares e embargos, muitas vezes patrocinados por candidaturas brancas e sustentados por uma Justiça que ainda carrega o peso da sua formação colonial, atuam como cercas invisíveis para proteger privilégios. Essa é a guerra silenciosa que se trava longe dos holofotes, mas que define quem pode ou não permanecer nesses lugares de decisão.

E se essa maré há de mudar o mundo, cabe aos homens — todos, mas especialmente os homens negros — reverem seus lugares. Encontrar, na própria ancestralidade, na memória dos quilombos, nos ensinamentos dos terreiros, motivos cruciais para baixar a voz e as mãos diante dessa realeza que tantas vezes sustenta, em silêncio, os lares, os filhos e até os próprios companheiros. Não há revolução possível sem escuta. E não há escuta sem humildade.
A metáfora do útero sagrado, nesse contexto, se amplia. Ele não apenas gesta corpos, mas também sonhos, lutas, identidades. É um útero coletivo, que se retroalimenta a cada geração. As meninas que crescem hoje, nas periferias e nas ilhas da Baía de Todos-os-Santos, já podem mirar exemplos vivos de liderança, pertencimento e potência. Isso não é pouco. Isso é revolução.
Mas essa revolução ainda convive com uma ferida aberta: o feminicídio. Matar mulheres nunca foi novidade neste país. A diferença é que agora denunciamos, nomeamos, enfrentamos. Ainda assim, o corpo feminino — especialmente o corpo negro e periférico — segue sendo alvo. Um corpo visto como disponível, descartável, silenciável. Extirpar o feminicídio, portanto, não é uma tarefa apenas jurídica ou policial: é um desafio civilizatório.

Eliete Paraguassu é farol nesse caminho. Sua presença onde antes não se admitia a presença das suas — no parlamento, na política, na fala pública — é, ao mesmo tempo, denúncia e profecia. Denúncia da exclusão, da violência e do racismo institucional. Profecia de um tempo em que a cidade se reconhece no rosto das suas mulheres.
Outras vieram antes, abrindo picadas nesse terreno hostil, mas cada nova presença é um marco que desloca fronteiras. A cidade é delas. Sempre foi. Mas agora, elas também têm o microfone, o voto e a palavra.
E isso muda tudo.
“Se ao menos o medo me fizesse recuar, pelo contrário, avanço mais e mais na mesma proporção desse medo. É como se o medo fosse uma coragem ao contrário.”
— Conceição Evaristo, Olhos d’Água