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“A sociedade ainda vê as trabalhadoras domésticas como objeto, como móvel da sua casa”, declara Creuza Maria, presidenta de honra da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas

Para falar sobre sua trajetória, Creuza recebeu nossa equipe para uma entrevista na tarde do dia 10 de outubro, na sede do Sindoméstico-BA, em Salvador

Uma história que inspira, é com essa certeza que a reportagem do Portal Umbu chega para fazer a entrevista com a líder sindicalista, Creuza Maria. Para ajudar nas despesas de casa, Creuza começou a trabalhar como empregada doméstica antes de completar 10 anos em Santo Amaro da Purificação. Já em Salvador, continuou trabalhando em casas de famílias e ingressou no movimento de reivindicação pelos direitos da categoria.

Aos 65 anos, Creuza Maria é a atual presidenta de honra da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) e secretária de Formação Sindical e de Estudos do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos da Bahia (Sindoméstico-BA). 

Em entrevista ao repórter estagiário, Jadson Luigi, Creuza Maria fala sobre sua trajetória, os 33 anos do sindoméstico e os desafios das trabalhadoras domésticas no Brasil. Foto: Alisson Santos

Uma das maiores conquistas do Sindoméstico-BA foi a construção do Conjunto Habitacional 27 de abril, uma habitação pública exclusiva para empregadas domésticas. Inaugurado em 2012, o conjunto fica localizado no bairro do Doron, em Salvador. A estrutura conta com quatro prédios e uma creche, atendendo assim a 80 famílias. O Conjunto Habitacional 27 de abril leva esse nome em referência ao Dia Nacional da Empregada Doméstica.

Por essas conquistas e sua trajetória de luta pelos direitos dos trabalhadores domésticos, Creuza Maria recebeu em 2005 a condecoração da Ordem do Mérito do Trabalho no Grau Cavalaria, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ainda em 2005, ela foi indicada para o Prêmio 1.000 Mulheres para o Nobel da Paz.

A líder sindicalista recebeu ainda o Troféu Raça Negra, da Faculdade Zumbi dos Palmares, em São Paulo. Já em 2015, o Senado Federal prestigiou a sindicalista com o diploma Mulher-Cidadã Bertha Lutz. Para falar sobre sua trajetória, Creuza recebeu nossa equipe para uma entrevista na tarde do dia 10 de outubro, na sede do Sindoméstico-BA, em Salvador. Confira:

Portal Umbu: Quem é Creuza Maria Oliveira?

Creuza Maria Oliveira é uma mulher negra, com 65 anos, trabalhadora doméstica aposentada e militante da luta por igualdade contra o racismo e todo tipo de opressão.

Portal Umbu: Hoje, você é presidenta de honra da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) e secretária de Formação Sindical e de Estudos do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos da Bahia (Sindoméstico-BA). Quando e como começa a sua jornada neste lugar de sindicalista?

Essa jornada começa na década de 1980. Eu, como uma trabalhadora doméstica que começou a trabalhar antes dos 10 anos. Eu me tornei uma mulher adulta, sem compreender porque nós, domésticas, não tínhamos os mesmos direitos que as outras trabalhadoras. Foi quando eu ouvi falar que já existia um grupo de domésticas que já estavam começando a se organizar para criar um sindicato, só que, na época, a lei não permitia que tivéssemos um sindicato. Então começamos a se organizar em grupo e depois, em 1986, fundamos a Associação Profissional das Trabalhadoras Domésticas da Bahia e continuamos a luta.

Na Constituição de 1988 conquistamos alguns direitos como salário e 13°, além da possibilidade de nos organizarmos como sindicato. Foi neste momento que criamos o Sindicato, no dia 13 de maio de 1990.

Portal Umbu: Como mulher negra, como você se sente ao enxergar os avanços da categoria ao longo dos anos? Citando como exemplo a PEC das Domésticas, aprovada há 10 anos, considerada um avanço fundamental para a classe, o que você acredita que ainda pode ser aperfeiçoado?

Todos os direitos da classe trabalhadora sempre podem e devem ser aperfeiçoados. Porém, tivemos uma conquista importante que foi a PEC, porque foram muitos anos de luta, lutando para conseguir a PEC 72.

Depois da PEC 72, conquistamos a Lei 150, porque sabemos que os três poderes nos empregam: o Executivo, o Judiciário e o Legislativo. Então, conseguir leis que venham garantir os direitos para a categoria não é fácil porque é uma luta muito desigual. E para nós, como grupo que não tem a mesma organização, não tem a mesma força dos demais sindicatos, reconhecidas há muito tempo, foi um desafio avançar nos direitos, conseguir a PEC que, agora, vai completar 10 anos dessa conquista muito importante.

Apesar de ainda não ser respeitada como deveria, a Lei 150, pois não existe uma fiscalização. Falta uma forma de fazer com que a legislação seja cumprida, então dependemos muito do trabalho de conscientização. Tanto da categoria como da sociedade de modo geral.

A fiscalização é importante, mas também a mudança de mentalidade. A sociedade ainda vê as trabalhadoras domésticas como objeto, como móvel da sua casa. Como na época da escravidão, em que essa trabalhadora não tinha direitos: a estudar, a ter sua moradia, a ter sua família. [A sociedade] ainda tem a visão da Casa Grande e Senzala. Onde aquelas pessoas escravizadas estavam ali próximo da Casa Grande, que a qualquer momento estava servindo ao seu senhor ou à sua senhora, então ainda se vê a trabalhadora doméstica dessa forma.

Aos 65 anos, Creuza Maria é a atual presidenta de honra da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) e secretária de Formação Sindical e de Estudos do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos da Bahia (Sindoméstico-BA). Foto: Alisson Santos.

Portal Umbu: Socialmente e racialmente, você acredita que o perfil das empregadas domésticas mudou muito ao longo dos anos? Como você enxerga esse perfil na Bahia?

Com certeza teve mudança. Estou presidenta de honra da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas, ocupei essa função por quase 12 anos na Federação Nacional e pude acompanhar, de norte a sul, a situação das empregadas domésticas em todas as regiões. É claro que no norte e no nordeste são onde ainda existe muita exploração e desigualdades. Mas avançamos, sim, porque se formos observar a época da minha avó, da minha bisavó e da minha mãe, com certeza muita coisa mudou, inclusive as leis, porque até 1972, não tínhamos direito a nada.

Em 1972, conquistamos o direito à carteira assinada, 20 dias de férias e a contribuição à previdência. Neste ano, completa 50 anos do direito à carteira assinada, aí, depois a luta continuou e fomos conquistando outros direitos. Mas ainda é muito difícil serem respeitados esses direitos.

O perfil da trabalhadora doméstica aqui na Bahia são as mulheres negras, periféricas, com baixa escolaridade. Até que hoje melhorou um pouco a escolaridade das trabalhadoras domésticas. São mulheres, que são mães sozinhas, que acabam tendo que trabalhar para manter a casa, são arrimo de família.

Portal Umbu: Este ano o Sindicato dos Trabalhadores Domésticos da Bahia completa 33 anos de existência. Como este espaço fortalece a defesa dos direitos dos trabalhadores domésticos hoje?

O Sindicato completou 33 anos esse ano. No dia 13 de maio, completou 33 anos e, ao longo desses anos, houve avanços significativos para nossa categoria. O fato de já ter um sindicato, já é um avanço.

Além disso, aqui no sindicato conquistamos muitas coisas importantes, inclusive a visibilidade do trabalho doméstico. Conseguimos políticas públicas na área de moradia. Conquistamos um conjunto habitacional para os trabalhadores domésticos.

O sindicato conquistou cursos de capacitação, que desenvolvemos com a categoria. Não é só o ensino para trabalhadora servir aos patrões e patroas. Mas sim, é uma capacitação para que ela possa melhorar sua força de trabalho, sua mão de obra, mas também a questão social, de raça, classe, seus direitos trabalhistas, Estatuto da Criança e Adolescente, do Idoso, os acidentes do local de trabalho, os assédios morais e sexual que acontecem.

Então o curso de capacitação, discute tudo isso. Ou seja, capacita a trabalhadora doméstica, não só para servir no trabalho, mas também para a sua cidadania no dia a dia.

Portal Umbu: Em entrevista ao grupo A Tarde, você apontou algumas diferenças entre as regiões do país acerca das condições de trabalho de trabalhadoras domésticas. Pode sublinhar quais são as dificuldades vividas por domésticas das regiões norte e nordeste?

As regiões do norte e nordeste são onde existe mais exploração, menos carteira assinada. Aí quando vamos para a região sul, é uma situação melhor, a questão salarial é melhor, tem muito mais trabalhadoras com registro na carteira. Tem uma visão melhor das condições de trabalho dessas trabalhadoras no sul.

Porém, quando você vai para o sudeste e centro-oeste, mesmo o salário sendo melhor que o norte e o nordeste, ainda existe exploração porque existem muitas migrantes que saem da região nordeste para ir para São Paulo e Rio de Janeiro trabalhar lá nesses locais.

Claro que lá também há a exploração, inclusive em São Paulo tem muitas trabalhadoras domésticas vindas de outros países que também vivem situações de exploração. Como é o caso do México, Chile, Paraguai, Uruguai e Argentina. São domésticas que vêm desses países para o Brasil e também são exploradas. A nossa Federação também faz um trabalho com essas mulheres imigrantes que vêm de outros países para trabalhar como domésticas. Nesses casos, a Federação atua nesse contato com os sindicatos dessas regiões ou desses estados para estar acompanhando a situação.

Inclusive, existe também trabalho escravo nessas regiões, mesmo sendo a região sul, tem casos de trabalho escravo como em outras localidades. E onde mais tem acontecido resgate de trabalho escravo é aqui na Bahia. A Bahia é, entre todos os estados, o estado que mais tem casos de trabalho escravo no contexto doméstico.

Portal Umbu: Este ano você recebeu o título de comendadora da Ordem Dois de Julho – Libertadores da Bahia e se tornou a primeira trabalhadora doméstica a receber o título de Doutora Honoris Causa da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Qual a importância, na sua visão, que tais condecorações sejam dadas a uma mulher negra, trabalhadora doméstica e engajada na luta sindical?

Com certeza é muito importante às duas comendas, tanto a Dois de Julho, que é uma data histórica do nosso Estado, onde tem uma luta pela Independência da Bahia. E continuamos lutando não só no Dois de Julho, mas o tempo todo vivemos lutando pela independência do povo brasileiro, da população negra e sabemos que tudo começou aqui na Bahia e com certeza é uma luta importante.

Sobre a questão do título de doutor honoris causa. É a academia reconhecendo os mais de 80 anos de organização sindical das trabalhadoras domésticas no Brasil. A primeira instituição começou na década de 30 por dona Laudelina de Campos Melo, que fundou a primeira associação de trabalhadoras domésticas do país em Santos, São Paulo.

Então, esse título de doutor honoris causa que estou recebendo, enquanto militante da luta das mulheres negras, das trabalhadoras domésticas, é o reconhecimento dessa luta histórica da nossa categoria. Não sou eu, Creuza, mas sim, toda luta que enfrentamos desde a época, que eu sempre digo, desde o período em que fomos traficados e traficadas de África para o Brasil, em péssimas condições, inclusive muitos morrendo nos navios negreiros de forma perversa e cruel.

Esse título é o reconhecimento da academia, da importância do nosso povo, das nossas companheiras domésticas, como tem contribuído para a economia brasileira e mundial com as pesquisas e os dados que a academia tem pesquisado e bebido na fonte da nossa organização. E agora é o reconhecimento disso.

Laudelina de Campos Melo foi uma mulher pioneira na luta pelos direitos dos trabalhadores domésticos. Foto: Reprodução: BBC

Portal Umbu:  Ainda há muito a ser feito pela população negra e por categorias trabalhistas como trabalhadores domésticos. Da sua perspectiva, o que pode ser feito para empoderar esse grupo, fortalecê-lo politicamente e superar dificuldades e entraves sociais?

Os entraves sociais são muitos, mas o que defendemos é que não exista criança e adolescente no trabalho doméstico. Lugar de criança, não é no trabalho doméstico e em nenhum outro trabalho. Lugar de criança é na escola. Todas nós que estamos hoje na liderança dos sindicatos e da Fenatrad que estamos no trabalho doméstico, todas começamos na infância ou na adolescência no trabalho doméstico, tivemos que deixar a escola ou nem fomos à escola. Então lutamos para que nossas crianças e nossos adolescentes não vão trabalhar no emprego doméstico e em nenhum outro e sim estudar.

Outra coisa, é a mudança de mentalidade da sociedade. Precisa mudar esse pensamento de achar que qualquer pessoa pode fazer o trabalho doméstico e que este não merece remuneração digna. E que a trabalhadora doméstica é o objeto da casa do empregador.

Outro ponto é a questão da mentalidade dos nossos juízes, que infelizmente as decisões na justiça do trabalho têm sido sempre vergonhosas e continuam sendo. Porque sabemos quem é que está lá julgando a questão da trabalhadora doméstica, são os patrões que têm uma empregada ou uma trabalhadora lá nas suas casas trabalhando, no seu sítio, no seu apartamento. Então esses juízes, acabam julgando pensando no seu próprio umbigo. Ou seja, julgando desigual, de forma racista, machista, de forma a discriminar essa categoria que é tão importante para essa sociedade.

Aqui, no nosso sindicato, sempre comentamos que se a nossa categoria tivesse consciência da importância da força do seu trabalho e resolver fazer uma greve, a sociedade ia entender e perceber a importância da nossa mão de obra.

Então o sindicato continua lutando por moradia, por creche e por escola em tempo integral Até porque muitas trabalhadoras saem para cuidar dos filhos das outras pessoas enquanto os seus filhos ficam “ao Deus dará”.

ASSISTA A ENTREVISTA COMPLETA ABAIXO:

Fotos: Alisson Santos

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