por Karla Fontoura
Por muitos anos eu fui o HD de alguém. Ser um HD significa disponibilizar espaço na mente para as necessidades do outro, seus compromissos. É ser sua motivação, seu apoio e suporte emocional. Ser HD é aceitar cuidar de um adulto com todas as suas capacidades físicas e cognitivas plenas porque existe uma construção cultural de que metade dos adultos no mundo sabe se cuidar e cuidar dos outros (mulheres) e metade não sabe fazer
isso (homens).
Essa perspectiva é baseada em um construção social de domínio da figura feminina onde – teoricamente – com suas características de fragilidade e dependência, as mulheres seriam suscetíveis a serem protegidas por homens e, como retorno a isto, lhe ofereceriam sua habilidade inata de cuidar no âmbito físico, mental e emocional em seus papéis de mães, esposas, irmãs, filhas, sobrinhas, primas, enteadas, avós e netas.
“Assim, o papel de assistência atribuído à mulher parece ser fruto de uma construção histórica e social em que, desde criança, as meninas são ensinadas a realizar tarefas de cuidado, criando sobre elas a expectativa de que exerçam o papel de cuidadoras quando necessário ao longo de suas vidas.”¹
Eu me casei impelida por esse desejo de cuidar, não porque eu me achasse inferior ou dominada por homens, mas porque considerava expressar meu amor através do cuidado. Além disso, estava envolvida com um homem inteligente, empenhado em suas atividades, carinhoso com amigos e família e tinha a convicção de que não seria pesado oferecer este cuidado a ele.
A relação se construiu desta forma e o tempo revelou que a reciprocidade de cuidado não aconteceria. Foi aí que surgiu a piada do HD. Amigos e conhecidos reconheciam como eu era a pessoa que estava à frente dos projetos do casal, como eu o ajudava a lembrar de seus compromissos, como me sacrificava para que ele vivesse seus sonhos e que, se ele ficasse perdido, bastava perguntar a seu HD ambulante que eu teria as respostas para seus dilemas.
Eu realmente encarei essa discrepância como uma diferença de personalidade. Eu era mais ativa, ele mais avoado. Eu tinha predisposição para novos desafios, ele mais sossegado. Tinha mais pressa, ele preferia que fosse no tempo dele. Por fim, éramos os diferentes que se completavam, afinal, com ele eu estava aprendendo a ser menos impulsiva, certo? Ele estava aprendendo algo comigo? Hum… Não. Ele continuava a figura tranquila e sossegada de sempre.
A maternidade planejada chegou e, desde a gravidez, eu vi meu HD sendo preenchido com mais tarefas e compromissos contínuos. Todo dia uma novidade que eu precisava assimilar sobre como cuidar de mim, de um bebê, da comida, das contas, da casa e… do marido.
Sim, a criança nasceu e eu ainda tinha um marido para cuidar. Passei meu puerpério em um pique avassalador de manter a casa limpa e bem cuidada, com um bebê grudado nas minhas tetas doídas e jantares com mesa posta e comida fresca.
O processo foi se tornando cada vez mais cansativo. A criança se desenvolvia de forma perfeita, o pai seguia a vida tranquilamente e eu não entendia minha própria existência. A mente não funcionava como antes, o HD parecia quebrado e o corpo respondeu a isso com ataques de ansiedade e pânico. Aí, além de todos os compromissos mentais e físicos que carregava diariamente, ainda tinha que descobrir como fazer este HD funcionar de novo, afinal, quando ele perdeu sua função, ninguém veio cuidar de mim – nem o marido.
De fato, o pai da criança ficava atônito porque eu estava assim. Teria motivo para tanto cansaço? Eu não trabalhava, ficava em casa cuidando da criança e do lar e não precisava enfrentar o mundo como ele. E mesmo quando ele voltava do trabalho, se eu pedisse, ajudava a arrumar a casa. Era um homem que dividia as tarefas!
Em uma explosão de dor, raiva, tristeza – e HD saindo fumaça -, eu decido me separar. E ali eu rompo também com tudo o que tinha idealizado sobre ser mulher, esposa e mãe. Tento achar respostas em outros lugares, com outras pessoas, me afasto do discurso espiritualista e apaziguador que dominavam as conversas com meu marido e compreendo a ideia de carga mental, suas causas – a partir da estrutura de domínio do patriarcado – e suas consequências na saúde mental e física de mulheres.
Carga mental é o trabalho invisível, a parte cerebral de planejamento e organização por trás de cada atividade que fazemos.² É uma atividade inevitável, constante e, quando não dividida e acumulada às outras tarefas práticas e ao excesso de funções, extremamente penosa ao ponto da sua sobrecarga causar diagnósticos de esgotamento e de Síndrome de Burnout.
No Brasil ainda não temos dados sobre a diferença de carga mental entre gêneros, mas diante dos resultados das divisões de tarefas podemos ter uma ideia a respeito: de acordo com o IBGE, no recorte de horas de trabalho doméstico e de cuidado com outras pessoas por faixa etária, a média de horas se mantém em torno de 10 por semana para os homens, mas entre as mulheres começa em 15,8 horas dos 16 aos 29 anos, sobe para 18,8 horas dos 30 aos 49 anos e chega a 19,3 horas a partir dos 60 anos.
Já o índice de pessoas do sexo feminino que realizam trabalho doméstico também é maior que o de homens. No Brasil, 77,5% dos homens realizam tarefas domésticas e 89,4% das mulheres fazem o mesmo (entre pessoas a partir dos 14 anos).³
Voltando à minha história, a separação emocional aconteceu, mas a física não. Não havia rede de apoio ou suporte financeiro para isso no momento, logo continuei convivendo com o pai de meu filho e dividindo as tarefas familiares com ele. Mas ainda estando neste cenário, consegui romper, pela primeira vez, o meu lugar de HD e lembro perfeitamente bem deste dia. Ele estava prestes a sair com o filho de bicicleta e me perguntou: “Para onde você leva ele quando sai?” Meu primeiro ímpeto foi recorrer à minha lista mental de lugares que criei para passear e brincar com meu filho.
Foram muitas noites pesquisando na internet por praças legais, espaços de recreação gratuitos, praias limpas, lanchonetes e lojas que oferecessem área infantil, além de várias conversas com outras mães e cuidadoras. Mas eu
parei, pensei e entendi que aquilo era a minha realidade há quase dez anos. Ele fazendo perguntas, eu dando as respostas (essas que nasciam aos custos da minha inteligência, perspicácia, empenho e energia).
Eu respirei fundo e disse: “Não vou te dizer.” Ele me olhou com raiva, mordeu os lábios e insistiu: “O que custa me falar?” E eu respondi: “Custa a minha mente e toda a energia que coloquei para fazer isso pelo meu filho. Já vi milhares de vezes você gastando noites e madrugadas pesquisando uma nova tecnologia para comprar, mas nunca vi você gastar seu tempo ou energia pelo seu filho. Você quer saber? Procure. Não vou mais fazer este papel na sua vida.”
E, a partir daquele dia, eu não fiz mais este papel na vida dele? Não, foi a trancos e barrancos. Eu estava acostumada a assumir esta função e, por diversas vezes, eu deixei escapar as respostas. Por outras, eu estava simplesmente cansada de ver meu filho sofrendo porque ele não soube levar uma muda de roupa ou um lanche adequado. Em outros momentos, a depressão tomou conta de mim e eu simplesmente não funcionava
direito. Mas a luta não parou! Foram quase dois anos de convivência diária pós-separação e mais um ano de convivência a distância, por telefone, resolvendo as coisas da criança e por vezes ainda fazendo o papel de HD.
Um dia eu consegui. Simplesmente percebi que não era mais costume meu agir naquele padrão. As perguntas? Ainda aparecem, muitas e diversas vezes. As respostas? Não mais. E isso se estendeu por várias áreas na minha vida. Rompi ser a cuidadora de outras pessoas. Pedi para ser cuidada por aquelas às quais me dediquei e foi assim que filtrei os relacionamentos desequilibrados que me rodeavam. Quem passava nesse filtro, eram as
pessoas que se dispunham a cuidar de mim assim como cuidei delas. As que ficavam, bem, ali elas continuariam.
Hoje quero refletir essa piada de “ser HD” observando a função deste dispositivo. Usamos ele quando a memória do nosso computador está cheia, sem espaço para acumular mais dados. Da mesma forma, sua capacidade mental tem limites e, se você precisa se denominar o HD de alguém, significa que está ultrapassando eles à custas de uma pessoa que tem toda a capacidade de ser um adulto funcional.
Portanto, observe aqueles em sua volta, especialmente os homens da sua vida: esposos, pais, filhos, sobrinhos. Você é responsável por ensiná-los as pequenas tarefas? Ou a se responsabilizar por suas ações? Ou a cumprir o que lhes cabe? O quanto a sua mente está criando HDs para dar conta do excesso de gerenciamento mental que se acumula na sua vida?
¹FERREIRA, Camila Rafael; ISAAC, Letícia; XIMENES, Vanessa Santiago. Cuidando de idosos: um sujeito de mulher?. Estudos Interdisciplinares em Psicologia, v. 9, n. 1 p. 108-125, 2018.
Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2236-64072018000100007>
²Fonte: Buzzfeed
³Fonte: Jornal Plural