Da Lama ao Caos, em 94, nos disse que a cidade não pára, ela só cresce, que uma cerveja, antes do almoço, é muito bom pra ficar pensando melhor e, quase no final do lado B do LP, provoca a gente com os versos “Computadores fazem Arte/ Artistas fazem dinheiro, dinheiro”. Não temos dúvida que aquele cara, que subiu no palco do Hollywood Rock de 96 com uma camisa estampando uma arroba, indicava a arte para um novo futuro, mas será que a Afrociberdelia do Chico Science é essa de imagens geradas automaticamente e chats online com robôs?
É dos anos 50, o estudo considerado o abre-alas da pesquisa em inteligência artificial. Alan Turing, que não só é um herói tardio de guerra, e vale a pena assistir o filme “O Jogo da Imitação” (2014) para entender o porquê, é o autor desse artigo como, também, é o precursor do que entendemos como computação moderna. Em meados de outubro de 1950, brotou “Computing Machinery and Intelligence”, postulando que, caso um humano não conseguisse diferenciar as respostas emitidas por uma máquina das respostas emitidas por um outro humano, esta máquina poderia ser considerada a inteligência artificial ideal; este é o famoso Teste de Turing e o estopim para uma era de computadores fazedores de arte.
Desde então você tem descoberto músicas novas no Spotify, aprendido sobre assuntos de seu interesse no YouTube e admirado momentos inspiradores através de fotos do Instagram. Seu celular e este apps são capazes de determinar o que lhe é interessante naquele momento ou não. As grandes plataformas nos mimam através dos onipresentes algoritmos de sugestão, uma versão ubíqua, inserida em nosso cotidiano, de inteligência artifical que nos ajuda a usar melhor a internet (ao mesmo tempo que nos empurram publicidade ao menor vacilo de comentar sobre robôs aspiradores perto do celular).
Até aqui ainda é difícil visualizar alguma arte no que as máquinas de Turing modernas vêm nos oferecendo. Até quando alguém teve a idéia de fazer estes algoritmos, da mesma forma que eles recebem dados em formato natural, exibirem os resultados de seus processamentos também em um formato natural. Os softwares, então, não se limitaram mais em sintetizar sequências numéricas codificadas, mas, sim, em traduzir estas sequências em imagens, sons e textos em idioma humano. A arte dos computadores finalmente toma forma com a tecnologia tendência de 2023, a Inteligência Artificial Generativa. Em 2014, o assunto se firmou como pauta comum na academia e seu desenvolvimento culminou, nos últimos meses, em ferramentas globais capazes de parodiar capas de discos famosos, responder as mais diversas curiosidades (e questões de provas) e até mesmo renderizar vídeos com base em um comando de texto ou imagem.
Porém, o simples comando de texto, já denominado como “prompt”, que um redator insere no ChatGPT para obter uma inspiração de pauta ou a foto que um adolescente fornece ao Lensa para obter um avatar futurista de si próprio, são retroalimentações de uma rede de processamento, classificação e organização de dados de escala mundial. Aplicações de IA Generativa se fundamentam na enorme coleção de conteúdos disponibilizados na internet, e nas plataformas digitais, para algoritmos com nomes rebuscados como Redes Neurais e Deep Learning apliquem padrões e calibrações constantes para criar sugestões; uma formalização científica para um processo, em natureza, similar a separar bolinhas coloridas em caixas distintas onde, baseado no que sua mãe for te dizendo e nas bolinhas já separadas, você suporia em qual caixa a próxima bolinha deve ser guardada.
Já em 2022, milhares de repositórios de código-fonte da plataforma GitHub foram usados para possibilitar a criação do seu próprio produto, o Copilot, uma IA para desenvolvimento de software. Um dos resultados foi um processo à companhia (que pertence à Microsoft) devido a possíveis violações de direitos autorais e favorecimento à pirataria de software. Também em 2022, um movimento pilotado por artistas visuais em todo o planeta chamado “No To AI” tomou proporção após acusações de apps como Lensa e DALL-E replicarem trabalhos de artistas locais sem fornecer o devido crédito. E, há poucos dias, no Web Summit Rio 2023, a pesquisadora e executiva Meredith Whittaker não poupou críticas e adjetivos pesados à inteligência artificial e às intenções de quem as detém, uma vez que elas são resultados de um acúmulo hegemônico e monopolizado de dados.
Agora, como a metáfora do Yin-Yang não nos deixa nunca ficar totalmente na bad com as bizarrices das novas auroras, geradores de imagem têm conseguido, também, trazer encantamento e até uma certa comédia. Uma ferramenta chamada Midjourney gerou uma imagem inusitada do Papa Francisco usando um sobretudo Balenciaga, o que enganou muita gente. Já quem gosta da Cidade do Salvador e de um joguinho de cartas, poderá, daqui a pouco, jogar o Salcity, jogo cujas cartas são ilustradas com paródias de elementos soteropolitanos geradas por inteligência artificial. E, pra quem valoriza uma arte decolonial, o artista visual baiano, sediado no RJ, Uendel Nunes tem aprimorado sua linguagem de colagens com o auxílio de ferramentas de IA generativa. E longe do absurdo tragicômico de um comercial de cerveja da produtora inglesa Private Island, que, sabe-se lá com qual IA, gerou uma cena de churrasco de FDS pra lá de non-sense, o renomado portal de arquitetura Archdaily, junto com o ateliê Ulises Design Studio, desenvolveu uma projeção da casa contemporânea ao redor do mundo; muito mais surpreendente, positivamente, do que o churrasco apocalíptico da produtora audiovisual da terra da rainha.
Mas, ao fim de tudo, pra quem já passou pelos Ad Senses abusivos nos portais das internets e escutou muita música que não conhecia (e acabou gostando) nas playlists de descobertas da semana, agora, vai ter colegas de trabalho cuja profissão é escrever prompts para IAs generativas. Se, décadas atrás, a mídia popular era o validador da informação, as últimas manifestações populares e imagens inusitadas do papa nos mostram que ter o senso apurado e diferenciar conteúdo real de conteúdo manipulado é uma necessidade social e até um elogio à inteligência humana.
E quanto ao papa do Manguebeat e sua camiseta de arroba, podemos até dar uma colher de chá e dizer que, sim, computador faz arte, Chico Science e Nação Zumbi nunca decepcionam, mas a arte que o computador diz fazer não é nada sem nossa sensibilidade e capacidade criativa. Tudo que a inteligência artificial gera demanda a inteligência humana para a conduzir em direção a coisas belas, promissoras e, porque não, engraçadas de tão bizarras.