
Há uma geração de mulheres que cresceu ouvindo que precisava ser forte. Fortes para sustentar famílias inteiras, para ocupar espaços sem nunca ser plenamente vistas, para seguir em frente mesmo sem estrutura básica para existir com dignidade. Essa geração, marcada pela resistência, pela garra e pelo silêncio, agora se depara com uma nova urgência: precisamos resolver o óbvio. E o óbvio é que continuamos adoecendo em silêncio, tentando sobreviver em uma sociedade que romantiza nossa dor.
Falar da ausência de moradia fixa é falar da continuidade da exclusão. Quantas mulheres negras seguem vivendo de aluguel, à margem dos programas de habitação? Quantas esperam, por anos, por um teto que lhes dê segurança emocional e financeira? O tempo de espera de uma mulher negra por uma moradia digna não é só burocracia: é consequência de um sistema que insiste em negar a cidadania plena a quem carrega a história de um povo inteiro nas costas.
O planejamento de futuro, para muitas de nós, ainda é um sonho distante. Como traçar metas se o presente é instável? Como pensar em liberdade se a sobrevivência depende, muitas vezes, de relações abusivas — afetivas, familiares ou institucionais? Ainda convivemos com a naturalização do abuso emocional e econômico como parte do nosso cotidiano. Muitas continuam em relações violentas não por escolha, mas por falta de alternativa real. E ninguém fala sobre o custo psicológico disso.
Vivemos tempos de emoções fragilizadas. De corpos sobrecarregados e mentes exaustas. Não por fraqueza, mas por cansaço histórico. E enquanto lidamos com tudo isso, a sociedade nos cobra mais força, mais resiliência, mais silêncio. Mas o que essa geração precisa não é de mais resistência — é de reparação, de estrutura e de cuidado.
E essa mesma invisibilidade que enfrentamos na vida cotidiana se repete no serviço público. Quantos conhecem Vera Lúcia, mulher negra que ocupa um cargo importante no STE? Poucos. Porque enquanto alguns rostos negros chegam ao topo, o sistema garante que suas histórias não ganhem projeção. Crescemos ouvindo que precisamos de referências, mas as gerações atuais sabem mais sobre influenciadores do que sobre quem está na linha de frente, fazendo política pública, garantindo direitos, enfrentando estruturas de dentro para fora.
Isso não é por acaso — é projeto de apagamento. A invisibilidade das pessoas negras em cargos de poder é estratégica. Se não vemos, não acreditamos. Se não conhecemos, não nos espelhamos. E assim, segue-se negando às novas gerações o direito de sonhar com o possível.
Mas o feminismo negro nos ensina que a transformação começa com o reconhecimento das nossas dores e com a valorização da nossa existência. Precisamos de políticas públicas que nos priorizem, de redes de cuidado, de espaços onde possamos existir com dignidade e visibilidade. Precisamos romper com a lógica do “aguente mais um pouco” e exigir o que é nosso por direito: o bem viver.
O bem viver é mais do que um conceito — é uma urgência. É ter moradia, alimentação, saúde emocional, segurança e afeto sem culpa. É romper com a ideia de que só existimos para resistir. Queremos existir para criar, amar, descansar, construir legados. E isso passa também por recontar nossas histórias. Por dar nome e rosto às mulheres negras que estão em espaços de poder, que constroem políticas, que ensinam, que legislam, que julgam. Que lutam. O futuro que queremos depende da visibilidade dessas referências e da coragem de romper com pactos históricos de silenciamento.
Essa geração precisa, sim, resolver o óbvio. Porque o óbvio nunca foi simples para nós.
E se queremos outro amanhã, precisamos começar por hoje.