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Portal UMBU

“A historiografia é racista e ela faz com que a gente não conheça o nosso próprio território”, analisa Yara Damasceno, historiadora e influenciadora digital

Criadora do desafio #10PáginasPorDia, Yara conversou com a reportagem do Portal Umbu a respeito de sua atuação e como é crescer online lidando com os desafios do algoritmo

Foto: Arquivo pessoal

O Subúrbio Ferroviário de Salvador é reconhecido por suas paisagens, construções históricas e por abrigar cerca de 300 mil pessoas, entre as quais se encontra Yara Damasceno. Nascida e criada na região periférica de Salvador, a historiadora e pesquisadora se divide entre diversas funções que vão de ser mãe, passando pela produção de conteúdo para redes sociais até o posto de assessora técnica na Superintendência dos Desportos do Estado da Bahia (SUDESB).

Pisciana e candomblecista, a historiadora formada pela Universidade Estadual da Bahia (UNEB) é acompanhada por quase 19 mil seguidores no Instagram, plataforma que utiliza para falar de História, sobretudo as que “não tivemos acesso”, como as minúcias da construção de Salvador e marcos históricos da população negra.

Perguntada sobre como foi perceber a potência das redes sociais para tratar de temas importantes, Damasceno diz que o processo se deu ao observar o fluxo das redes sociais. Eu estava presente ali, eu começo 6 anos atrás no YouTube falando sobre o processo de transição capilar, beleza e tudo mais. E aí, percebo através da minha universidade, também, que a gente sabe muito pouco sobre a nossa cidade, sobre o lugar que a gente habita, a gente não busca sobre a história do nosso lugar, do nosso bairro, da nossa rua”, explica.

“Por que [o lugar] tem aquele nome? Por que Plataforma é Plataforma? Por que Suburbana é Suburbana? Por que Campo Grande é Campo Grande?”, exemplifica a influenciadora. “Eu percebi que pouquíssimas pessoas falavam sobre isso e tentei adequar o meu conteúdo. Enquanto historiadora, eu foco muito na minha cidade, então o meu trabalho é muito sobre o meu território. E aí eu usei da minha da licenciatura em História, da minha formação, para rede social que eu acho que é um campo muito usado não de forma educativa”.

Yara explica a importância de ter especialistas falando sobre assuntos para garantir certeza e veracidade na divulgação dos conteúdos. “A historiografia é racista e ela faz com que a gente não conheça o nosso próprio território, a nossa própria comunidade. Então o meu trabalho é focado nisso”, pontua. A criadora também aponta que é uma grande responsabilidade tratar temas ligados à educação e à informação da audiência.

A historiadora conta que, apesar de falar para milhares de seguidores hoje em dia, foi na graduação que ela quebrou a timidez e ampliou suas habilidades de se comunicar. “Como eu sou uma mulher que vem de uma comunidade periférica, eu tive algumas dificuldades dentro da universidade, dentro da academia para lidar com o aprendizado. Então, para mim, foi difícil nesse sentido. Enquanto muitas pessoas já sabiam falar, gesticular, se colocar, eu ainda ficava ali, excluída, meio tímida. Eu fui percebendo, indo para rodas de conversa”.

Ela diz que o apoio de amigas e amigos que, como ela, são historiadores pretos, foi fundamental para o seu desenvolvimento. “A faculdade mudou a minha vida. Eu não queria fazer História, a História me escolheu. Eu faria tudo de novo”.

Quanto aos desafios na carreira de digital influencer, Yara aponta que, estando num nicho educativo, utilizar uma ferramenta tecnológica em ascensão para abordar os temas que queria a levou a refletir: “O que que eu posso fazer ali, além de falar sobre beleza e cabelo? O que que eu posso trazer através do meu cabelo? O que que eu posso trazer através da minha vivência enquanto mulher periférica, mulher negra e uma mulher negra que não é retinta?”.

“O meu desafio, enquanto influenciadora, é que as marcas olhem pra gente, olhem para mim. Que os seguidores cresçam. Porque é muito difícil você ser reconhecido quando você tem um conteúdo educativo, então, na maioria das vezes, você tem um nicho específico, uma comunidade específica que vai seguir com você por um bom tempo, mas essa comunidade não cresce. E ela não cresce porque você não está fazendo conteúdo, ela não cresce porque o algoritmo é racista e não vai colocar conteúdos falando sobre questão de raça, classe, gênero e ali, no feed das pessoas.”

A pesquisadora e assessora técnica reforça que essa dificuldade para alcançar visibilidade atrapalha a atração de marcas. “Poucas marcas nos olham, poucas marcas querem fazer trabalhos e pagar, de fato, o que a gente merece. Esse é o desafio para quem é influenciador digital. A maioria tem que ter dois trabalhos para conseguir dar conta de tudo”, lamenta. 

Yara Damasceno utiliza sua voz no meio digital para falar não apenas de História, mas também para incentivar o público a adotar o hábito da leitura. Liderando a campanha #10PáginasPorDia, ela explica que o projeto teve início por conta de uma dificuldade que ela teve e manter o hábito. “Eu começo a perceber que eu lia muito antes. Mas quais eram os livros que eu lia antes e quais são os livros que estão me deixando engasgada, que eu não estou conseguindo ler?”, analisa. “Eu tinha uma leitura muito embranquecida, eram livros muito fáceis de ler, muito leves, tranquilos. Não tinha questões pra gente ficar parado pensando ‘eu vivo isso’”.

O ‘10 Páginas’, surge então de uma dificuldade de retomar a leitura que Yara logo percebeu não ser apenas dela. Segundo a assessora técnica, seguidores compartilharam da sensação e disseram que o tempo de tela nas redes sociais era um fato que influenciava no comportamento, além da falta de incentivo à leitura. “Eu pensei ‘vou criar um desafio para mim e vou compartilhar com as pessoas que estão me seguindo’. Eu falei ‘10 páginas por dia’ com o intuito de incentivar a leitura para os meus seguidores, para as pessoas que me acompanham e para mim mesma, com foco em raça e gênero, para que a gente consiga ter e indicar leituras leves também de escritores e escritoras negras”.

“Que a gente consiga indicar cada vez mais e ler cada vez mais livros pautados na nossa vivência e que existem, mas não nos são trazidos. Hoje, a gente está com grande número de digital influencers que falam sobre leitura, sobre educação, indicam livros e isso é incrível. Mas na época que foi ali 2018, 2017, a gente não via tanto.  Então a galera se empenhou muito assim no desafio”, conta.

A influenciadora revela o desejo de materializar o #10PáginasPorDia, seu projeto de maior alcance nas redes sociais, e levá-lo para a comunidade com um “espaço em que as pessoas vão lá, pegam um livro e leiam 10 páginas por dia. É um projeto muito lindo que me dá muito orgulho da minha trajetória. É um projeto que continua firme e forte apesar de algumas recaídas porque ler é uma coisa muito difícil quando a gente não tem incentivo”.

Sobre futuros projetos, Yara conta que, desde a infância, sonha em escrever um livro, mas que, por ora, pretende trazer o ‘10 Páginas’ para o mundo material. “Esse é um projeto que abraça muita gente e eu quero que esse projeto se torne físico, que ele vá para as comunidades, que a gente tenha uma biblioteca em cada bairro periférico. São sonhos mesmo que eu preciso trabalhar muito ainda para conquistar. No Instagram, eu tenho o projeto de trazer, cada vez mais, assuntos desconhecidos sobre a cidade de Salvador e arredores, então é meu interesse para que a gente conheça, cada vez mais, historicamente a nossa cidade e valorize da forma que ela tem que ser valorizada. Para que outras pessoas também valorizem os influenciadores, todos os artistas daqui da nossa cidade”.

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