
O mês de julho é marcado por uma série de ações que celebram a força e os feitos de mulheres pretas que mudam, por meio de seu trabalho, a realidade à sua volta. Empresária e produtora cultural, Marcela Silva, 39, é uma dessas agentes de mudança que tem trilhado uma jornada marcada pela criação de oportunidades para mulheres e pessoas negras na cena musical brasileira.
Natural de Inhambupe, interior da Bahia, e crescida em uma família de artistas, ela conta ao Portal Umbu que a música sempre esteve presente, mas, por muito tempo, parecia distante de um caminho profissional. “Mesmo nascendo nesse universo, sempre foi uma coisa muito distante do meu trabalho. Nos diziam que música não era um ofício, que não dava pra viver disso”, relembra. Em vez disso, formou-se em Administração, chegando a estudar Arquitetura antes de integrar projetos como a 1ª edição do Salvador Black Film Festival e o Palco ORIGENS, primeiro palco negro da cidade a romper com a lógica tradicional dos blocos afros. “A partir dali, meu mundo virou. Me apaixonei pelos bastidores da música, por entender como tudo funcionava”.
O trabalho nos bastidores, porém, não foi algo planejado. “As coisas foram acontecendo e eu fui me tornando. Fui trocando as engrenagens com o avião no ar”, afirma. O que começou como uma atuação na produção de eventos, com forte envolvimento na curadoria e no desenvolvimento de propostas, evoluiu para o gerenciamento de carreiras artísticas. “Gosto muito dessa parte. Tenho um olhar criterioso e um ouvido bom, e isso me ajuda a enxergar potencial nos artistas, a pensar estratégias e planejar com afeto”.
Esse afeto, inclusive, é um dos pilares de sua filosofia profissional. “Sempre penso que, se temos um artista feliz desde o início, vamos ter um resultado feliz. Isso chega no público. Eu queria tanto que tivessem feito isso por mim, que hoje transfiro esse cuidado para os artistas com quem trabalho”.
Marcela contrasta essa abordagem com o modelo das grandes gravadoras. “Elas chegam com um projeto pronto e dizem: ‘Você vai seguir por esse caminho porque preciso monetizar, preciso que seja rentável’. Eu sigo por outro lado. Não tenho o mesmo capital, mas tenho um pensamento de construção”. Ela acredita que o acolhimento começa pela escuta ativa. “É preciso ouvir. Ser um bom ouvinte transforma relações”.
Marcela reflete também sobre os desafios estruturais enfrentados por pessoas negras e por mulheres no mercado fonográfico. “A gente vem de um histórico de lesões, de não conhecer nossos direitos. O mercado é muito duro. E, sendo mulher, sendo negra, é ainda mais difícil ser escutada. Eu gostaria muito de ter sido ouvida em muitos momentos”.
A gente teve um mercado que abriu realmente um olhar, mas também com as suas contrapartidas
Sobre a presença marcante de mulheres negras entre os artistas com quem trabalha, Marcela enfatiza: “Nós somos uma potência. Sempre fui direcionando meu olhar para pessoas negras, especialmente mulheres. Acho que houve uma fase em que o mercado abriu uma brecha, especialmente o publicitário. Não houve uma porta, mas houve uma cota. A gente teve uma uma oportunidade de desenvolver os projetos, a gente teve um mercado que abriu realmente um olhar, mas também com as suas contrapartidas”.
Ela reconhece que essa brecha foi aproveitada por uma parte do mercado que soube se posicionar. “Agora o mercado já virou a chave, tá olhando pra outros lados. E a gente precisa pensar como se conectar de novo, nessa nova virada”.
Foi também pensando na criação de espaços seguros e acolhedores que Marcela idealizou a Festa Preciosa, voltada exclusivamente para mulheres lésbicas e bissexuais. “Frequentei muita festa em Salvador, desde nova, e nunca me senti realmente confortável. Queria um lugar que me contemplasse em todos os aspectos: segurança, respeito, conforto”. Ela explica que, além do clima da festa, detalhes como banheiros limpos e itens de higiene são cuidadosamente planejados. “Pode parecer pequeno, mas não é. O maior feedback que recebo é sobre o banheiro. Mulher faz xixi sentada e precisa ter sabonete, absorvente. Isso faz diferença”.
A gente tem 39% de mulheres em cargos de lideranças, mas que são invisibilizadas
A Preciosa, que nasceu como um espaço de afeto, agora caminha para se tornar um legado social. “Quero transformar a festa em um festival que conecte outras iniciativas voltadas ao universo feminino. Para 2026, planejamos incluir processos formativos, porque senti falta de profissionais capacitados para trabalhar comigo. Quero formar essas pessoas”.
Ao projetar o futuro, Marcela é assertiva: é preciso ocupar os lugares de decisão. “A gente precisa sair da propaganda para estar no lugar da decisão. Quando a mulher está no lugar de decisão, a gente consegue transformar outros contextos, o entorno, essa urgência que é mudar essa situação. Enquanto isso não acontecer, homens heteronormativos continuarão decidindo por nós. Temos mulheres em cargos de liderança, mas que não são vistas. E isso é estrutural”.
“A gente tem 39% de mulheres em cargos de lideranças, mas que são invisibilizadas”, cita ao mencionar o apagamento de estruturas sociais com origem machista, racista e heteronormativa.
Seu desejo é claro: “Quero mapear potências, fazer com que outras mulheres cresçam comigo. Eu estou aqui como a gente transformador e quero, com tudo o que eu aprendi nessa minha caminhada, poder transformar, abrir portas para outras pessoas, outras mulheres criarem, se inspirarem com um pouco o que eu fiz e transformarem essas realidades que a gente vem enfrentando”, conclui.