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Portal UMBU

Chefiando mais da metade dos lares brasileiros, mães ainda precisam driblar desafios econômicos e de gênero

Estatísticas revelam que 72,4% das mulheres na maternidade solo não contam com rede de apoio. Negras são as maiores impactadas 

Foto: Reprodução/Freepik

A proximidade do ‘Dia das Mães’, costumeiramente, evoca o último verso de ‘Ser Mãe’, obra do poeta maranhense do século XX, Coelho Neto, que diz: “Ser mãe é padecer no paraíso”. A ideia por si só ecoa no ideal coletivo de que o sofrimento feminino na maternidade precede o sentimento de realização, contudo a realidade leva à conclusão de que o sofrimento de quem ocupa essa função, tende a ser prolongado pelas implicações de construções sociais.

A edição de 2024 do reality show da TV Globo, Big Brother Brasil (BBB), levou para a casa dos espectadores o debate sobre a exaustão de mães em sua jornada de trabalho no cuidar de suas crianças. A participante Fernanda Bande, em diálogo com a colega de confinamento Giovanna Pitel, declarou: “Às vezes, quando está dando tudo errado, tem dias que você quer matar os seus filhos e quer ser presa. Tem dias que você olha aquelas crianças e fala que, se morasse num prédio, jogava pela janela. […] Você não aguenta, você surta e quer morrer”.

A confeiteira é mãe solo de duas crianças e teve a fala condenada por parte da audiência que acompanhou o programa, mas foi compreendida por quem disse entender de “onde vinha a fala” de Fernanda. Quem fez a defesa da competidora, lembrou que um dos filhos de Bande está no espectro autista e que a maternidade solo traz consigo exaustão mental e física, levando a pessoa ao limite do bem estar mental.

Foto: Reprodução/TV Globo

À época, a equipe que gerenciava as redes sociais da participante também a defendeu e publicou:

Deve ser muito difícil para interpretação de alguns entender a hipérbole de uma mãe exausta. Fernanda é mãe atípica solo e nós sabemos que muitas falas dela são sobre frustrações que a mesma enfrenta e que ela ressalta, como quando se abriu dizendo que não é uma pessoa feliz”.

O que é designado como “maternidade solo” é um conceito abarcado pelo modelo monoparental de família, no qual apenas um dos genitores é responsável pela criação dos menores. Em maio do ano passado, o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV)  publicou o resultado de uma pesquisa sobre maternidade solo no país. São mais de 11 milhões de mães criando os filhos sozinhas no Brasil, ou seja, sem o apoio de uma pessoa parceira, via de regra, uma figura paterna para a criança. A mesma pesquisa revelou que, entre 2012 e 2022, houve crescimento de 1,7 milhão de mulheres nesta estatística, da qual 90% são negras (pretas e pardas).

Observando pela ótica da sexualidade, é possível compreender que a maior parte desse índice corresponde a mulheres que estiveram em relacionamentos heterossexuais, ou seja, com alguém do gênero oposto. A análise ainda evidencia um outro problema: o abandono paterno. Somente entre janeiro e julho de 2023, 7.659 crianças foram registradas sem o nome do pai na Bahia, segundo dados da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais – Arpen. Em 2022, foram 11.971 pais ausentes no estado. pesquisas tendem a utilizar perfis de relacionamentos heterossexuais como , o que é justificável

O levantamento da FGV também apontou que 72,4% dessas mães não contam com rede de apoio, ou seja, além de não terem ajuda do genitor, os cuidados com os filhos não são compartilhados com familiares, amigos ou terceiros. Já o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) publicou, em 6 de março de 2023, um boletim especial que, dos 75 milhões de lares do país, 50,8% tinham liderança feminina, o correspondente a 38,1 milhões de famílias. As mulheres negras, mais uma vez, corresponderam à maioria do índice, com  21,5 milhões de lares (56,5%) e as não negras, 16,6 milhões (43,5%), no 3º trimestre de 2022.

A responsabilidade social da mãe atravessa, então, além das esferas psicológica e emocional, o campo sócio-econômico que é indispensável para a formação do indivíduo na sociedade que, tradicionalmente, impõe às mulheres o papel de cuidadoras, independente da constituição familiar destas. À exemplo disto, a redatora, escritora e pesquisadora Carla Fontoura, 41, compartilhou sua experiência como mãe de um menino de 9 anos, durante e depois do casamento.

“Eu me considero mãe solo porque eu estou sempre exposta, no sentido de que eu não tenho uma rede de apoio fixa, eu estou o tempo todo vulnerável financeiramente, fisicamente e emocionalmente. Então não tem outro adulto funcional que esteja aqui me dando suporte. Como as demandas de gênero são entranhadas na nossa cultura, no nosso modo de viver e tudo mais, muitas vezes elas performam com uma ideia de amor, de carinho, mas na verdade você está articulado numa trama em que você vai sempre sair desfavorável.”

Colunista no Portal Umbu e pessoa não-binária branca, Carla comenta os desafios sociais com quais já lidou por conta das questões de gênero que a sociedade impõe na expectativa de que alguns papeis sejam exercidos. Em ‘Carga Mental: Sobre ser o “HD” de alguém’, por exemplo, Fontoura recorda criticamente de momentos em que seu então companheiro recorreu a ela para ter informações simples, como locais em que o filho do casal poderia brincar.

“Eu sempre digo que, muitas vezes, a gente tem sintomas de que está sendo oprimido para entender o que significa estar sendo oprimido. Eu tive muitas crises de ansiedade, de pânico, tive depressão durante o meu casamento e eu não sabia dizer [o que sentia] porque eu não sabia dar nome, eu não entendia o que que estava acontecendo ali”, contou. Carla relatou que só se deu conta, objetivamente, da exaustão que sentia depois do fim do casamento. O entranhamento de gênero está tão ali, que você fica cuidando do filho, cuidando do marido, cuidando da casa, cuidando das demandas financeiras e tudo mais, e não tem energia para olhar para si.

Carla Fontoura e o filho | Foto: Arquivo pessoal

A redatora explica que a percepção de cansaço surgiu ao fazer listas, hábito que a fez notar que a divisão de tarefas era desigual. “Eu comparava e era uma coisa matemática. Só que quando eu chego no conceito de carga mental, eu entendo que a coisa é muito maior do que simplesmente uma divisão de quem lava o prato e quem não lava prato. Eu percebi que o gerenciamento mental da nossa vida como um todo, no casamento, no relacionamento, na parentalidade – porque ele é pai da criança, ele deveria estar cumprindo esse papel -, em todas essas camadas quem estava gerenciando era eu e fez sentido toda aquela exaustão mental que eu vivia”

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) Contínua 2022, elaborada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as mulheres dedicam, em média, 21,3 horas semanais aos afazeres domésticos e cuidados de pessoas, enquanto os homens utilizam 11,7 horas. As mulheres pretas têm o maior índice de realização das tarefas (92,7%), superando as pardas (91,9%) e brancas (90,5%).

“O meu maternar, para eu entender que eu vivia, inclusive, uma maternidade solo dentro do casamento, foi uma coisa [longa]. Em 2023 eu tive mais certeza disso e eu me separei em 2018. […]  A gente tem uma dinâmica de entender a maternidade solo sempre com a mulher que é largada pelo homem, mas se o homem, o pai da criança, ainda está presente em alguma coisa, então ele está fazendo alguma coisa. Mas aí quando você vê a dinâmica da família, você [mãe] é sobrecarregada, sendo que o pai não abre mão dos sonhos dele, da vida dele para estar com o filho, explica.

“No final das contas, o tempo todo você estava ali sozinha tomando decisões. Você trabalha sozinha lidando com o desenvolvimento psíquico emocional de um ser humano que é o seu filho.”

Os desafios da maternidade, no entanto, nem sempre são enfrentados sem apoio. A professora aposentada Lucy Cléa Docilio, 53, por exemplo, contou à reportagem do Portal “Eu constituí uma família, mas no divórcio, infelizmente, o meu ex-marido considerou o processo como um divórcio aos meus filhos também, explicou apontando que o genitor se tornou altamente ausente e não prestou “nenhum tipo de apoio emocional, moral ou financeiro” aos filhos.

“Criar um ser humano é algo muito denso, complicado e quando se é mãe solo, a gente se cobra muito. É como se a gente não pudesse errar, não pudesse falhar naquilo. Eu tenho que tentar ajustar e às vezes você é rígida demais. Talvez isso influencie bastante quando você não tem um apoio porque você, ao mesmo tempo que cria, você se cobra: eu estou aqui, sozinha, criando vocês, então eu preciso ser rígida, eu preciso ser dura.”

Analisando as complexidades da maternidade, Lucy Cléa, que é uma mulher negra, disse que, apesar dos desafios, conseguiu conciliar a família e outras áreas da vida. Criar filhos sozinha não é fácil, é muito difícil, [não só] financeiramente e emocionalmente. Mas eu acho que isso não prejudicou minha vida, eu soube dosar. Claro que tem momentos de altos e baixos, nem tudo é perfeito, nem tudo é um mar de rosas, tem momentos muito difíceis, mas vale a pena. Eu não me arrependo de nada”, declarou.

“Quando uma mulher está à frente de algumas posições, como a de ser mãe, e está sozinha, é como se você não pudesse errar. Então, às vezes, eu acho que pesa um pouco”, explicou, apontando que o amor precisa estar à frente como forma de equilibrar as cobranças próprias da formação do indivíduo.

Lucy Cléa e os filhos | Foto: Arquivo pessoal

A questão de gênero na parentalidade é abordada em um artigo produzido por Carla Fontoura cujo tema é ‘A maternidade solo dentro do casamento’. Os dados analisados apontaram que o ‘local de supervisão doméstica’ é um fator recorrente entre as entrevistadas pela pesquisadora que exemplifica com episódios de performance de incompetência: “ele [o companheiro]  limpa o prato, mas eu preciso avisar que tem que guardar o prato em tal lugar. Então aquela tarefa ainda não é 100% dele, ainda é dela e, de uma certa forma, a criança também”. Ela cita outra situação relatada por participantes do levantamento: “eu peço para ele ficar com a criança para fazer alguma coisa e ele me liga. Ou se ele está em outro cômodo, ele vem com a criança, fala que ela está chorando e pergunta o que fazer”.

“Quando você está na maternidade solo em um casamento, você está cansada [por si só], mas também está cansada de supervisionar o outro adulto da relação”, contou. Fontoura também explicou que a partir do divórcio, surge uma fragilidade de grande impacto: a financeira. “Eu saí do meu casamento sem dinheiro nenhum. Tive que começar do zero, voltei para o mercado de trabalho que eu tinha deixado para cuidar do meu filho. A fragilidade financeira é bem comum porque, normalmente, se a mulher escolheu ter filhos, ela vai ter ou uma regressão da vida profissional, ou gastos com cuidadoras e necessidades da criança. A mulher pega o dinheiro dela e gasta mais com o filho do que com ela.

Hoje com os filhos na maioridade, Lucy Cléa relembrou: “eu tive a oportunidade de trabalhar. Eu tive ajuda da minha mãe e do meu pai para criar meus filhos. Eu sei que alguns momentos foram pesados, mas eu ainda me sinto numa posição de privilégio porque a gente sabe que tem contextos bem mais complicados. Mães que não conseguem [lidar com a maternidade], que às vezes têm que abrir mão de seus filhos, não porque querem, mas por necessidade para que eles tenham uma vida melhor. Então eu ainda sou uma privilegiada nesse país extremamente complicado”.

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Lucy
Lucy
1 ano atrás

Eu estou impactada! Parabéns pela reportagem!

Leticia
Leticia
1 ano atrás

Amei o assunto comentado, precisamos nos unir

Christiany
Christiany
1 ano atrás

Me identifiquei maravilhosamente com Lucy. A cobrança é imensa, muitas vezes a descriminação vem de uma forma camuflada, mas existe! Não falo sobre a ausência de um “homem”, falo da ausência de um genitor, que nem imagina o dano que causa aos filhos… Tenho dois, que até hoje luto para tentar suprir essa lacuna que irresponsavelmente foi aberta para eu poder suprir. Material maravilhosa!!!

Nara
Nara
1 ano atrás

Parabéns a todas as mamães e a essa linda entrevista que fala sobre a realidade de algumas
mães ,que criam seus filhos muitas vezes com dificuldades cotidianas.

Cleide Cruz
Cleide Cruz
1 ano atrás

Excelente matéria !! Parabéns a estas mulheres e força! Sou amiga de Lucy, dividimos casa na época da faculdade, sei da sua luta e tenho orgulho de você, minha amiga❤️

Lúcia Cerqueira
Lúcia Cerqueira
1 ano atrás

Tive uma gravidez não planejada, mas assumi as responsabilidades, infelizmente os homens não tomam para sim essa necessidade de parceria, ainda que não precise morar no mesmo teto.
Passei necessidade financeira, tiveram dias em que escolhia a hora de me alimentar porquê não tinha as refeições em todos os horários (manhã, meio dia e a noite) eu tinha que escolher. Fiquei abaixo do peso e meu filho também.
Emprego é difícil porque já na entrevista aquela pergunta: tem filhos? Qual idade? Quando você sair para trabalhar quem vai ficar com ele? E eu sempre me perguntava se as respostas seriam critérios para eliminação. E realmente eram.
Levei dois anos vivendo de doações, sem meus pais, sem parentes próximos. Época difícil.
O pai de meu filho ainda que morando no mesmo bairro não via a necessidade de participação. E como ensinar um pai a ser pai?
Sobrevivi, hoje meu filho está com 18 anos e outros desafios estão chegando. Ainda estou em fase de aprendizado de como será mãe e não me culpar pelos erros cometidos. Um medo terrível de errar. Uma dúvida se o que estou fazendo está certo. Sempre me.questiono, será que e esse o caminho?

Ana Júlia
Ana Júlia
1 ano atrás

Lucy! Minha professora maravilhosa! Parabéns pela reportagem maravilhosa 😉

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