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Portal UMBU

As pressões do Tempo e a estética afrontosa do jornalismo que explora o luto

Imagem: Reprodução

O Tempo é uma das mais fortes instituições da cultura ocidental. Em um novo ano praticamente nada muda, mas a gente segue na percepção de que às 0h01 do dia 1º de janeiro, em um passe de mágica, tudo se transforma. É simbólico, como tantas outras sensações coletivas, que tratamos como “racionais”. Meu interesse por este assunto de Tempo é por conta do novo ano, óbvio, e porque estou começando a missão de escrever para o Portal Umbu, plataforma cujo nome fala fundo ao meu coração sertanejo. Este fruto nasce de uma árvore que reina de forma absoluta nos sertões com uma energia poderosa. Mas mesmo filiada à ancestralidade afro-sertaneja, não consigo estar totalmente imune à tal da ocidentalização do tempo e dos abusos relacionados a ela. Imaginei que com a chegada de 2025 todos os dissabores individuais e coletivos da minha experiência com 2024 desapareceriam num passe de mágica. Engano meu.  

Imagem: Reprodução

Embora saiba que na Bahia, para valer mesmo, o primeiro dia de 2025 será 5 de março – afinal o Carnaval é o nosso marco zero, nosso Pêndulo de Foucault -, estou às voltas com a preocupação de que 2025 já comece querendo imitar o antecessor que acaba de partir. A porção da minha alma ocidental anda em um trincar de dentes preocupado pois são apenas duas semanas e já temos notícias desanimadoras em números passíveis de alimentar a Lei de Murphy. Vamos a algumas delas: 

Vídeo: Cleidiana Ramos

1) Mark Zuckerberg está de bem com Elon Musk, o que é péssimo para todo o planeta, sem hipérbole. A aproximação do dono da Meta com Donald Trump promete desdobramentos muito ruins para o empenho no combate à mentira generalizada via tecnologias da informação e comunicação. Imperador de uma big tech com cerca de 4 bilhões de súditos, ele anunciou que vai manter critérios no tratamento de conteúdo próximos ao do X, de Musk, ou seja, com porteira aberta para os horrores de violência em rede de todo tipo de gente sem vergonha e ruim até o último átomo de alma sebosa.

O pior é que, no caso brasileiro, o X perdeu fôlego e usuários sem muito choro e vela, mas boicotar Instagram, Whatsapp e Facebook, as empresas do grupo Meta de Zuckerberg, é o mesmo que encontrar um unicórnio para montar e voar pelos céus. Infelizmente estamos entrando em mais um capítulo terrível dessa guerra cibernética de desinformação e adoecimento. Preparem os cintos e separem o Dramin porque vai aparecer gente ainda mais nojenta nesse tal de universo “influencer”. E daqui a um ano teremos eleições, o que piora tudo.    

Arte: Cleidiana Ramos

2) No universo paralelo de gente que se diz artista, mas com conteúdo para os cevados pela “desinteligência” e síndrome de idiotia em massa, não há limites para o horror. Nem bem digerimos o tal do cantor sertanejo metido com coisas pesadas a ponto de ter a Polícia Federal volta e meia no seu encalço se lançando como presidenciável e  lá veio o casal de influencers, gurus religiosos e mais o que a criatividade para tirar dinheiro de incautos ditar.

A dupla resolveu faturar com um aborto natural mesclando o discurso bizarro – acompanhado de imagens capazes de fazer corar filme de quinta categoria trash -, misturando autoajuda e religião. Não bastou,a espetacularização no hospital. O homem filmou o feto, mostrou detalhes e enfiou no story. E Zuckerberg nem tinha anunciado ainda o “liberou” geral. Os comentários são de deixar Mefistófeles rubro de susto e vergonha. Um dizia que o fulano estava apenas “expressando sua dor” e outro que era “parte do plano de Deus” na vida de uma “varoa e varão”, seguindo a nomenclatura que se diz a última novidade ao copiar o Antigo Testamento.

É impressionante como essas pessoas afirmam que o seu Deus é o mesmo que, lá no Livro Sagrado, proibia expressamente a pronúncia do seu nome. Dentre uma parte significativa destes cristãos neo-pós-uploados-modernos, mas apegados ao conteúdo de Antes de Cristo, invocar o nome do Santíssimo é mais comum que anúncios de apostas online que, aliás,  tem até discurso trabalhado em “profecia”. Essa teocracia envolvendo jogatina, coachismo e culto à personalidade de influencers deixa a história do Bezerro de Ouro como algo que Deus precisaria rever. Aquela cena que motivou sua irritação e ordem aos seus anjos vingadores para passar tanta gente na ponta da espada é fichinha diante do que os que dizem segui-lo andam aprontando só no Brasil.

Mas voltando ao senhor que divulgou o vídeo bizarro, o que choca foi a normalização especialmente em sites de notícias. Noticiaram, inclusive em portais conhecidos, como se fosse um registro da celebração do Revéillon do tal casal de milhões. Não houve uma crítica dura. Nem um escárnio. Contaram como se fosse a notícia de um evento do casal sem nem o charme da pilhéria no estilo “Caetano Veloso atravessa a rua no Leblon”.     

Sinceramente não há mesmo muito a esperar do jornalismo brasileiro na esfera do bom senso e da decência, inclusive este é o terceiro ponto de destaque dos meus dissabores já nestes primeiros dias de 2025:  

Imagem: Reprodução

3) Os telejornais baianos, ao que consta, vão manter a estética agressiva, violenta e desrespeitosa em relação à dor alheia. Tem ocorrido uma dedicação visceral para explorar relatos de dor de quem perdeu parentes para a violência ou desastres naturais. Deve ser um novo gênero de notícia inspirada no comportamento de abutres e hienas.  

Há alguns meses eu cheguei a duvidar que estava vendo a exposição, durante cerca de 20 minutos, de uma mãe que havia tido a filha bebê assassinada em seus braços por uma desconhecida. O microfone ávido captava a narrativa de uma voz em choque. A imagem mostrava a mulher com os olhos fixos, sem movimento, enquanto contava a história em ritmo de entonação cansada. O microfone da entrevista não dava descanso na avidez de colher mais e mais detalhes.  

Foto: Reprodução

O ano começou e ainda não houve uma trégua sequer desse tipo de conteúdo. Viraram o tema principal da edição repetido à exaustão. Qual é o tipo de valor agregado a essa narrativa? Os pontos de audiência justificam a mãe que perdeu a filha em situação de feminicídio ou a filha do homem martirizado pelo companheiro contando em detalhes o luto da sua alma dilacerada? 

Foto: Reprodução

Posso estar presa ao antigo, mas ainda considero fundamental responsabilidade social para jornalistas. Público não tem responsabilidade no que consome porque quem estuda teoria, ética, legislação e estética somos nós que assumimos a tarefa de traduzir o mundo com todas as suas complexidades. Jornalista deve ter a dimensão de que fala/escreve para transmissão difusa e que não tem controle de como será recebida pelos públicos tão difusos quanto a circulação destas informações. 

Infelizmente sobraram poucas experiências em jornalismo ávido por traduzir as informações, oferecer análise e até propor soluções.  Os jornalistas curiosos saíram de moda para dar lugar aos “performers”, que usam a atividade apenas como trampolim porque “são”, assim como Luiz XIV achava “ser o Estado”, a própria notícia 

Mas chega de pessimismo, afinal, a cultura ocidental me diz que Ano Novo é Vida Nova. E Fernanda Torres ganhou o Globo de Ouro na categoria de melhor atriz de drama desbancando a nata de estrelíssimas de Hollywood. E melhor: interpretando uma mulher que enfrentou e venceu os degenerados militares que executaram o horror de 1964 a 1985. Mesmo com a anistia no passado vimos recentemente como ensaiaram transgredir de novo e, segundo a PF, escalando novas formas de violência. O inquérito diz que planejaram o assassinato do presidente Lula, do vice Geraldo Alckmin e do ministro do STF, Alexandre de Moraes.    

A vitória de Fernanda Torres, como diz um meme foi  “Absolute Cinema” porque os holofotes internacionais para o  filme ainda Estou Aqui  funcionam como uma  bofetada na cara da gente ruim, inclusive jornalistas, que batem palmas de várias formas para  militares toscos . Está aí para o mundo a história que o Brasil não passou totalmente a limpo: a famigerada Ditadura de 1964 com seus torturadores e assassinos saídos das entranhas do Estado Brasileiro. Tinham tanta certeza de impunidade que violentaram um parlamentar, no caso Rubens Paiva, marido de Eunice Paiva, a personagem vivida por Fernanda Torres.     

É só um prêmio? Não. É mais que isso por tantas e tantas camadas. E como Fernanda Torres disse há pouco tempo: “A vida presta”. Isso me lembra de uma cena de Tudo sobre Minha Mãe, de Almodóvar, quando uma personagem diz pra outra: É um grande dia: Seu filho vai nascer e Videla foi preso na Argentina. Podemos dizer: A denúncia contra os crimes da ditadura cívico-militar continua e tem general, arquiteto de golpes, preso. 

GIF: Cleidiana Ramos

Ei, 2025: ainda tens Tempo para corrigir sua rota e ganhar leveza. 

OPINIÃO

O texto que você terminou de ler apresenta ideias e opiniões da pessoa autora da coluna, que as expressa a partir de sua visão de mundo e da interpretação de fatos e dados. Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal Umbu.

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