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Bembé do Mercado: um enredo de resistência ancestral

Foto: Patrícia Bernardes

A alvorada de fogos iniciada às 5h da manhã do último dia 10 de maio, em Santo Amaro da Purificação, foram o anúncio de que a celebração de 136 anos do Bembé do Mercado, iniciada no último dia 10, teria contornos ainda mais especiais para contar a história de fé, resistência e luta do Recôncavo Baiano e seu povo.

“Para nós é importante esse momento. É um momento de amor e ancestralidade. Acordar esse horário como os nossos saudosos João de Obá e o nosso pioneiro escravo liberto Antônio Torres, para estarmos aqui no Largo do Mercado, na Praça Municipal de Santo Amaro, é de extrema reverência e importância nestes 136 anos”, contou Pai Pote, babalorixá do Ilê Axé Ojú Onirê.

“Tivemos essa enchente ‘maravilhosa’ que Oxum mandou e Iemanjá mandou. Quem pode mais são as águas e ninguém é mais que as águas. Apesar de nossos irmãos terem sido prejudicados, as águas são importantes pois o chão está frio pra gente pisar. Água é muito boa e foram consultados os búzios das yalorixás e babalorixás mais antigos e todos confirmaram a importância das chuvas no período do Bembé do Mercado”, disse

Pérolas, conchas, jarros de flores, esculturas de Iemanjá e Oxum, as verdadeiras anfitriãs da festa, adornavam cada canto do Largo do Mercado para receber uma programação rica e intensa. Reunindo mais de 70 atrações culturais e religiosas nos mais diversos espaços e equipamentos culturais da cidade de Santo Amaro da Purificação, o Bembé do Mercado 2025 será encerrado neste domingo (18), com a saída do Balaio de Presentes para as orixás, mas já deixa saudades e expectativas para a próxima edição.

Foto: Juliana Carolina

Baianos, turistas, jornalistas, gestores públicos municipais, estaduais  e federais, produtores culturais, representantes de Terreiros da Bahia e  estudantes dos mais diversos cantos do Brasil se fizeram presentes durante toda a agenda dos festejos. Samuel Rabai, 32, mineiro e participante do Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (Enecult), promovido por Ministério da Cultura e Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), na cidade de Santo Amaro, falou da importância de eventos como o Bembé do Mercado.

“É importante demais valorizar as nossas raízes com esses casarões históricos e essas igrejas setecentistas nos deixam com a sensação de estar em casa. São cidades do interior muito interessantes no nosso Brasil”, vibrou o produtor de cultura, mencionando que o evento se apresenta como “um laboratório a céu aberto” para a especialização crítica e cultural.

Já para Raíra, 17, estudante do Centro Estadual de Educação Profissional CEEP) de Santo Amaro da Purificação, o Bembé do Mercado possui uma estrutura bonita e se apresenta como manifestação positiva das tradições culturais baianas.

“Eu acho o Bembé do Mercado muito legal.  Não faço parte dos projetos, mas gosto muito. Não tenho problema nenhum com relação a existir Nossa Senhora da Purificação na tradição católica e existir o Bembé do Mercado. Cada um tem o direito de escolher a sua profissão de fé, as escolhas que faz”, disse a estudante.

Enredo e ancestralidade

Com cortejos, missas, exposições de arte, premiações, homenagens, lançamentos de livros e apresentações de samba de roda, o início do Xirê no Largo do Mercado, na manhã do 13 de maio, foi marcado pelas cores azul e branco da Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis, com a presença da porta-bandeira Selminha Sorriso e do mestre-sala Claudinho, ao lado do babalorixá Pai Pote e demais representantes de Terreiro da cidade de Santo Amaro e da Bahia. Na presença de autoridades de Terreiros, os cânticos aos ancestrais exaltavam as yabás Oxum e Iemanjá e consagravam a Xangô e a Obá, cumieira do Bembé do Mercado, os pedidos de justiça e igualdade religiosa no município.

Foto: Juliana Carolina

“Falar do Bembé do Mercado, nesta data 13 de maio, é marcar o início de nossa luta por cidadania. Com essa data, o Brasil se reconhece como um país escravagista. Sem esse documento, a assinatura da Lei Áurea, talvez a gente não tivesse registro da escravidão, já que, logo após, foi mandado queimar estes documentos. A Lei Áurea é um documento que afirma que o Brasil se constituiu com a mão de obra escrava e de forma escravagista. O Bembé do Mercado celebra, então, esse novo começo já que essa cidadania nossa não foi uma cidadania dada, foi uma cidadania conquistada”, enfatizou o ogã de Ogum do Terreiro Ilê Axé Oxumarê, Denilson.

Considerada uma das mais importantes manifestações de resistência e fé do povo preto no Brasil, a celebração é realizado desde 1889, um ano após a abolição da escravidão no país. O Bembé do Mercado reúne mais de 60 terreiros de matriz africana e promove, em praça pública, uma extensa programação cultural ao longo de cinco dias. O ponto alto da celebração é o xirê, seguido pelo cortejo e pela entrega de presentes às orixás Iemanjá e Oxum, em agradecimento à liberdade conquistada após a assinatura da Lei Áurea.

“É um mix de sentimentos. A minha memória ancestral aflorou. Passou um filme na minha cabeça do quanto nós somos resistentes, quanta resistência nós temos. Agradecendo tanto aos que nos antecederam para que nós estivéssemos aqui. Esse 13 de maio foi uma data apenas reverenciada no papel, já que a liberdade só veio de fato no dia seguinte da nossa comemoração. Sabemos que ainda falta muito para o Brasil ser um país livre, sem racismo e sem a perseguição referente a nós que somos de religião de matrizes africanas. O que eu senti foi uma vibração única diante da ancestralidade”, disse, emocionada, a porta-bandeira, advogada e filha de orixá, Selminha Sorriso, durante as apresentações do Xirê do Bembé do Mercado.

Para a carioca, que além de advogada, é pós-graduada em Psicologia Social e Antropologia e a graduanda em Cultura e História Afro-Brasileira, o sambódromo é um lugar de fala de gente preta, de gente de religião de matriz africana e se relaciona com o Bembé do Mercado por conta da herança histórica preta, da resistência, da luta pela igualdade, contra o racismo, pela liberdade de expressão, do direito de ir e da oportunidade. Ela disse ter consciência e certeza que o carnavalesco da Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis, campeã do Carnaval Carioca 2025, irá retratar a história do Bembé do Mercado de várias formas enfatizando a luta contra a intolerância religiosa, o racismo religioso e pela expansão da beleza da nossa cultura ancestral.

“Estou muito emocionada por representar a Beija-Flor junto com Claudinho, nosso mestre sala. Com toda certeza, sem medo de errar, o Brasil está esperando a Escola de Samba Beija-Flor com toda essa reverência e beleza do Bembé do Mercado. Vai ser um enredo que vai contar muito, ensinar muito, vai trazer informações que o povo brasileiro desconhece e será uma viagem no tempo. Na certeza de agradecer sempre por ser uma luta que continua, já temos muitas vitórias e teremos muito mais. A Beija-Flor vai ser mais uma prova de vitória do Bembé do Mercado”, concluiu.

Foto: Patrícia Bernardes

O Bembé do Mercado é do povo. Para a socióloga e iaquequerê (mãe-pequena) do Ilê Axé Oxumarê,  Sandra Bispo, a festa do Bembé do Mercado 2025 é um momento de transformação, de alegria, de felicidade e de amor. Significa que nós estamos aqui, estamos vivos e que venceremos o mundo. Para ela, o Bembé do Mercado “não morrerá e nem poderá morrer nunca por que a fé persiste junto aos orixás segurando o seu povo”.

Com relação a sua expectativa para os próximos anos do Bembé do Mercado, concorrendo como enredo em 2026, a mãe-pequena disse: “Se formos considerar todas as vertentes e todos os detalhes, nós temos uma expectativa positiva diante da nossa fé. E quem acredita, vence. Vamos partir pra cima, sem medo. O medo não vai nos inibir. Nós temos força através dos orixás e, sem nossos ancestrais, sem honrar as nossas tradições, é que fica difícil. O Bembé do Mercado é cultura, é educação, é vida, é alegria. E eu quero estar lá na Sapucaí torcendo”.

Empreendedorismo e Resistência no Largo do Mercado

Durante a programação do Bembé do Mercado 2025, também foi aberto o espaço para os empreendedores locais no Largo do Mercado  com um  centro de ações voltadas à economia criativa e solidária, com a realização da 3ª Feira Empreendendê, da Feira Artesanato da Bahia e da Feira Fuzuê, funcionando desde a última quinta-feira (15) até este sábado (17), das 10h às 21h.

Para a baiana Luna Mendonça. jornalista de formação, analista de conteúdo, membro e articuladora política do Coletivo Mulheres Negras Resistem, iniciativa que visa descolonizar o olhar predominante da sociedade brasileira em relação aos corpos femininos, o Bembé do Mercado é uma experiência impactante.

Foto: Juliana Carolina

“A ancestralidade chama. Nesse dia que eu costumo dizer que é uma ‘falsa abolição’, acaba refletindo em nossos sentimentos enquanto corpos pretos e refletindo em nossa ancestralidade. Desde essa ‘falsa abolição’ de nossos direitos, o Bembé do Mercado resiste. Eu acho que não existe nada mais ancestral da população negra, das mulheres negras que o Bembé do Mercado. Já passou da hora e eu acredito ser muito importante para a Bahia e para todo o Recôncavo Baiano, a chegada da notícia do Bembé do Mercado ser enredo da Beija-Flor 2026 e sair vitorioso, já que Santo Amaro da Purificação é um celeiro de grandes artistas do mundo como, por exemplo, Caetano Veloso e Maria Bethânia. Pra mim o Bembé já é Patrimônio da Humanidade a muito tempo”, enfatizou a comunicadora, ressaltando que o documento é importante por declarar publicamente as causas de luta e resistência história desse evento anual.

Já para o babalawo cachoeirense Robson do Agôgô, depois de tanta chuva, estar nas celebrações dos 136 anos do  Bembé do Mercado 2025 é uma honra. Para ele, a água chegou pra limpar e lavar, vinda de Iemanjá e de Oxum para fazer uma festa muito bonita, de muita reverência e muito axé dentro da cidade. O babalawo conheceu a festa do Bembé do Mercado a convite de Pai Pote. Para ele, filho de Ogum e Oxalá,  é uma missão ancestral desfiar o mariwô para poder somar na colaboração dos enfeites para os festejos no barracão do maior Candomblé de rua do mundo.

Centro de Referência Bembé do Mercado – Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

Com o objetivo de preservar a cultura afro-brasileira, a UNEB firmou parceria com a Associação Beneficente Bembé do Mercado para criação e implantação do Centro de Referência Bembé do Mercado.

Para Euclides Santos, representante do ponto de vista institucional, faz parte da Universidade do Estado da Bahia, docente no Centro de Estudos dos Povos Afro-Índios-Americanos (CEPAIA) em Salvador, o Bembé do Mercado sinaliza que é possível construir conhecimento diante dos saberes ancestrais.

“Faço parte da Irmandade Siobá, irmandade de ogãs e ojés, que não possui uma veiculação do ponto de vista da igreja católica, mas é uma irmandade fundamentada dentro das bases do Candomblé. Conheço o Bembé do Mercado a partir da minha bisavó, Tutuca e minha avó, Antônia, mulheres negras e que se diziam não ser do Candomblé”, explica Euclides. “A minha infância foi toda no bairro da  Liberdade, na Ladeira do Curuzu, na Rua San Martin, aconteciam muitos encontros da minha avó e da minha bisavó com as amigas delas, correndo nós todos no quintal buscando frutas e brincando com os erês e que hoje eu chamo de Terreiro. Foi nesse espaço religioso que essas duas mulheres me apresentaram o Candomblé. A partir dessas mulheres que eu conheci o Bembé do Mercado, me trazendo por dois momentos a Santo Amaro da Purificação e, logo depois da partida delas, seguimos vindo pra cá”, se emocionou o ogã de Oxum.

O Centro de Referência propõe ser um espaço científico cultural Afro-brasileiro assentado nos princípios cosmológicos e epistemológicos das religiões de matriz africana localizado em Santo Amaro da Purificação. O centro tem como propósitos a preservação da memória e história da população negra, o combate ao racismo e à intolerância religiosa e no fortalecimento da identidade e autoestima da população negra. O espaço está organizado nos seguintes eixos de trabalho: centro memória, centro de pesquisa e documentação, biblioteca, museu, observatório Bembé do Mercado e Núcleo de Formação Científico – Cultural.

Foto: Juliana Carolina

“O Bembé é uma realização para a UNEB. Faz muitos anos que a professora Ana Rita Machado pesquisa o Bembé do Mercado e nós conseguimos honrar a memória do Bembé e ao mesmo tempo a nossa docente. A criação do Centro de Referência é para nós esse trabalho de ancestralidade realizado”, afirmou Dina Maria do Rosário, pró-reitora de Ações Afirmativas da Uneb.

Para a professora, a memória marcante do evento religioso foi na sua infância, quando o seu pai a trouxe ao Bembé do Mercado e ela não sabia que era um xirê público de religião de matriz africana. Ela não entendia exatamente o que era , mas achava tudo muito bonito. “Nós honramos os nossos, tanto os que já passaram por nós, como os de momento presente e os de futuro. O Centro de Referência Bembé do Mercado é isso pra nós: espaço de reverência”, explicou.

Negra Jhô, cabeleireira, aderecista e produtora de cultura na Bahia, também esteve presente durante as celebrações dos 136 anos do Bembé do Mercado e falou sobre sua relação com o evento, que fortalece a conexão com as raízes e com a ancestralidade. “O Bembé do Mercado é transformação, realidade, ancestralidade amor, muita vida e axé. Eu digo que o Bembé é um aquilombamento, é um lugar onde a gente pode se encontrar e encontrar várias gerações, várias etnias, vários terreiros. O Bembé é isso, é união, é amor. Vovó Cici já limpou os caminhos  pra mim e eu vou limpar os caminhos para outras gerações que estão chegando. Mostrar que nós podemos, nós somos fortes. O Bembé do Mercado é um lugar que você sai daqui energizado. Não há outro lugar no mundo que represente tão bem e democraticamente a nossa ancestralidade”, ressaltou a atriz, dançarina e líder religiosa.

O Governo do Estado da Bahia apoia a realização do Bembé do Mercado 2025 por meio da Secretaria de Cultura (SecultBA), Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi), Secretaria de Turismo (Setur) e do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC). A ação é viabilizada via edital João de Obá, com recursos da Política Nacional Aldir Blanc (PNAB).

Texto: Patrícia Bernardes Sousa é yawo de Oxum,  jornalista, redatora, docente superior, mobilizadora de projetos de Impacto Social em Educação e Cultura Identitária e colaboradora do Portal Umbu.

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