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A minha prateleira do amor: sobre escolher corpos brancos/magros e rejeitar os pretos/gordos

Imagem: Reprodução/Instagram

Sempre aponto nos meus textos, baseado nos estudos da Valeska Zanello, como as mulheres estão dispostas em prateleiras e são encaixadas na dinâmica de serem escolhidas. Para vencer isso, decidi seguir o caminho de escolher.

Até descobrir que eu também estou colocando os homens em prateleiras. Ou para ilustrar com mais precisão…

Essa imagem retrata perfeitamente algo que vocês já devem ter visto em minhas análises. Por um lado, estou dedicada a aceitar as medidas “fora da curva” do meu corpo, seus defeitos deselegantes e suas proporções não estéticas, incluindo até o fato de seguir a vida, mesmo que esteja me sentindo feia naquele momento. Por outro lado, no campos das relações sexuais ou conjugais, estou me dispondo a sair dessa lugar de esperar ser escolhida ou, como eu mesma apontei, “descolonizando meu tesão”, já que entendi que boa parte do meu prazer libidinoso está mais no fato de ser escolhida do que sentir atração por alguém. 

Após exercitar essas decisões, vivi uma sensação saborosa de liberdade. Encontrei caminhos internos novos sobre como me apresentar no mundo, mediando lugares que vão além da estética. Achei e fortaleci minha simpatia, inteligência, bom humor, alegria e muitas outras qualidades que, antes, só ficava à vontade de exercê-las após ter certeza que minha aparência fosse agradável aos olhos alheios. Com esse precedente, fiz como a figura que trouxe acima e rasguei qualquer necessidade de me encaixar em padrões de curvatura, altura e até de feminino, já que, no meio desse processo, descubro minha não-binariedade e uma expressão de gênero que se sente livre para movimentar vestuários ditos “masculinos”. Ou seja, a vida ficou melhor, mais feliz e agradável! 

Mas aí chega o momento de ir para o lado de fora. Entrego a essa nova versão minha uma maior confiança própria, algo que me ajuda a experimentar os caminhos da escolha. Munida de muita auto-estima, parece que vou conseguir escolher, ainda que o “não” ou a rejeição apareça. Com entusiasmo, eu observo o outro e olho, paquero, me aproximo, adoto meus próprios movimentos e ganho algumas reciprocidades. Todas são efêmeras, rápidas e pareço me sentir bem com isso, até que vejo essa imagem e encaro a ideia nefasta de que apesar de estar disposta a quebrar padrões sobre mim mesma, continuo me atraindo por todos os padrões possíveis…

E como descubro isso? Bom, faço uma lista dos ficantes que passaram na minha vida e depois foco naqueles que escolhi nos últimos meses. Daí, penso nos corpos fora do padrão, partindo de uma escala menor até uma maior. Algo assim: já fiquei com narigudos? Sim. E barrigudos/as? Muito pouco. E carecas? Nenhum. E gordos/as? Nunca. E pretos/as? Quase ninguém. E retintos/as? Nunca. A lista não era muito grande, logo, rapidamente entendi que eu desviava meu olhar para certos corpos que se apresentavam para mim. Na verdade, confesso aqui, com grande pesar e embaraço, que os poucos caras/gurias que dispensei um beijo ou uma pegação na agitação da noite eram de pele escura ou gordos/as.

Eu pensava nisso? De  forma alguma! Achava que simplesmente  não me atraia ou não estava afim no momento. Mas, vamos para o lado contrário da história. Quais eram os corpos que eu me empenhava a convidar para uma troca de salivas? Brancos, magros (ou levemente malhados), altos, e com uma aparência  que lembrava artistas, músicos ou pessoas que estão em destaque na mídia, espaço onde predomina os corpos do privilégio, da alta cúpula estética. Me auto-enganava pensando que, como não escolhia os/as hetéro/a tops, optando por figuras mais mulambentas, me desviaria da rota da estética padrão.   

Ledo engano… Euzinha estava diante de uma prateleira do amor muito clara, onde dispunha homens e mulheres em diferentes andares de acordo com o meu nível de atração física e sexual. Você pode me questionar que isso é algo natural, afinal, somos incapazes de nos atrair por todo o tipo gente. Verdade, também pensei a respeito. Mas, como continuo à disposição para ir a fundo de mim mesma, consigo identificar com clareza que minhas prioridades guardam reflexos da estrutura social em que estou inserida. Quem em mim definiu que, por exemplo, negros retintos não estariam no meu patamar de atratividade? Com o acréscimo de que eu nasci em Salvador, uma das capitais com maior população negra. 

Sempre vi e convivi com corpos negros por toda a minha infância e adolescência. Alguns eram meus amigos, outros conhecidos, colegas de escolas, vizinhos e muito mais. Tinha muitas variedades e era raro não vê-los na minha rotina. Mesmo assim, os meus olhos se condicionaram a vasculhar no meio dele os corpos brancos. Por que será? Seria a influência das tecnologias de gênero, termo empregado por Zanello para comentar os recursos da cultura que definem nosso olhar sobre o gênero – e que agora inclui o recorte raça? Se os galãs do meu tempo eram brancos, loiros, de olhos azuis, como o Leonardo Di Caprio no pôster do meu quarto juvenil após assistir “Diário de um adolescente”, essa estética foi, portanto, definida como meu ideal de conquista. 

Isso é tão real que, nessa época do pôster, eu fiquei atraída por muitos anos por um guri do bairro que era a cara do Leo DiCaprio. Não consigo nem lembrar de se ele era um cara legal, gentil, respeitoso. Só olhava para o rosto dele e ficava agitada, querendo beijar aquela boca desejada nas fitas de video cassete que eu alugava.  Outro exemplo foi meu primeiro beijo, que aconteceu com um cara da escola que eu troquei poucas palavras e tive vontade de ficar só porque ele era a cara do Kurt Cobain. O menino era chato e sem graça, mas aqueles olhos verdes com cabelos loiros tomou conta de mim e me joguei em cima dele, tomando toda a iniciativa para chamá-lo a um passeio e beijá-lo. Me lasquei total. O beijo era péssimo e no dia seguinte o guri achou que estávamos namorando. Tive que “terminar” com ele no portão do colégio. 

Após escrever tudo isso, me dou conta de que meu tesão, além de heteronormativamente colonizado, sempre foi racista e classista. Ainda que, no passado, eu me focasse mais em ser escolhida do que em escolher, aqueles a quem eu dava a oportunidade de fazer charmes e afins femininos para que seu olhar fosse até mim e me escolhesse como “sua mulher”, foram medidos pelas minhas projeções mentais construídas pelos filmes, novelas e outros símbolos imagéticos que estiveram presentes na minha rotina ao longo dos anos. Uma constatação que revela como nosso desejo é estruturalizado. Sentir desejo faz parte da vida humana, mas retratá-lo em corpos e formas é fruto dos recortes mentais sobre amor, romance, prazer e atração que estabelecemos pela influência do status social dominante. 

“Ah, mas eu já estou em uma relação, isso não faz mais diferença para mim”, você pode comentar. Porém, se houver qualquer resquício de curiosidade, porque você se auto-identifica com as minhas falas, recomendo um exercício simples (serve também para solteiros). Baixe um aplicativo de paquera e observe o seu olhar para as imagens que passam na sua frente. Até convide um amigo/a de confiança para te ajudar nisso. Veja o rosto/corpo presente no perfil e descreva o que você vê e se cogitaria criar interesse com essa pessoa. Se preciso, até anote ou grave isso e observe. 

Eu já fiz esse exercício comigo mesma, bem antes de entender a colonização do meu tesão. Era automático eu dispensar homens hetero tops, mas também aqueles que eram gordos, negros e retintos. Meu perfil mais escolhido tinha quase a mesma cara: branco, magro, alto, de barba mal feita, cabelo grande, quase com cara de adolescente. Dei até um nome: esquerdomacho-cirandeiro-aluno-da-federal. 

Diante de tudo isso, preciso admitir para mim mesma, que meu olhar de desejo imediato a um rosto/corpo está altamente colonizado, racializado e heteronormativo. E, quando essa ficha cai, tudo fica mais estranho. Agora, quando olho para alguém com desejo, automaticamente paro, enxergo o corpo político que está presente diante de mim e vejo os recortes que estão naquele conjunto. Em segundos, me dou conta que estou projetando as pessoas de sempre e, sem forçar a barra, sinto meu desejo diminuir. No outro lado, faço o mesmo exercício. Se alguém mostra interesse por mim e não sou recíproca, faço o exercício e lá estão os opostos do meu perfil colonizado de desejo. Tento até dar uma chance, mas, confesso, é muito difícil se jogar para alguém cuja vontade nem aparece…

Por isso, estou percebendo que meu trabalho precisa acontecer antes dos encontros, da troca de olhares, da performance da sedução. Estou desenvolvendo atenção sobre minha visão às pessoas em campos mais neutros, como em um passeio de shopping, dentro do metrô, na praia, etc. Eu intencionalmente vasculho os corpos e investigo o que aquilo me traz espontaneamente. Sem julgamentos, observo as imagens que aparecem. Normalmente, o corpo negro retinto me faz pensar em pessoas pobres e famintas da África, filmes sobre racismo, ou pessoas do bairro pobre em que vivia. Olho as formas brancas e magras e elas me remetem a artistas de TV, filmes da sessão da tarde, ídolos da adolescência, e até namorados e ficantes que tive. 

Eu me sinto mexida por ter percebido isso, mas não estou triste. Despertar sobre nossa condição como sendo mais uma ferramenta da terrível engrenagem construída por séculos pela ignorância e maldade humana é um passo para que as coisas mudem. Tenho dedicado os últimos anos da minha vida a mudar os caminhos do meu desejo, no sentido de que ele esteja mais perto de mim e mais distante das ideias instaladas na minha cabeça desde a infância. Nesse processo de aproximação, essas descobertas nasceram e preciso encarar elas com sabedoria. Infelizmente, ainda sinto que meu desejo/tesão não me pertence, mas, pouco a pouco, estamos próximos de nos encontrarmos. Quando esse dia chegar, eu prometo que aviso! 

FONTE: 

Foto de capa: Freepik

Imagem: https://www.instagram.com/p/ClkzFb2sluU/ 

ZANELLO, Valeska. A prateleira do amor: sobre mulheres, homens e relações. Editora Appris, 2022.

OPINIÃO

O texto que você terminou de ler apresenta ideias e opiniões da pessoa autora da coluna, que as expressa a partir de sua visão de mundo e da interpretação de fatos e dados. Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal Umbu.

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