Primeiramente, deixa eu explicar esse título…
Juntei aqui as palavras poética e perseverar, que escutei repetidas vezes no mês passado! A primeira na entrevista no Ateliê de Ideias, do Melanina Acentuada Festival — Ano 6, pelo YouTube, entrevista realizada por Aldri Anunciação para o ator Clayton Nascimento; e a segunda no solo teatral “MACACOS” de Clayton Nascimento, dita numa cena pelo artista. Essas duas palavras tão distintas tecem, para mim, um encontro muito interessante nesse momento histórico! Uma faz parte do âmbito clássico grego, da literatura e do teatro e a outra é anunciada no ambiente familiar brasileiro, numa casa do subúrbio paulista, proferida em momentos diferentes pelo pai de um futuro artista, convocando uma ação. As duas dialogam sobre arte e teatro.
Bom, Aldri Anunciação, que é ator, diretor, produtor e idealizador do Melanina Acentuada, na entrevista, se referiu muitas vezes à obra cênica de Clayton Nascimento, como sua poética. Desta forma, não posso deixar de elucidar que a palavra Poética, tão conhecida no ambiente teórico literário e teatral, faz menção à obra do filósofo grego Aristóteles. Em seu livro denominado “Poética”, uma das obras mais estudadas de todos os tempos, Aristóteles trata de levantar reflexões teóricas, filosóficas e estéticas sobre a Epopeia e a Tragédia (no primeiro livro) e sobre a Comédia e a Sátira (no segundo livro, que foi perdido). Sua análise de aspectos que envolvem o modo de fazer e refletir sobre a arte teatral e a oratória atravessaram os tempos e se constitui numa base importante de teoria literária, seja para afirmar os cânones tradicionais de vários estilos das artes (a partir do Renascimento); como também referência para ser criticada e/ou contestada à visão das escolas tradicionais artísticas.
Se hoje usamos a palavra poética para se referir a obras escritas e realizadas na contemporaneidade, em pleno século XXI, é porque de certa maneira estamos fazendo menção ao modo, como as dramaturgias da cena desses trabalhos artísticos se apresentam diante de nós expectadores e pesquisadores do fazer teatral. E sem dúvida, muitas vezes, numa criação mais distante e inventiva, do que Aristóteles julgou como o modelo a seguir.
O paulista Clayton Nascimento é ator, diretor e dramaturgo do espetáculo “MACACOS”. O solo teatral tem uma longa trajetória de desenvolvimento e apresentações e, com este trabalho artístico, Clayton recebeu dois dos maiores prêmios nacionais de teatro, como melhor ator: o Prêmio Shell (2023) e o APCA (2023). Clayton conta numa cena, construída com humor, sua trajetória desafiadora e cheia de obstáculos, enquanto homem negro periférico, para se formar e poder trabalhar como artista/ator. Nas várias etapas de sua formação de cursos até chegar à faculdade pública, ele levava a questão para seu pai e sempre obtinha como resposta, diante dos dados percentuais de acessibilidade para estes espaços de formação, que eram muitas vezes destinados para pessoas brancas, a fala: PER. SE. VE. RE, meu filho! E lá ia Clayton estudar e atravessar os ciclos de audições e seleções, obtendo muitas vezes, mesmo com fracassos, o ingresso bem-sucedido à instituição.
O verbo perseverar significa: 1. Ter perseverança, persistir numa empresa, ser constante; permanecer, conservar-se. “Era um homem que perseverava (em seus objetivos)” 2. Predicativo continuar (de alguma forma ou maneira); ficar, permanecer. O momento da cena, que Clayton faz questão de explicar etapa por etapa da sua saga rumo à formação profissional, traz a profunda reflexão do quanto as pessoas negras deste país sofrem para, minimamente, obter dignidade educacional, a fim de servir com seus talentos à sociedade. Fez-me pensar em todas as dificuldades que atravessei ou atravesso, ainda, como artista/atriz/mãe/educadora negra.
O quanto o acesso à educação, formação e ao mercado de trabalho não vem com caminhos abertos e fluidos e que, a cada dia, a comunidade negra se debate entre arrumar um emprego ou investir numa formação profissional e intelectual. Especulo que a sorte de Clayton se deva ao fato de ter uma família que apostou no seu sonho e possibilitou a ele atravessar uma jornada de acesso a espaços educacionais, mesmo sem trabalhar! O papel dele era de continuar com seus objetivos, perseverando…
Clayton nos apresenta um solo desafiador para os expectadores, talvez porque estejamos todes acostumados a ver monólogos de até 1h30, no máximo. Seu solo tem exatamente 3h de duração, acompanhado rigorosamente por um relógio cronometrando o tempo, fixado na cabine de luz e som.
Fiquei magnetizada pela ausência de trilha sonora, pela essencialidade do figurino, ausência de cenário, pela catarse de uma fala urgente cheia de saliva que escorria pela boca, pela intensidade corporal ocupando todo o espaço nesse longo tempo, pelos textos históricos que me ensinavam sobre aspectos da minha história enquanto brasileira, que até então eu não sabia, pela profundidade da pesquisa, dos diversos dados e nomes de pessoas históricas reais que impactaram e impactam negativamente a nossa vida enquanto pessoas negras, refletindo a exclusão social e, sobretudo pelo comprometimento de justiça social com a história de Dona Terezinha. A peça nos leva a rir e chorar, nos conduz a muitas reflexões e nos apresenta sem dúvida a urgência de alguém que precisou PER.SE.VE.RAR muito para chegar até aqui.
Escutar Aldri Anunciação falar da obra MACACOS como uma dramaturgia de jornada a partir da escuta de como Clayton criou no corpo-voz as cenas, elaborou sua dramaturgia e compôs por fim seu solo, sua poética, como diz muitas vezes Aldri; remeteu-me automaticamente ao que vi e escutei na cena, também repetidas vezes, dita pelo pai de Clayton, que ele deveria, se quisesse mesmo aquilo, perseverar. Sua poética não existiria sem esse verbo. Sua poética é pura ação afirmativa!
Clayton perseverou tanto que hoje vive as alegrias de poder compartilhar sua obra em outros países como: EUA em Chicago, Rússia em Moscou, Holanda, Chile, entre outros… Sua dramaturgia de jornada segue na missão, como Clayton bem entendeu dentro da universidade, de levar informação para “o povo que não sabe sobre isso!”. Toda sua poética também se caracteriza pelos muitos NÃOS, ditos por pessoas que não quiseram/puderam/queriam criar com ele um espetáculo chamado Macacos. Para além de se analisar o solo como ruim ou muito bom, observo nesse trabalho, como Clayton está sendo visto, recepcionado, reconhecido, aplaudido e considerado o porta-voz que fala o espírito do nosso tempo! O futuro é ancestral. Esta frase do Ailton Krenak nos convoca a mirarmos o passado, para re-olhar o que foi apagado, para assim, reposicionarmos, nesse ato de letramento racial, nossas ações para o futuro. Eis a atitude de Clayton em MACACOS.
Uma curiosidade me chega: Como Aristóteles veria a poética de perseverar de MACACOS?
Pelo pouco que sei, acredito que o solo de Clayton foge a passos largos desse crivo, e atualmente, nem mais queremos que o olhar branco referenciado determine o que é ou não o bom teatro. Mesmo assim, aqui deixo meu respeito àqueles que vieram antes e puderam contribuir para os estudos sobre a arte. A palavra POÉTICA é linda e inspiradora… Que continuemos a usá-la para nomear os modos como os artistas estão tecendo sua linguagem, de acordo com suas necessidades.
Outros títulos chegaram para mim nessa reflexão crítica: A Poética do Não ou A Poética da Escassez. Mas prefiro, como mulher-artista-afro-indígena, ficar com A Poética de Perseverar de Clayton; ela é mais poesia aos meus ouvidos; ela me convoca à ação. Penso que Clayton nos ofereceu, neste tempo, uma aprendizagem fundamental: nossa negritude é incrivelmente potente!