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Ateliê Kaiodê e a força do sagrado: empreendedora Ana Cláudia Teixeira resgata a memória ancestral por meio dos bordados

Aos 52 anos, Ana Claudia revela que aprendeu a bordar com sua avó, e afirma que o diferencial do ateliê está na forma como o afeto é tecido em cada etapa do processo 

Foto: Débora Auana

Em uma sala de costura no coração de Salvador, linhas e tecidos não apenas se entrelaçam para formar roupas: contam histórias. Histórias de mulheres negras, de fé e de construção coletiva. No Ateliê Kaiodê, fundado por Ana Cláudia Teixeira do Nascimento, de 52 anos, cada ponto carrega a força dos orixás e uma ancestralidade que resiste ao tempo e ao apagamento.

“Eu sou dofona de Oxóssi, tenho 26 anos de iniciada, pela mão de Mãe e Senhora de Euá, do Iê-Aché Omonê-Oá”, apresenta-se Ana Cláudia. Ao lado da sócia e mãe pequena, Jaciara de Oxum, ela conduz o ateliê com o compromisso de preservar técnicas tradicionais como o bordado de barafunda e a bainha aberta, heranças que ultrapassam a estética e tocam o sagrado.

O nome escolhido para o espaço é um símbolo desse compromisso. Kaiodê significa “o caçador de alegria”, termo associado ao orixá Oxóssi. Mais do que um nome, representa a missão do ateliê: confeccionar peças que carregam beleza, força e identidade.

O ateliê é também um espaço de continuidade ancestral. A identidade de Ana Cláudia e de sua sócia é um eixo estruturante do projeto. A escolha pelos bordados, pelas roupas de axé e pelas práticas coletivas está diretamente ligada a esse enraizamento. “A minha identidade como mulher negra influencia na força de passar alegria para as nossas clientes, buscando a satisfação delas em vestir uma peça exuberante e de qualidade”, afirma.

A história do local começa com um desejo de autonomia, de trilhar um caminho profissional que respeitasse os saberes e os tempos de quem o percorre. Ana Cláudia conta que a ideia surgiu da vontade de trabalhar para si mesma, como dona do próprio negócio. Foi então que se uniu à tia, que também é sua mãe pequena, Jaciara Teixeira, para dar início ao projeto.

Mas esse caminho foi tecido muito antes. Ana Cláudia carrega a herança da avó materna, que costurava e convivia com bordadeiras. Foi dessa convivência com outras mulheres que nasceu seu encantamento pelo fazer manual e a certeza de que era possível transformar pano em símbolo. “Minha avó, em memória, já costurava e tinha contato com mulheres que bordavam. E minha mãe pequena, Jaciara, que é minha sócia, também costura”, lembra.

Ela destaca, com emoção, o momento em que costurou sua primeira peça de barafunda. “Queria registrar o quanto foi potente para mim. Quando costurei pela primeira vez, percebi que, a partir de um pedaço de pano, se transformava um bordado muito lindo”, diz. Para Ana Cláudia, aquele foi um marco,  quando entendeu que seu trabalho era também extensão de algo maior, uma força passada de geração em geração que habita as mãos, o corpo e o pensamento.

Foto: Débora Auana

Entre as técnicas desenvolvidas no ateliê estão a bainha aberta, que consiste na retirada de fios para formar desenhos no tecido e o bordado de barafunda, uma prática ancestral que, além da estética, carrega significados espirituais e comunitários. “A bainha aberta tem como princípio básico a retirada de alguns fios para se fazer desenhos e formas. A partir dessa base se constrói o bordado de barafunda”, explica Ana Cláudia.

A barafunda utiliza pontos tradicionais como o dente de cão, asa de mosca, ponto aju, ponto cerveja, ponto flor de abóbora, roda de quiabo, ponto bolinha, ponto trevo, ponto escadinha, ponto calado, entre muitos outros. Esses nomes, cheios de oralidade e criatividade popular, revelam a riqueza da tradição que Ana Cláudia e Jaciara mantêm viva.

O Ateliê Kaiodê produz saias, camisões e roupas de axé e de ração, sempre sob medida, com base nas encomendas individuais. “O processo começa a partir dos moldes que costuramos. As encomendas seguem as medidas que cada cliente traz. É um trabalho artesanal e feito com muito cuidado”, explica.

Mais do que técnica, o afeto é tecido em cada etapa. Desde a escolha dos materiais, segundo Ana Cláudia, ela e Jaciara colocam sua energia nas peças. “Colocamos nossos orixás através das nossas costuras. Buscamos fazer um trabalho de qualidade para que haja satisfação dos nossos clientes”.

Esse cuidado se traduz em roupas que vestem o corpo, mas também fortalecem o espírito. Ana Cláudia acredita que, com cada peça produzida, está dando continuidade a um legado. “Sinto que estou dando continuidade à nossa ancestralidade, ao que as mais velhas nos deixaram e ao que vamos deixar para quem vem depois. Para que isso não se perca”.

Assim, o Ateliê Kaiodê se consolida como um território de afirmação cultural e espiritual. Um espaço onde a costura, o bordado e a fé se entrelaçam para mostrar que os saberes ancestrais seguem vivos  presentes, pulsantes e transformadores.

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